“Hoje a comunidade mudou, mudou muitas coisas, mas ficou a
marca, a marca daquela noite sangrenta, que para nós, família, não passou”
(Maria dos Anjos Pereira)[1].
Vigário
Geral, zona norte da cidade do Rio de Janeiro; como a maioria das comunidades Brasil
afora, é controlada por traficantes, daqueles que atuam no varejo, distantes de
quem realmente controla esse comércio e produção, os poderosos (quem são?) do
atacado. Lá, em 1993, o líder do tráfico era Flávio Negão, ligado ao Comando
Vermelho, e sempre de olho nos traficantes do outro lado da linha de trem que
separa Vigário Geral de Parada de Lucas, essa liderada, na época, pelo traficante
Robertinho de Lucas, ligado ao Terceiro Comando.
De
outro lado, a repressão ao tráfico, as polícias (sobretudo a militar e a civil),
e dentro delas aqueles grupos paralelos compostos por policiais (e
ex-policiais, informantes etc.) que utilizam essa condição e poder para
benefício próprio, como se sabe, há bastante tempo. Seria extensa a lista de ações
criminosas cometidas por esses grupos, extraindo recursos de maneiras criativas
e cada vez mais sofisticadas; os milicianos, nos dias de hoje, que o digam. Na
época, um dos grupos mais conhecidos, compostos por policiais civis, militares
(dos mais variados cargos e patentes) e não policiais, era o “Cavalos
Corredores”, com integrantes envolvidos na Chacina de Acari e da Candelária.
Uma das formas de atuação deles é a famosa “mineira” (daí o termo “polícia
mineira”), extorsão em cima do tráfico de drogas, sequestrando traficantes e
pedindo resgate ou recebendo propina na omissão/conluio em relação ao comércio
de drogas.
Nesse
fogo cruzado, alheios a essa disputa e envoltos na já cruel labuta pela
sobrevivência diária em nosso espoliador capitalismo selvagem, encontra-se a
população em geral da comunidade. Quantitativamente é maioria, mas controlada por
atores que detém o monopólio da violência, que vem das armas, tanto de um lado
como de outro (traficantes e policiais), que, embora antagônicos, também fazem
seus acordos.
Os
integrantes dos Cavalos Corredores sabiam que na noite de 28 de agosto de 1993
chegaria uma carga de cocaína de 67 kg para os traficantes de Flávio Negão. Por
volta das 9 horas da noite, na Praça do Catolé do Rocha, a 200 metros da
favela, alguns de seus integrantes já estavam a postos para a mineira. Pouco
depois, quatro deles estavam mortos, cravados de balas; o que tombou para fora
da viatura era o Sargento Aílton, lotado no 9º Batalhão da Polícia Militar, em
Rocha Miranda, considerado um dos líderes dos Cavalos Corredores e integrante
de um grupo que controlava a pesca na Baía de Sepetiba[2].
Dia seguinte, 29 de agosto, revolta geral no enterro do Sargento Ailton.
Policiais, ex-policiais, informantes, bombeiros etc. loucos de raiva de Flávio
Negão, que teria armado emboscada.
- Isso não pode ficar assim, temos que
fazer alguma coisa, diziam.
O sentimento de vingança predominava e
se concretizou.
Nesse
mesmo 29 de agosto, 39 dias depois da Chacina da Candelária, por volta das 23
horas, cinco homens passaram pela Praça Córsega num Santana verde metálico e
mataram um rapaz que estava numa moto, era o Fábio; em seguida incendiaram a
moto e se encontraram com vários outros na Praça Catolé do Rocha, onde morreram
os policiais na noite anterior, e incendiaram também cinco trailers de venda de cachorro-quente e refrigerantes. De lá, mais
de cinquenta homens encapuzados, munidos de ódio e metralhadoras, fuzis e
bombas, adentraram a favela pela Rua Antônio Mendes, entrada principal, em
frente à passarela sobre a linha do trem, que a liga à Parada de Lucas, e onde
deveria estar uma Guarnição do BOPE, como sempre acontecia. Por que justamente
naquela noite não estava?
Na
favela havia apreensão, mas, por outro lado, o jogo do Brasil; vitória por 6 a
0 sobre a Bolívia, carimbou a ida da seleção canarinho à Copa do Mundo dos EUA
(vencida pelo Brasil). Depois do jogo boa parte dos moradores foi dormir; outra
saiu para comemorar.
Os
Cavalos Corredores se dividiram em três grupos. Um deles entra no
Bar do Caroço, na Rua Antônio Mendes, de propriedade do aposentado Joacir,
interrompendo a euforia dos presentes pela vitória da seleção:
- Boa noite; quem trabalha? perguntaram.
- Aqui todo mundo, responderam
- Passem os documentos.
