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26 DE JUNHO: DIA INTERNACIONAL DE LUTA CONTRA A TORTURA

26 DE JUNHO: DIA INTERNACIONAL DE LUTA CONTRA A TORTURA
Cassiano Ricardo Martines Bovo
jun. 23 - 11 min de leitura
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“Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”.   

Trata-se do artigo 5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que tem uma consonância com o 26 de junho (Dia Internacional de Luta contra a Tortura) e com o Brasil. Tortura que nos acompanha desde sempre, entranhada em terras brasileiras desde os primórdios; tortura que não é apenas a da ditadura militar e dos seus aparatos de terror, mas a que vem antes e a depois dela; a tortura deste nosso cotidiano, utilizada como instrumento de punição, confissão, controle e opressão sobre, principalmente, corpos e mentes de pessoas pobres, negras e negros, indígenas, os das existências desviantes e afrontadoras do status quo, dentre outros; mas, a bem da verdade, todos podem ser suas vítimas.

Forjada desde o início como política de poder para manter o controle sobre escravos e escravas (indígenas e africanos), esse atentado à dignidade humana continua a nos envergonhar, desumanizando homens e deslegitimando instituições, sobretudo as de segurança pública e as Forças Armadas.    

Até o século XVIII, a tortura constava em lei, exposta que era em praça pública, tendo o pelourinho como seu símbolo e eternizada nas pinturas de Jean-Baptiste Debret, como as aquarelas “Feitores açoitando negros na roça” (1828) e “Aplicação do castigo do açoite”.Se na Europa do século XIX essa chaga já começava a cair em desuso e legalmente proibida, na esteira da Declaração do Direitos do Homem e do Cidadão (1789) da Revolução Francesa, aqui apenas se esboça alguma vergonha. Na Constituição Brasileira de 1824 a tortura fora proibida apenas para os homens livres (e mesmo assim, na prática, aos “bem nascidos”), continuando sua aplicação aos escravos, embora, legalmente, com algumas restrições.

É mais para o século XX que a tortura, no Brasil, passa por outro nível de envergonhamento, uma vez que vai se praticando às escondidas, nos mais recônditos porões, celas e ambientes privados, embora nem sempre seja assim. Foi ela largamente utilizada como política de repressão contra os que eram tidos como ameaça política no Estado Novo (1937-1945), de Getúlio Vargas, o que rendeu livros como Subterrâneos da Liberdade, de Jorge Amado, e Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, suas vítimas dentre tantas outras.

Passado esse período e sob o espírito da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), fruto das atrocidades do fascismo, nazismo e da guerra, poderíamos imaginar que ela sumiria de nossa terra; ledo engano; continuou largamente a ser utilizada; os esquadrões da morte já a denunciavam antes da ditadura militar; esquadrões estes que vão se encontrar com ela, sobretudo na figura do delegado Sérgio Paranhos Fleury.  

Como consta de muitas obras e relatórios, a ditadura militar (1964-1984) fez da tortura verdadeira política de combate aos ditos opositores. Sem entrar na tipificação da tortura, sob o plano legal ou conceitual (afinal, em geral, as pessoas sabem do que se trata...), e de forma bem sintética “O aparato da repressão criado no período em questão contou com estrutura física, pessoas, instituições e um corpo de leis, embasados ideologicamente pela Doutrina de Segurança Nacional”[1]. Alguns documentos significativos sobre a tortura nesse período: “Relatório sobre as acusações de tortura no Brasil” (Anistia Internacional)[2], “Brasil: nunca mais” (Comissão Justiça e Paz de São Paulo)[3], “Relatório da Comissão Nacional da Verdade” (em três volumes)[4], “Relatório Azul”[5], dentre outros.

Se se acreditava que depois da ditadura, com a capenga redemocratização, e a reboque da Constituição, chamada de cidadã, a tortura seria atenuada, mais uma vez: ledo engano. Como sabemos, apenas reconfigurou-se seu alvo predileto:

“No início da década de 80 ocorre uma mudança bastante significativa em relação às violações de direitos humanos; elas mudam de alvo, se antes estavam associadas principalmente aos opositores do regime militar, passam a centrar-se na população pobre e marginalizada das grandes cidades e no preso comum. Na verdade, essa parcela da população sempre foi alvo das forças de segurança, inclusive na época da ditadura (como é o caso do Esquadrão da Morte), porém agora todo o artefato repressivo volta-se para ela”. [6]

Se há uma área em que esse processo de redemocratização e arejamentos passa longe é a da segurança pública, que manteve a mentalidade, parte da estrutura e modus operandi da ditadura, abarcando as polícias civil e militar, as Forças Armadas, o sistema carcerário, dentre outros; e continuando a grassar a tortura como política de investigação.

