“-
Essa
cova em que estás,
com
palmos medida,
é
a cota menor
que
tiraste em vida.
-
É de bom tamanho,
nem
largo nem fundo,
é
a parte que te cabe
deste
latifúndio.
-
Não é cova grande,
é cova medida,
é
a terra que querias
ver
dividida”[1].
Concentração
fundiária, expropriação de terras, conflitos agrários, violência no campo, mortes
e mais mortes, e todo o sofrimento decorrente há muito povoam a mídia,
relatórios, livros e são cantados em prosa e verso, expondo os quadros das engrenagens
de poder e desigualdades de um Brasil com muita terra para poucos e pouca para
muitos.
Nem
bem as feridas de Colniza (MT), com seus nove mortos, se cicatrizaram, se é que
isso é possível, a 200 e poucos quilômetros de onde ocorreu o Massacre de
Eldorado de Carajás, aniquilando 19 trabalhadores rurais em 1996, tivemos outra
chacina a se somar à contabilidade nefasta dos corpos tombados nos embates pela
terra, 37 até o final de maio de 2017, um recorde[2]. E teríamos muitos outros
dados a apresentar a respeito da violência no campo, de acordo com respeitadas
fontes, num roteiro de raras punições aos responsáveis, sobretudo em casos
menos conhecidos.
O
Estado do Pará é território marcado nessa cruel geografia da morte, com seus
tantos acontecimentos ao longo do tempo. Vieram da Fazenda Santa Lúcia, no
município de Pau D’Arco (PA), mais vítimas dessa estatística macabra. Amontoados
e envolvidos em lonas pretas dentro de um pick-up, chegaram ao Instituto Médico
Legal de Paraupebas (PA) dez corpos, uma mulher e nove homens, dilacerados, cravados
de tiros na cabeça, costas e peito e vários hematomas indicando tortura. Foram
transportados antes que a perícia chegasse ao local que, mesmo assim,
encontraria a cena do crime completamente alterada, como se dá país afora, seja
no campo seja na cidade. Quase dois meses depois num processo de reocupação da
fazenda, mais um homem, que vinha sendo ameaçado, foi assassinado com três tiros
na cabeça[3].
“Isso
foi terrível, a própria desumanização, foi muito indigno a forma como chegou,
então uma segunda camada de violência foi adicionada, já foram mortos em um
contexto de massacre e os corpos chegam nessa situação. Então isso foi muito
chocante[4].
O
histórico de conflitos nos 5.694 hectares da Fazenda
Santa Lúcia vem desde 2013, quando se deu a primeira ocupação de trabalhadores
rurais, objetivando a reforma agrária e contando com uma malsucedida tentativa
de desapropriação por parte do INCRA em 2015. Originalmente pertencentes ao
Estado e fruto de processos de grilagem, se tornou propriedade da família
Babinski. Sucessivas ocupações e reintegrações de posse têm sido a marca de
conflitos que em algumas ocasiões chegaram às vias de fato no embate entre os
ocupantes e seguranças da contratada empresa Elmo, até que 24 dias antes da
chacina um deles foi morto pelos posseiros que ocupavam a propriedade, colocando
lenha na fogueira de um cotidiano clima de animosidade, que permeia as relações
entre os barões do agronegócio x trabalhadores rurais, usado de forma
interesseira pela mídia tradicional, a dos poderosos, numa região de várias
outras terras ocupadas.
Na manhã
de 24 de maio de 2017, 29 policiais, 21 militares
e 8 civis, incluindo dois delegados, entraram na Fazenda Santa Lúcia
com 14 mandados de prisão, busca e apreensão. O que teria acontecido naquela
vasta propriedade, a aproximadamente 600 metros da sede da fazenda onde 28 posseiros
estavam acampados sob intensa chuva?
Na batalha de
versões, vejamos os dois extremos: policiais x posseiros.
No mesmo dia os
policiais envolvidos tornaram pública a sua versão, e ela é bem conhecida, se
repete em quase 100% dos casos: fomos recebidos a bala, houve confronto,
tivemos que reagir, não teve outra alternativa: matar ou morrer, legítima
defesa.
De acordo om o coronel Sérgio Alonso, chefe-geral
do Departamento de Operações da Polícia Militar “Os pistoleiros reagiram e
receberam os policiais a bala"[5].
Apesar de que
nenhum policial recebeu um tiro sequer....
A Secretaria de
Segurança Pública do Pará, apontou a necessidade de investigação e espera pela conclusão
do inquérito, mas deu bastante ênfase ao fato de que alguns mortos (quatro)
tinham mandado de prisão, que não se tratava de trabalhadores rurais e que 11
armas, pistolas e fuzis, foram apreendidas na operação.