Em seguida, todos mostraram seus documentos. Não adiantou, os homens
saíram e jogaram uma bomba dentro do bar e começaram a atirar em todo mundo. Joacir
tombou logo de cara; o serralheiro José dos Santos também morreu no balcão, o
enfermeiro Guaracy caiu no salão, o ferroviário Adalberto e o metalúrgico
Cláudio tombaram no depósito e Paulo César foi assassinado em um corredor sem
saída. O motorista Paulo Roberto cambaleou e no banheiro caiu morto em cima do
eletricista Jady, que levou um tiro no peito, mas não morreu, ficou lá se
fingindo de morto. Sobreviveu também Ubirajara, que levou um
tiro no fêmur e se fingiu de morto. “Se me pegassem, terminariam o serviço”,
disse ele[3].
-
Aqui no bar já tá feito, disseram os algozes.
Não
satisfeitos, quase meia noite, foram para o outro lado da rua e invadiram uma
casa (que depois se tornou a “Casa da Paz”), onde morava uma família que há
pouco tinha chegado da Igreja. Era de propriedade do vigia Gilberto e da sua
esposa, a Jane, que dormia abraçada com a nora, a Rúbia, e as filhas Lúcia e
Lucinéia, no quarto. Todos assassinados. Na sala, outras filhas do casal
dormiam no sofá; Luciene foi estuprada antes de morrer e Lucinete tombou perto
da porta. Luciano, o outro filho do
casal, implorou para não morrer porque era trabalhador, pediram os documentos,
ele mostrou e em seguida foi executado.
Na casa tinha quatro crianças, uma dela é
Núbia, neta de Gilberto e Jane, com dez anos à época:
"Eu
estava dormindo e coloquei o lençol sobre o rosto quando eu acordei. Ainda
tentei descobrir o rosto, mas um policial já veio porque eles sabiam que eu
iria ver a cara deles. Eu não cheguei a ver nada, mas lembro que eles comentaram.
Eles falaram para eu não descobrir o rosto e encostaram o fuzil na minha
cabeça. E um deles falou: 'não descobre porque se você fizer isso eu vou te
matar'. Essa cena não sai da minha cabeça.
Eu
só me lembro de ver a minha irmã deitada no sofá. Eu até pensei que ela estava
dormindo e cheguei a balançar o corpo dela. Pedi para ela levantar. Mas quando
eu puxei a cabeça dela, caiu alguma coisa para o lado que sujou a minha roupa.
Caiu um pedaço de encéfalo ou de algo que eu não sei dizer. Eu não gosto nem de
lembrar. Essa foi a parte que mais me chocou porque eu ainda cheguei a tocar
nela. Cheguei a tentar falar com ela.
Peguei
a neném, chamei as outras crianças e saímos do quarto. Quando eu olhei para o
sofá, vi a minha tia que tinha acabado de ter bebê morta, imprensada no sofá.
Os peitos dela estavam vazando porque ela ainda estava na fase de amamentação.
Não foi só quem morreu. Nós também tivemos nossas vidas interrompidas. Muitos
têm trauma. Eu, inclusive, não saio na rua sozinha de jeito nenhum. É difícil
caminhar na rua porque eu sempre acho que tem alguém me seguindo ou me olhando.
Eu não posso trabalhar. E vivo de uma pensão que, pela lei, acaba aos 65 anos,
com a idade de aposentadoria”[4].
E entrando nas ruas e vielas, espalhados em grupos
foram executando quem encontravam pela frente. O gráfico Cleber ia para casa,
pediram seus documentos, ele mostrou e implorou para não morrer; não adiantou.
Cruzaram Clodoaldo e Amarildo:
- Mostra o documento!
Mostraram.
- Não quero saber de documento!
Foram executados.
Depois mataram Hélio, metalúrgico desempregado.
O mecânico Edmilson, com sua esposa e as duas
filhas, vinha da casa da sua mãe, onde tinha pegado uma marmita para o dia
seguinte porque o gás acabou; entraram em casa. Os policiais o chamaram, ele
foi e em seguida tombou morto.
Resultado: 21 mortos sem
antecedentes criminais ou qualquer ligação com o tráfico; mais vidas ceifadas em
regiões conflagradas. As repercussões subjetivas para os moradores e parentes
não podem ser medidas por indicadores, mas como isso impacta na qualidade de
vida!
Dia
seguinte; moradores em polvorosa, armados de paus, pedras e aos gritos não
deixaram os policiais entrarem; só aceitariam a retirada dos corpos, perícia
etc. com a presença do governador e o comandante da PM. Lá esteve Nilo Batista,
Secretário da Justiça do RJ à época. A retirada
dos corpos pelos bombeiros começou 12 horas depois, resultando numa imagem que,
veiculada nas mídias, chocou não só o Brasil, mas o mundo: os 21 corpos foram
expostos em caixões abertos de madeira (chamados de “marmita”), lado a lado,
sob os olhares da população atônita, em volta.
