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ALANA, SUZI E A POLÍCIA (1)

ALANA, SUZI E A POLÍCIA (1)
Cassiano Ricardo Martines Bovo
set. 2 - 10 min de leitura
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        “Para as travestis a morte não tem nada de extraordinário, pois é uma experiência cotidiana" (Lohana Berkins)


Por volta da meia noite, estava Alana sozinha no seu ponto. Perdida em meio aos seus pensamentos no fraco movimento daquela noite, voltou a si com o burburinho vindo de perto dali, a uns 50 metros. Uma viatura parada, dois policiais, armas em punho, e na calçada três travestis à sua frente. Um dos agentes dizia:

— Mãos na cabeça, encosta na parede. Uma delas falou algo e um deles disse:

— Cala a boca! Suas putas! Vocês não prestam!

Em seguida chegaram mais duas viaturas.

Alana não tinha ideia do que elas fizeram, mas isso ficou para segundo plano. Seja lá o que fosse, o que a impressionou foi a maneira como os homens da lei as trataram. “Abordagem” é algo que se tornou importante para ela, fonte de preocupações, curiosidade e precaução; há três anos na cidade grande, vinda de uma cidade do interior do Pará, ficava cada vez mais chocada com o que via.

Dois dias depois, Alana estava no ponto conversando com o motorista de um carro que parou para perguntar sobre um possível programa. Do outro lado da rua, na esquina, uma viatura da polícia parada. Um policial atravessou a rua, foi em direção ao motorista e disse:

— Cuidado, elas roubam.

Assustado, o motorista foi embora. O policial ficou frente a frente com Alana, sem a mediação do carro, e disse:

— Sua gostosa.

Uma coisa ela percebia: muitos policiais, ao mesmo tempo em que têm raiva, têm tesão pelas travestis.

Alana fica ligada no noticiário. Frequentemente vê algo referente às trans e policiais, como o caso da travesti negra Sol, que filmou uma abordagem truculenta de policiais militares na Praça da República (São Paulo). Embora outras pessoas também tenham filmado, apenas Sol foi levada à delegacia, mas antes, foi agredida física e verbalmente. Impressiona-a também, a forma estereotipada, criminalizada de antemão, como se veiculam muitas notícias; várias delas com o uso do masculino ao se referir às mulheres trans.

Quem conversa muito com Alana, orienta e a protege, é a cafetina Suzi, com quem mora desde que chegou em São Paulo. Numa tarde depois do almoço, as duas começaram uma conversa que derivou para a questão da polícia e dos policiais, quando Alana revelou suas preocupações e temores.

Suzi é uma travesti “das antigas”, muito vivida, que chegou à casa dos 60 anos de idade, o que raramente acontece no Brasil, onde a expectativa de vida de uma mulher transexual está em torno de 35 anos. Ela é, portanto, uma autêntica sobrevivente; viu muita coisa, o que lhe dá autoridade.

Perante a curiosidade de Alana, Suzi disse:

— Minha filha, você não sabe como esse problema com a polícia é antigo! Já lá pelos anos 70, quando mostramos que viemos para ficar, a polícia aterrorizava. Eu estava começando.... época da ditadura; ouvia minhas colegas falando das barbaridades. A polícia nos colocou como mais um de seus inimigos. Havia gente que falava que nós éramos subversivas! Vê se pode!

— Você está falando da ditadura, que todo mundo fala até hoje, não é?

— Sim.

— Quando foi mesmo?

— O país foi governado por militares de 1964 a 1984.

— Que barra! Como sofreram as putas, as travestis, as lésbicas e os gays!

— Minha filha, você não sabe o que passamos! Éramos caçadas como animais, de forma impiedosa. Humilhadas e torturadas. Quase ninguém gostava da gente e os policiais, em geral, também não. Massacravam, mesmo aquelas que nunca tinha feito nada. Também aproveitavam para se satisfazerem em cima da gente.

— Como eles abordavam as travestis?

Suzi, rindo, respondeu:

— Eles vinham dando porrada, falando palavrões, humilhando mesmo. Para você ter uma ideia, tinha um delegado famoso em São Paulo, um tal de Richetti, implacável com as travestis, um terror. Outro famoso, assustador em São Paulo era o Erasmo Dias. Agora, tinha um, chamado Guido Fonseca. Esse tinha uma mania: ele colecionava fotos e desenhos das travestis da cidade para conhecer, estudar e enquadrar. E outros, na maioria das cidades, todas trans falavam. No Rio de Janeiro, os delegados Deraldo Padilha e o Andrade. Em BH, o Gonçalves, no Recife, o Acioly. Tudo isso se misturava à repressão política (2).

— Como as travestis faziam para trabalhar, ganhar dinheiro?

— A gente não podia trabalhar direito. Pressão. Toda hora a polícia fazia operações de caça, o pessoal chamava de arrastões, blitz, rondões, dependia do lugar. Era muita viatura, camburões, para pegar a gente. Levavam as travestis aos montes para a delegacia. Queriam as carteiras de trabalho e comprovação de emprego. A maioria não tinha; era justamente por isso que nos prostituíamos, não é? Enquadravam como vadiagem. Mas também, se tínhamos carteira de trabalho, muitas eram enquadradas como atentado ao pudor. Queriam tirar a gente da rua de qualquer jeito. Eu mesma passei algumas noites na cadeia; no dia seguinte eles soltavam, algumas ficavam mais tempo. Os juristas diziam que era ilegal, mas eles faziam.

