Subitamente, a literatura foi a luz que encontrei no final do túnel para retirar de dentro da minha alma a marca obscura provocada por um crime invasivo, violento e involuntário do qual fui vítima. De forma corajosa, fui à busca de ressignificação, superação e qualidade de vida. Através da palavra escrita, encontrei os meios e as técnicas os quais pudessem aliviar em mim a culpa, o sofrimento, a angústia, o medo, a vergonha e a insegurança, de longos 20 anos, sempre presentes no meu dia a dia. Sendo assim, encontrei um caminho possível de ser trilhado por qualquer pessoa vítima de violência sexual.
Antes de qualquer coisa, sou de origem
camponesa, natural do município de São Caitano, Agreste de Pernambuco, localizado
no Semiárido Nordestino. Durante os meus 19 anos, convivi com três muros sociais:
o primeiro está relacionado à concentração de terras e de água, problema
antigo no Brasil. O segundo, diz respeito à educação: no papel, parece ser
bonita, na prática, é ausente e um faz de conta; aos filhos do povo, o
conhecimento é negado. O terceiro e último muro trata-se da questão da opressão
feminina. Mesmo antes de tornar-me uma mulher, socialmente falando, algo me
ocorreu: fui vítima de violência sexual aos 12 anos, marcando, desde muito cedo,
a minha visão sobre o papel e o lugar da mulher na sociedade.
É provável que a minha busca por respostas a
tantos questionamentos que eu tinha, tendo essas três situações como pedra no
meu sapato, me levou à literatura. O caderno, o lápis e a caneta sempre foram
os meus escapes. Com eles, faço uma união que parece ser impossível: o
repertório da ciência geográfica com a imaginação da arte da escrita. Ah! Assim,
eu sempre voo, saio literalmente da realidade que sempre parece ser cruel. Aliado
a isso, sempre tenho vontade de mudar a realidade concreta a qual vivi com
tanta dificuldade na infância e na adolescência.
Tornei-me uma pesquisadora do problema
agrário brasileiro, pois sempre quis entender a realidade a qual vivi na
prática. Em razão das mudanças impulsionadas pela COVID-19, fui entrando na
literatura com as minhas primeiras crônicas e poesias. Desde criança, sempre
quis ser escritora e especialista em um assunto, mas faltava o repertório, a referência
e a inspiração para seguir o meu caminho.
Em meio às problemáticas sociais da época e
mesmo diante de um pico de estado depressivo, algumas condições objetivas e
materiais me possibilitaram buscar conhecer-me melhor. No processo de
autoconhecimento, consegui ter coragem para derrubar os muros do silêncio
referente à violência sexual, carregado de medo, vergonha, dor, angústia,
vulnerabilidade e insegurança. Foi assim que consegui desvendar as
consequências do Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT). Mesmo passados 20
anos do crime, eu ainda não tinha nenhuma maturidade para entender as questões nele
envolvidas: sexualidade, violência e pedofilia. Questões estas carregadas de
traumas que me deixaram na lama em vários momentos da minha vida.
A literatura transformou a minha vida quando fui ao extremo de mim, a partir do momento em que percebi que as expressões na narrativa em prosa longa, por meio da palavra escrita, davam pequenos impulsos para uma libertação. Assim, a primeira escrita deu forma a uma carta-manifesto de 18 páginas. Nela, expus desabafo, denúncia e repúdio sobre o crime da violência sexual. Ao mesmo tempo, a narrativa contém um manual de acolhimento, empatia e superação.
Por meio da literatura, consegui perceber
quem sou. Além disso, me ajudou a olhar
a mulher que há em mim. Ela me impulsionou a ter coragem para buscar repertório
sobre um crime ao qual não tenho culpa nenhuma. Com isso, ganhei maturidade,
confiança e saí da condição de vítima. Passei a abordar o assunto com
propriedade. E, agora, estou seguindo a vida com minhas próprias mãos, sem o
peso de uma mancha obscura em volta de mim, causada por um crime do qual fui
vítima. Agora, vejo solução e luz onde havia trevas. A poesia curou a minha alma!