Sabemos que às
vezes é assim mesmo, como os policiais contaram, mas outras vezes, não. E nesse
caso? Temos ciência também da importância do ofício policial e que enfrentam as
mais variadas agruras entranhadas em questionáveis condições de trabalho, têm
direitos violados e estão imersos em instituições que prezam uma cultura de
desumanização sob a lógica da guerra, que, como é evidente em todas elas, ceifa
vidas, muitas inocentes, bestamente.
Quinze
sobreviventes (dois, inclusive feridos), muitos viram os acontecimentos frente
a frente. E dizem algo completamente diferente, nos vários depoimentos colhidos
em várias instâncias investigativas. Todos admitiram que estavam armados, mas
não houve qualquer possibilidade de reação. A maioria afirma algo do tipo: “A
polícia chegou atirando”[6]. E relataram cenas
chocantes de pessoas dominadas e em seguida executadas, sob humilhação e
xingamentos, inclusive a única mulher morta, Jane Julia de Oliveira, presidente da Associação dos Trabalhadores
Rurais de Pau D’Arco, que teria sido torturada antes de morrer.
Mas serão
as versões com ares de cientificidade, embasadas em investigação e perícia -
que se espera sérias para serem legítimas -, é que podem iluminar a cena e
apontar para um veredito.
Dada
a repercussão e gravidade do caso as seguintes instituições estiveram – às
vezes articuladas – no processo de investigação: inquéritos nas Polícias Civil (Departamento de Operações Especiais) e
Militar (Corregedoria), Polícia Federal (a pedido do Conselho Nacional de
Direitos Humanos), Ministério Público do Pará (MPPA), Procuradoria-Geral de
Justiça, além do aporte pericial do Centro
de Perícias Científicas Renato Chaves (CPC), acompanhamento do
Ministério Público Federal, Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e a
delação premiada de um delegado e um agente da Polícia Civil.
Inicialmente, os policiais envolvidos
foram afastados de suas atividades e logo depois presos temporariamente.
A
construção da narrativa do confronto e legítima defesa sofreu um
abalo logo de cara, com os laudos da investigação inicial da Polícia Federal e,
a partir daí, essa versão foi sendo paulatinamente descontruída a cada nova
prova, geradas por parte dos atores investigativos até que, em julho de 2017,
em entrevista coletiva, integrantes do MPPA, costurando as provas e
procedimentos (laudos periciais, exames, audiências, delações, depoimentos,
reconstituições etc.), concluíram que não houve confronto, mas, sim, um
planejamento para matar. Os posseiros não atiraram e, portanto, ocorreu uma
execução, sem qualquer indício de resistência por parte das vítimas.
“Não
houve confronto. No decorrer das investigações e com a delação de dois
policiais civis, nós concretizamos a hipótese inicial de execução, que foi
materializada”, afirmou o promotor Alfredo Amorim”[7].
"Há fortíssimos indícios
que houve execução. Não foi legítima defesa", disse o Secretário de
Segurança Pública do Pará, Jeannot Jansen”[8].
E o delegado geral Rilmar Firmino emenda: "Pelas provas técnicas que temos hoje, não houve confronto"
(...) "Quando você começa a cruzar informações que tem, está
desconstituída qualquer ação que foi falada inicialmente"[9].
Como decorrência, 17 policiais, 4 civis e 13
militares foram denunciados e a prisão temporária de treze, 2 civis e 11 militares
foi decretada, o que foi acatado pela Justiça Estadual, porém estes já estavam
presos sob a alegação de que poderiam atrapalhar as investigações
e ameaçar testemunhas, mas foram soltos em junho de 2018, com algumas
restrições a serem respeitadas. Os dois policiais em delação premiada respondem
em liberdade e sob proteção.
Na
caminhada investigativa ficou comprovado, além do já dito, que cinco pessoas
morreram a partir das balas de uma arma (“fria”) não encontrada, havia
cadáveres algemados, a maioria das vítimas foram mortas à queima roupa, de cima
para baixo e a pouca distância, não se encontrou resquícios de pólvora na mão,
seguranças armados da fazenda participaram da chacina, não há qualquer registro
de impactos de projéteis nos coletes à prova de balas e nem nos automóveis dos
policiais envolvidos.
Foi
constatado que as equipes da PM e da Polícia Civil agiram separadamente e,
mais, os dois agentes civis em delação premiada disseram “que
assistiram à execução de quatro pessoas e que os policiais militares fizeram um
pacto de ocultar a verdade (...) ou o delegado participava da matança para ser
cúmplice e sustentar a versão de confronto, ou eles seriam mortos ali pelos
militares e apresentados como vítimas dos posseiros (...) Ele tentou manter o acordo, mas definhou nas
semanas seguintes, durante a reconstituição do crime que reuniu 80 atores no
meio da Floresta Amazônica’’[10]
E:
“Quando
os policiais civis chegaram ao local do crime, foram abordados pelos policiais
militares, que diziam ‘E aí, delegado, como é que vai ser? Não pode sair
ninguém vivo daqui’, num claro sinal de intimidação’, contou o promotor de
justiça Alfredo Amorim, que coordena o processo investigatório. ‘A intimidação
era para que os policiais civis aderissem aos crimes ou poderiam se tornar
vítimas também’, completou”[11].