O Incisos III (“ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”), XLIII (“a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”), XLVII (“não haverá penas cruéis”) e XLIX (“é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”)do artigo 5º da Constituição Brasileira (1988) punem a tortura, coerentemente com os documentos internacionais (pactos, convenções etc.) que o Brasil foi se tornando signatário relativos aos chamados direitos civis e os específicos à tortura, no âmbito do sistema ONU (Organização das Nações Unidas) e OEA (Organização dos Estados Americanos).  

O Brasil é signatário ao menos dos seguintes documentos: Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) e Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes e seu protocolo facultativo.

No plano interno, duas leis deram o substrato jurídico-penal necessário. A 8.072, de 1990, que tornou a tortura crime inafiançável e insuscetível de anistia, graça e indulto e a 9.455, de 1997 (chamada de lei da tortura). As duas leis adequam o crime de tortura conforme as exigências do artigo 5º da Constituição, a segunda, inclusive, criando a figura penal adequada, além de defini-la, uma vez que antes esse crime era punido apenas associado a lesões corporais, constrangimento ilegal, abuso de autoridade, maus tratos etc.  

Temos também a lei 9.140, de 1995, que, ao reconhecer as pessoas desaparecidas no regime militar, indenizar os familiares e instituir a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, também se vincula à questão da tortura.  A partir daí muitas iniciativas na forma de comitês e comissões, planos de ações, relatórios e outros documentos se sucederam, sendo que, talvez, a mais emblemática tenha sido a criação da Comissão Nacional da Verdade e as Comissões Estaduais da Verdade, com os elucidativos relatórios que, ao puxar os fios da memória, nos levaram a novas descobertas, aprofundaram e esmiuçaram questões relacionadas também à tortura, na luta pelas reparações[7].

Esse rol de ações e iniciativas nos daria a impressão que a árdua luta contra essa praga rapidamente seria vencida. Mais uma vez, ledo engano. Essa fratura só fez expor a contradição do sistema legal com a realidade cotidiana, neste país de belas leis e documentos.  O que se apresenta é a acumulação de denúncias e mais denúncias (que, como sabemos, estão bem aquém do real, pois apenas parcela das vítimas denunciam). A gravidade da situação desperta acompanhamento e monitoramento por parte da ONU, inclusive com a constituição de missões especiais de observação e relatoria, como em 2000, 2005 e 2015. Em todas elas a tortura é fartamente demonstrada nas instituições de segurança pública do país; nesse fatídico roteiro repetitivo, em 2017 se afirmou o seguinte, a respeito de relatório entregue às autoridades brasileiras em 24 de novembro de 2016, em função da visita em 22 prisões no país:

“Em entrevista ao site da revista Exame, o representante regional para América do Sul do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos (ACNUDH), Amerigo Incalcaterra, afirmou que a impunidade em casos de tortura praticados por agentes públicos contra presos se tornou regra — e não exceção — no sistema penitenciário brasileiro”[8].

Também, organizações como a Human Rights Watch, Justiça Global, Anistia Internacional, dentre outras, vêm, ao longo do tempo, publicando relatórios específicos sobre a questão, sendo que nos relatórios anuais desta última organização, na parte referente ao Brasil, todo ano se repetem as fartas menções à tortura.  


Por que o silêncio da sociedade brasileira (excetuando-se, claro, os atores que teimam na denúncia e na brava luta) para algo tão aviltante à dignidade humana? Por que a ausência de ações governamentais concretas, de peso (e não apenas legais e documentais), para eliminá-la? E a tentativa de silenciamento do que já se construiu e em vez de fazer prosperar, se obstrui? Será que boa parte da população, pela conivência, aceita esse suprassumo da covardia (e neste caso não nos fiemos nas pesquisas de opinião; obviamente as pessoas dirão que são contra a tortura)? 







(1) Bovo, Cassiano Ricardo Martines. A Anistia Internacional e as violações de direitos humanos no Brasil. São Paulo: Pensamento & Realidade, vol. 7, 2000, p. 23.


[2] Anistia Internacional. Relatório sobre as acusações de tortura no Brasil. Londres, Grã-Bretanha, 1974.

[3] Arquidiocese de São Paulo. Brasil: nunca mais. Petrópolis, RJ: Vozes, 1986.

[4] Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório/Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014.

[5] Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. Relatório Azul 1996. Porto Alegre, 1997.

[6] Bovo, Cassiano Ricardo Martines. A Anistia Internacional e as violações de direitos humanos no Brasil. São Paulo: Pensamento & Realidade, vol. 7, 2000, p. 29. Itálico no original.

[7]A Comissão Nacional da Verdade foi criada pela Lei 12528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012. A CNV tem por finalidade apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. (....) Em dezembro de 2013, o mandato da CNV foi prorrogado até dezembro de 2014 pela medida provisória nº 632” (http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/institucional-acesso-informacao/a-cnv.html).

 

[8] https://nacoesunidas.org/onu-impunidade-por-tortura-nas-prisoes-e-regra-no-brasil/

 



 



 


 





  





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