“Se
nossos filhos fossem ricos e não negros, pobres e favelados, os culpados já
teriam aparecido e nós teríamos sido tratadas de outra maneira” (Vera Lúcia
Flores Leite, mãe de Cristiane Souza Leite, 17 anos)[1].
Na
noite de 26 de julho de 1990, três garotas menores de idade e oito rapazes
(sendo cinco também menores) estavam em um sítio em Suruí, município de Magé (RJ),
quando homens encapuzados, identificados como policiais, os levaram de lá. Seus
corpos nunca mais foram encontrados, a não ser a Kombi de um deles, abandonada
nas proximidades.
Edméia,
mãe de Luís Henrique da Silva Euzébio (16 anos), uma das vítimas, foi
assassinada em 1993 no estacionamento da Estação de Metrô Praça Onze, após ter visitado
um preso no Presídio Hélio Gomes (Estácio) e, de acordo com as investigações,
ter dado importante passo na elucidação dos fatos.
Esse
caso se reveste de especial importância porque:
1
– Antecedeu uma série de outras chacinas (Candelária, Vigário Geral, Nova
Brasília etc.) e massacres (Carandiru, Eldorado dos Carajás, Corumbiara etc.)
que proliferaram na década dos 1990 e se tornaram famosos pela quantidade de
mortos.
2
– É precursor de um conjunto de ingredientes e características dos mais
variados casos que virão em seguida e até os dias de hoje, se não igualmente,
de forma análoga, em termos de padrões investigatórios, de impunidade, dentre
outros.
3
– Gerou o movimento “Mães de Acari” (em alusão ao fato de que a maioria das
vítimas morava na Favela de Acari, na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro). A
importância de seu surgimento, além do fortalecimento da luta, é que se trata
da primeira experiência desse tipo no Brasil, ao que se sabe; a semente de
tantas organizações e movimentos que surgiram como forma das mães lutarem
contra a violência do Estado, como ex., Mães de Maio, Rede de Mães e Familiares
da Baixada Fluminense, Mães em Luto da Zona Leste (SP), Mães de Curió, Mães de
Manguinhos, Mães de Maio do Cerrado, Mães do Xingu, Mães Mogianas, Rede de
Comunidades e Movimentos contra a Violência, Associação de Mães e Familiares de
Vítimas de Violência do Estado do Espírito Santo, dentre outras, num país de tantas
chacinas cometidas por agentes de segurança pública.
4
– Fez com que a mães tivessem que atuar como “investigadoras”, como acontece
até hoje e que neste caso isso custou a vida de Edméia. As mães cobram,
pressionam e fiscalizam para fazerem os processos e investigações andarem em
meio à tão conhecida morosidade e falta de vontade que redundam em impunidade e
injustiça. As mães fazem da luta o motor para aplacar a dor da perda de seus
filhos (e neste caso, em especial, num luto incompleto).
5
– As Mães de Acari, como a maioria delas nos demais casos, tiveram que lutar
contra a estigmatização e o preconceito de parcela da mídia (inclusive com matérias
repletas de erros e imprecisões), autoridades governamentais e jurídicas,
muitas vezes sendo chamadas de “mães de bandidos”, quando, na maioria dos casos
seus filhos não eram, e se fossem, não justificaria a execução. Trata-se de
sobreposição de lutas que elas têm que travar, e esta, com profundas
repercussões subjetivas; estratégia de criminalização com vistas a deslegitimar
e enfraquecer os movimentos de mães assim como tornar impunes os algozes, mas
as mães não desistem.
6
– Teve o mesmo script da maioria dos
casos: investigações superficiais e inconclusas, prescrição e arquivamento por
falta de provas, não punição ou absolvição dos réus, seguindo o padrão que as
mães bem conhecem. O inquérito deste caso prescreveu em 2010 e ninguém foi
indiciado.
7
– Revelou a impunidade e o acobertamento de grupos de extermínio compostos por
policiais civis e militares, como até hoje acontece. No caso da Chacina de
Acari, tratou-se de um dos mais famosos à época, os Cavalos Corredores, responsável
também pela Chacina de Vigário Geral.
8
– Acari continua sendo um local de corriqueira violência policial, tanto que o
relatório “Você matou meu filho!”, da Anistia Internacional (2015), embora
trate da violência policial em geral, retrata dez casos de mortes decorrentes
de intervenção policial na Favela de Acari; nove comprovadamente se tratam de execuções
extrajudiciais. O relatório é repleto de depoimentos de mães. A Anistia
Internacional atuou intensamente na chacina e na morte de Edméia, de várias
formas, inclusive com ações urgentes.
A
situação hoje em relação a esse caso é a seguinte: em 2011 o Tribunal de Justiça
do Rio de Janeiro denunciou sete pessoas (a maioria policiais militares,
inclusive um ex-comandante da PM e ex-deputado) pelo assassinato de Edméia. Em
2014 eles foram acusados de homicídio doloso e deveriam ser levados a júri
popular. Houve apelação à instância superior e até agora ninguém foi julgado.