Finalmente
em fevereiro de 2019, e não restando mais dúvidas, a juíza Elaine Neves de
Oliveira, da Vara Criminal da Comarca de Redenção, profere o veredito, extenso
e detalhado, demonstrando ponto a ponto, com as sustentações periciais
existentes, que a tese do confronto e legítima defesa não se sustenta: “a
motivação torpe restou comprovada pelos depoimentos que apontaram para o
cometimento de humilhações, espancamentos e prática de tortura e a forma de
abordagem dos policiais, por sua vez, revelou o uso de emboscada e, ao mesmo
tempo, impossibilitou a defesa dos ofendidos”[12].
A juíza pronunciou à Justiça 16
policiais que serão levados ao Tribunal do Júri em data a ser marcada.
"Nós estávamos certos, o povo estava certo, as
vítimas estavam certas. As polícias militar e civil entraram (na fazenda) para
massacrar os trabalhadores rurais", diz o Padre Paulino Juanil, da Comissão
Pastoral da Terra[13].
Ao longo de todo o processo várias
organizações se manifestaram e denunciaram atuando como atores de pressão.
Seria entediante e passível de injustiças, sob risco de omitir alguém, elencar
a extensa lista, que se soma, inclusive, a vários eventos ocorridos. Que se
continue nessa toada para que não se caia na impunidade, pois, como sabemos, seja quem fossem os mortos (posseiros, grileiros, trabalhadores
rurais etc.) a espinha dorsal da mensagem que se busca emanar nessas execuções é
o silenciamento da luta pela terra em um dos países de maior desigualdade
fundiária do mundo. Cada morte no campo faz tocar o alarme de que algo está
errado, tem gente que quer produzir, mas não consegue terra, e muitos que a
tem, sequer produzem.
Neste
episódio específico uma coisa ainda não ficou clara e deve ser investigada e
esclarecida: qual a relação entre policiais civis e militares com os grandes
proprietários de terras da região? Tem mais gente por trás da chacina?
[1] Melo Neto, João Cabral de. Morte e Vida Severina. In: Obra
completa. Rio de janeiro, Editora Nova Aguilar S.A., 1995, p.183.
[2]
Além disso, “No estado do Pará, 18 pessoas foram
assassinadas no campo, em menos de dois meses, segundo dados da CPT” (https://www.brasildefato.com.br/2017/06/05/chacina-de-sem-terra-em-pau-darco-e-parte-da-sangrenta-historia-de-conflitos-no-pa/); “Outros 5 casos ainda estão sob
investigação da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e não foram inseridos no banco
de dados da entidade (https://observatoriomassacrepaudarco.wordpress.com/2017/06/16/revista-forum-os-altos-indices-de-assassinatos-de-trabalhadores-rurais-no-brasil/)”.
[3]
Trata-se de Rosenildo Pereira
de Almeida, conhecido como Negão.
[4]
Igor Machado, agente da
Comissão Pastoral da Terra. https://www.brasildefato.com.br/2017/06/05/chacina-de-sem-terra-em-pau-darco-e-parte-da-sangrenta-historia-de-conflitos-no-pa/
[5] http://www.diarioonline.com.br/noticias/para/noticia-417825-corregedoria-da-pm-vai-apurar-acao-de-policiais.html?v=587
[6] https://observatoriomassacrepaudarco.wordpress.com/2017/05/29/reporter-brasil-sobreviventes-de-massacre-no-para-descrevem-execucao-e-tortura/
[7] https://observatoriomassacrepaudarco.wordpress.com/2017/07/11/mppa-apos-prisao-de-policias-ministerio-publico-vai-apurar-indicios-de-execucao-de-agricultores/
[8]
https://g1.globo.com/pa/para/noticia/governo-do-para-afirma-que-vitimas-de-chacina-em-pau-darco-foram-executadas.ghtml
[9]
https://g1.globo.com/pa/para/noticia/governo-do-para-afirma-que-vitimas-de-chacina-em-pau-darco-foram-executadas.ghtml
[11] https://observatoriomassacrepaudarco.wordpress.com/2017/07/11/mppa-apos-prisao-de-policias-ministerio-publico-vai-apurar-indicios-de-execucao-de-agricultores/
[13]
https://g1.globo.com/pa/para/noticia/testemunhas-de-chacina-em-pau-darco-dizem-que-operacao-policial-teve-participacao-de-segurancas.ghtml