O
tempo foi passando, Zuenir Ventura afirmou o seguinte, em função de sua vivência
em Vigário Geral, a propósito do seu livro Cidade
Partida (lançado em 1994):
“Todas
as carências, carência sobretudo de cidadania, eu tive um choque cultural muito
grande porque eu esperava encontrar lá, depois daquela chacina de 21 pessoas,
absolutamente inocentes, nenhuma delas tinha nada a ver com o tráfico,
enfim...que eu ia encontrar uma comunidade cheia de raiva, de ódio, querendo
vingança, represália, e eu encontrei luto, encontrei dor só”[5].
E
aí veio todo o processo judicial; como acontece em geral, carregado de
omissões, incongruências, falhas processuais, injustiça e impunidade.
“21
tiros na justiça, 21 mortos em Vigário Geral”[6].
O
Ministério Público do RJ baseou a sua denúncia, toda ela, a partir dos
depoimentos de um informante (vulgo X-9) da Polícia Civil e que fazia parte dos
Cavalos Corredores. Apesar da baixa credibilidade de um processo (chamado de
Vigário Geral 1) baseado apenas em relatos (cheios de contradições, diga-se de
passagem) e não em provas concretas, e na pressa para se encontrar culpados, um
mês depois da chacina 28 policiais militares e 3 civis, além
de 2 informantes foram denunciados.
Um
dos 17 policiais presos preventivamente, por se julgar inocente, gravou várias conversas entre os demais, com muitas revelações até então
desconhecidas, inclusive sobre policiais participantes da chacina e não
indiciados. Perícia realizada pela equipe do Prof. Ricardo Molina, da Unicamp,
atestou a autenticidade da prova e, a partir dali, houve uma reviravolta no
caso, com a soltura de parte dos presos. O denunciante sofreu quatro atentados
e teve seu filho executado, aos 18 anos de idade.
Essa reviravolta levou à constituição
de um novo processo, em 1995, chamado de Vigário Geral 2, que denunciou mais 19
pessoas.
Dos julgamentos que se desenrolaram
restaram apenas 7 condenados; 2 responderam em liberdade condicional, 2 acabaram
absolvidos posteriormente por falta de provas, um foi assassinado em 2007 (ninguém
soube explicar porque ele estava solto quando deveria estar preso), outro fugiu.
Incrivelmente o único que se encontra preso (mas em regime semiaberto) não é
pela chacina, mas pelo cometimento de outros crimes (homicídio, assalto, roubo,
porte ilegal de arma e falsificação de documentos). Alguns nem foram julgados
porque morreram no curso do processo. É necessário lembrar, como agravante, que
esse tipo de crime, à época, ainda não era considerado hediondo.
O Brasil foi punido pela OEA como crime
contra os direitos humanos, exigindo reparação moral para sobreviventes e
familiares, o que acabou acontecendo de fato com o pagamento mensal de três
salários mínimos para cada uma dessas pessoas até os 65 anos de idade; no ano
2000 o Brasil foi absolvido perante a OEA.
Ao menos Vigário Geral teve a importância de fazer surgir
organizações e movimentos contra a violência nas favelas, como importante
instrumento de luta e conscientização.
“A
gente nunca havia pensado em violência como um assunto de mobilização social.
As campanhas eram em geral em torno de assuntos sociais, a fome, o emprego, os
salários, a democracia. A violência não era tema de movimento social; e nasceu
ali, falou-se assim: isso é demais, isso é um absurdo” (Rubens Cesar, do
Movimento Viva Rio)[7].
[1]
Documentário “Vigário Geral:
lembrar para não esquecer” (https://pmrj.wordpress.com/tag/chacina-de-vigario-geral-documentario-completo/).
[2]
Essa é a
versão oficial, atestada pelas investigações e Ministério Público, porém, foi
contestada pelo próprio Flávio Negão, conforme entrevista com Zuenir Ventura,
que está registrada no livro Cidade
Partida (São Paulo: Companhia das Letras, 1994), onde afirma que quem matou
os policiais foi um outro grupo de também policiais que tentou se antecipar àquele
que lá já estava. Segundo Flávio Negão, não conseguiram pegar a carga porque ele,
sabendo que o telefone estaria grampeado deu uma falsa informação e os
policiais caíram na emboscada. A carga veio por outro caminho.
[3]https://www.bol.uol.com.br/noticias/2013/08/29/se-me-pegassem-terminariam-o-servico-diz-sobrevivente-da-chacina-de-vigario-geral-em-1993.htm
[4]
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/08/29/sobrevivente-da-chacina-de-vigario-geral-diz-que-pm-queria-matar-criancas.htm?cmpid=copiaecola
[6]
Documentário “Vigário Geral:
lembrar para não esquecer” (https://pmrj.wordpress.com/tag/chacina-de-vigario-geral-documentario-completo/).
[7]
Documentário “Vigário Geral:
lembrar para não esquecer” (https://pmrj.wordpress.com/tag/chacina-de-vigario-geral-documentario-completo/).