Como afirmou Jurema Weerneck, Diretora-executiva da
Anistia Internacional Brasil, no ano passado:
“É inaceitável que, mesmo após 25 anos, o
assassinato de Edméia continue impune. Neste tempo, durante as últimas duas
décadas e meia, os possíveis responsáveis pela sua morte continuam andando
livremente e progredindo em suas carreiras como policiais, alguns chegando a
altos postos dentro da Polícia Militar”[2].
Para
conhecer o caso com profundidade proponho a leitura dos seguintes títulos:
Livros:
Nobre,
Carlos. Mães de Acari: uma história
de luta contra a impunidade. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. Com prefácio
da ex-primeira-dama francesa Danielle Miterrand.
Nobre,
Carlos. Mães de Acari: uma história
de protagonismo social. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; Pallas, 2005
Dissertação
de mestrado:
Araújo,
Fábio Alves. Do luto à luta: A
experiência das Mães de Acari. Dissertação de mestrado apresentada
no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia
e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro em julho de 2007.
Relatórios:
Anistia
Internacional. “Vim buscar sua alma”:
o caveirão e o policiamento no Rio de Janeiro. Londres: Anistia Internacional,
2006.
Anistia
Internacional. Você matou meu filho!:
homicídios cometidos pela Polícia Militar na cidade do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Anistia Internacional, 2015.
Matérias da Anistia Internacional:
Brasil: Vinte e cinco anos de impunidade alimentam
as mortes cometidas pela polícia no Rio de Janeiro.
https://anistia.org.br/noticias/brasil-vinte-e-cinco-anos-de-impunidade-alimentam-mortes-cometidas-pela-policia-rio-de-janeiro/
25
anos da chacina de Acari expõe crise aguda do sistema de justiça criminal no
Brasil. https://anistia.org.br/noticias/25-anos-da-chacina-de-acari-expoe-crise-aguda-sistema-de-justica-criminal-brasil/
26
anos da Chacina de Acari.
https://anistia.org.br/noticias/26-anos-da-chacina-de-acari/
Outras
matérias:
Após
25 anos, responsáveis pela chacina de Acari não foram punidos.
25 anos da chacina de Acari
expõe crise aguda do sistema de justiça criminal no Brasil.
http://www.justificando.com/2015/07/27/25-anos-da-chacina-de-acari-expoe-crise-aguda-do-sistema-de-justica-criminal-no-brasil/
A chacina de Acari.
https://www.noitesinistra.com/2013/08/a-chacina-de-acari.html
Mães
de Acari pedirão ajuda internacional.
https://oab-rj.jusbrasil.com.br/noticias/2298587/maes-de-acari-pedirao-ajuda-internacional
20
anos da chacina de Acari.
https://anovademocracia.com.br/no-69-100111/3099-20-anos-da-chacina-de-acari
Chacina
de Acari: manifestação contra arquivamento do caso reúne 150 pessoas.
https://extra.globo.com/noticias/rio/chacina-de-acari-manifestacao-contra-arquivamento-do-caso-reune-150-pessoas-160910.html
Vídeos:
[DVD TV] -
Crimes no Brasil - Chacina de Acari, em 1990.
https://www.youtube.com/watch?v=SQJpuHdEAPQ
Chacina
de Acari completa 25 anos em meio à discussão sobre impunidade.
Chacinas: Memórias de um passado
presente - Ep.05 (Acari)
https://www.youtube.com/watch?v=tGhQm7rIUs0
Então,
ao menos, saudemos essas guerreiras e precursoras mães dos “onze de Acari”:
Ana
Maria da Silva
Denise
Vasconcelos
Edméia
da Silva Euzébio
Ednéia
Santos Cruz
Joana
Euzilar dos Santos
Laudicena
Oliveira do Nascimento
Márcia
da Silva
Maria
das Graças do Nascimento
Marilene
Lima de Souza
Tereza
Souza Costa
Vera
Lúcia Flores Leite
Marilene, mãe de Rosana Sousa Santos (17
anos), já falecida (assim como Vera), afirmou certa vez:
“Ou você sai para as ruas e vai gritar a sua dor ou você fica
dentro de casa e fica chorando. E nós preferimos, tanto eu quanto Vera,
preferimos ir para as ruas e continuar gritando”[3].
[1]
Araújo,
Fábio Alves. Do luto à luta: A
experiência das Mães de Acari. Dissertação de mestrado apresentada
no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro em julho
de 2007.
[2]
https://anistia.org.br/noticias/brasil-vinte-e-cinco-anos-de-impunidade-alimentam-mortes-cometidas-pela-policia-rio-de-janeiro/
[3]
https://www.youtube.com/watch?v=SQJpuHdEAPQ