Gestei em meu âmago, por estrelas de tempo, a vida que hoje habita.
Doei os meus seios, com contornos de rios e oceanos, para amamentarem todos os meus filhos.
Sequei tuas lágrimas de sede com as chuvas.
Cantei para as águas a melodia das lagoas e dos riachos.
Abençoei-o com todos os frutos de meu ventre.
Soprei os cantos dos pássaros em melodias harmônicas.
Compus em ricas paletas de cores e vida, as matas.
Chamei o vento para soprar os rios que flutuam em cima das florestas e carregar as chuvas por quilômetros de distância.
Doei uma parte do meu coração e o soprei em cada vida, por cada canto de meu corpo.
Orquestrei, em essência e abundância, fio por fio tecido para a vida em existência.
Agora, choro em desespero e agonizo na minha morte que se lentifica em descaso.
Meus filhos criados com o barro do meu útero cospem em meu peito.
Teus olhos cerrados pela fumaça da ganância só enxergam o vintém que não pode ser digerido.
Bebes do meu leite transformando-o em guerra de raças e derrama-o na terra com o sangue de teus irmãos.
Os espinhos do poder dilaceram minha pele, consomem minha carne e afogam meu espírito.
Sem perceber, tu nadas em um mesmo oceano amniótico, destrói o meu ventre, despido de pertencimento e ignorando a liquidez da existência.
Ao se distanciar de mim, se distancias de tu mesmo.
Se eu não respiro, também tu respirarás.
O meu sangue não mais te alimentarás.
O meu corpo em pedaços tampouco te protegerás.
Vomito em dor o veneno que cobre os meus frutos servido em teus pratos imundos.
O essencial não é mais invisível aos olhos.
Carrego um pedido de sal, de meu corpo e ventre, ao teu ventre e corpo.
Nascemos juntos e morreremos juntos.
Eu sou um outro tu
ILUSTRAÇÃO: Valdis Baskirovs