— Como era na rua?

— Nós causávamos mesmo, era uma sensação; os homens ficavam boquiabertos quando a gente fazia as nossas performances seminuas na rua. Nos exibíamos, era tudo novo na época. Mistura de desejo, sexo, e também, repressão que vinha de todos os lados: das famílias, da mídia, da polícia. Nós incomodávamos.

— E essa história de se cortarem, é verdade?

— Sim. O pessoal chama de automutilação.

Às vezes, para nos livrarmos de sufocos, principalmente com policiais, nos cortávamos com gilete. Os policiais morriam de medo. Isso antes da Aids, hein? Imagina quando ela veio… Agora, por falar nisso, a Aids foi uma crueldade para a gente, sabe? Já éramos mal vistas e associaram a doença à gente, como se estivéssemos disseminando na sociedade. A perseguição se tornou mais forte. Em São Paulo teve até uma tal de Operação Tarântula, perseguindo e matando a gente, por causa disso.

— Mas quando terminou a ditadura melhorou, né?

— Que nada, parece até que piorou.....

— Nossa! Mas não mudou o governo?

— Mudou o governo, mas não as polícias; até porque eram as mesmas pessoas, as mesmas delegacias, prisões. Os policiais continuaram a dominar as áreas de ronda, exigindo propina para trabalhar, queriam sexo gratuito, achacavam, forçavam mesmo. Várias travestis – que não aceitavam – apanharam, sumiram ou apareceram mortas. Isso não terminou na ditadura, não. Foi um negócio que ficou até hoje!

— Mas eles não têm que seguir protocolos?

— Que protocolo, que nada. Cada policial ia resolvendo à sua maneira. Às vezes prendiam sem motivo; outras, quando deviam prender, não faziam, queriam ganhar em cima. Mas os movimentos começaram a questionar.

Principalmente entrando nos anos 2000. Muitas organizações foram surgindo. Chegaram nas Câmaras municipais, Assembleias estaduais, Congresso. Houve muito questionamento. Teve outra coisa que foi uma baita mudança: os celulares. Agora dava para gravar, filmar. Os policiais começaram a ficar preocupados. Houve casos que deu problemas para eles.

— Então houve uma melhora?

— Os policiais começaram a maneirar, fazer as coisas mais no controle, escondidos, na surdina, entende? Mudar não mudou, mas muitas vezes deu uma aliviada. Esse negócio da polícia, na verdade, nunca se desfez e a impunidade mais escancarada passou a ter um limite. Mas até hoje aparece cada caso feio de violência com policiais, não é?

— Mas tem policiais que são legais com as travestis, não é?

— Sim, não podemos generalizar, têm alguns que tratam bem, sim. Há policiais que atuam em organizações. Outros se apaixonam. Eu conheci uma travesti que se casou com um policial. Tem outra coisa: não sei se isso ajudou mesmo, mas as polícias começaram a implantar cursos, formações de policiais ensinando sobre as travestis.

— Pelo menos agora, não podem dizer que não sabem, não é?

— Mas eu acho que a maioria deles, como a sociedade em geral, não gostam da gente, não.

Hoje está tudo muito dividido; isso é perigoso também.....Temos mais solidariedade, luta, apoio, organizações, leis, mas tem um outro lado que é mais raivoso e violento ainda, inclusive essas pessoas religiosas, fanáticas.

— Poxa! Qual a saída?

— A saída que muitas escolheram, foi literalmente sair do país. Primeiro, muitas foram para França, ainda na época da ditadura. Depois, Itália, Espanha e outros países, principalmente na Europa. Mas nem sempre é fácil, muitas são deportadas até hoje, pois entram ilegalmente, ficam em situação irregular. E também sofrem preconceito, perseguição, não é só aqui não.... Tem o frio, as drogas....

— Parece que não tem muita saída…

— Houve melhoras, mas depende da gente ir construindo.....Tem muita coisa ainda para fazer: trabalho, educação, saúde, segurança, e por aí vai....

Nota n.1 - Esta crônica é uma reprodução literal do Capítulo "Alana, Suzi e a polícia" publicado In Donna: Vozes que ecoam. Organizadores: Heloisa Gracindo; Mary Pinheiro; Mônica Anjos - 1. ed. - Lagoa da Canoa, AL: IRDE Editora, 2022. 

Nota n.2 - Suzi está se referindo aos delegados José Wilson Richetti e Guido Fonseca; também, ao Coronel Erasmo Dias (que atuou como Secretário da Segurança Pública), em São Paulo. No Rio de Janeiro, o delegado José Gomes de Andrade; em Belo Horizonte, a Joaquim Ferreira Gonçalves, Secretário de Segurança Pública e o delegado Francisco de Assis Gouveia. Em Recife, ao delegado João Batista Acioly Sobrinho.

 


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