“Tive
a sensação de estar em um lugar onde os direitos humanos não existem” (Salil
Shetty, à época Secretário-Geral da Anistia Internacional, ao visitar uma
comunidade guarani-kaiowá[1]; afirmação, aliás, que
pode se aplicar ao país de maneira generalizada).
A
BR-163 é uma estrada longitudinal que liga o Rio Grande do Sul ao Pará,
atravessando celeiros do agronegócio. Nessa rodovia, desde os 1990, se observa
indígenas da etnia guarani-kaiowá precariamente habitando suas beiradas,
sobretudo na região de Dourados, Mato Grosso do Sul. As tendas atreladas a
estruturas de madeira, mesas e sofás ao relento, expõem uma das muitas facetas
de uma violência, violações de direitos e descaso que acompanham esse povo
desde quando passaram a “atrapalhar” os ciclos de expansão do agronegócio, que
se vangloria dos dólares gerados para balança comercial do Brasil, neste caso,
à custa de vidas e sofrimento. A busca dos guarani-kaiowá pelas suas terras ancestrais,
de forma incrivelmente pacífica, mas obstinada, imprime em seus corpos e almas
o legado de crueldades sofrido pelos indígenas em geral no país.
“Não
se passa um mês sem que a Anistia Internacional receba novas denúncias de
violações contra as comunidades Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul. Ao longo
da última década, nossa organização registrou assassinatos, ameaças de morte
contra líderes indígenas, trabalho escravo, desnutrição, remoções violentas e a
destruição de plantações e propriedades. Com processos judiciais emperrados,
mais de mil famílias vivem à margem das rodovias. Têm sido ameaçadas por
seguranças contratados para impedi-las de tentar reocupar suas terras, e sofrem
com problemas de saúde por causa da vida em abrigos temporários, sem
assistência médica. Além disso, muitos foram mortos e feridos em acidentes de
trânsito”[2].
Resultado:
elevadas taxas de mortalidade, desnutrição infantil e de suicídio[3], sobretudo entre os jovens,
o alcoolismo pela falta de perspectivas, a pobreza extrema, dentre outros.
Guaranis-kaiowá, espalhados no sul do MS são constantemente acossados e sob risco iminente de morte pelas ações de capangas,
pistoleiros, seguranças, vigilantes, seja qual o nome que se queira dar, a mando
de fazendeiros e empresários, que derrubam, queimam, destroem casas,
plantações, locais sagrados etc., espancam, matam, ferem e sequestram,
inclusive crianças, que, desde pequenas, já viram muitos dos seus morrerem. Damiana
Cavanha, cacique da comunidade Apika’y e vivendo à beira da BR-163, já teve
nove parentes assassinados. De acordo com o relatório do CIMI (Conselho
Indigenista Missionário), de 2003 a 2016, 444 indígenas foram assassinados no
MS, o que corresponde a 44% do total do país, no período[4].
“Todos soltavam
rojões, atiravam de revólver e soltavam bombas, com umas armas na direção das
nossas barracas. Só se ouvia crianças e mulheres chorando de desespero [...]. Enquanto
isso, pegaram o cacique Marcos Verón na outra barraca e começaram a espancar e
dar chutes nele até [ele] cair no chão. Depois de caído no chão, ainda cada um
deles dava chutes no cacique. Depois [que o] cacique estava agonizando no chão
pela boca, eu gritava para eles deixarem de bater nele por que ele é velho e
aposentado [...] Enquanto isso, vi o meu pai recebendo a última coronhada na
cabeça e no rosto. Até não se mexer mais [...]”[5].
Como se chegou a
essa situação?
Na
segunda metade do século XIX os guarani-kaiowá sofreram o avanço da cultura da
erva-mate sobre suas terras e experimentaram as agruras do convívio com os
brancos: sucessivas expropriações, trabalho escravo ou disfarçado de
assalariado; primeiras tentativas de aculturação. A partir dos 1940, sob o
eufemismo de uma colonização desenvolvimentista, foram experimentando as
violências, mortes e sofrimentos das “marchas para o Oeste”, baseadas na
agropecuária, sendo as mais intensas a da soja a partir dos 1970, altamente
mecanizada, e a da cana de açúcar nos 1980.
O
que lhes aconteceu beira à acumulação primitiva narrada em O Capital, por Karl Marx, em que os donos originários da terra são
expropriados, destituindo-os dos seus meios de produção, não só para que outros
tenham a terra, mas também, sobretudo, para que se tornem mão de obra
explorável para geração da mais-valia. O trabalhador assalariado só pode surgir,
como nos ensinou o autor, se aqueles que perdem os seus meios de produção não têm
outra alternativa de sobrevivência se não a venda do que lhes resta: sua força
de trabalho. Os guarani-kaiowá foram forçados a se tornar mão-de-obra barata
num sistema que nada tem a ver com seu modo de vida tradicional. Até hoje
parcela significativa deles resiste.
A
“solução” governamental, aplicada a partir dos 1950, foi sua transferência
compulsória para oito reservas criadas em território sul mato-grossense,
consideradas pela Organização das Nações Unidas como espaços de confinamento,
como a de Dourados, que abrigou em torno de 16.000 deles em cerca de três mil
hectares, considerada a maior área de confinamento indígena do mundo[6].
Para
esse povo as terras ancestrais têm valor simbólico inestimável, é lá que estão
enterrados seus antepassados, precisam estar junto deles para praticar
plenamente sua cultura. No final dos 1990, resolvem retomar suas terras, saga
chamada de retomada, começam a sair
das reservas em busca da tekoha (“lugar
onde se é”). Saem das reservas e começam a voltar para suas terras ancestrais,
de preferência o mais próximo possível dos cemitérios onde estão os seus
antepassados. Formam-se comunidades onde os guarani-kaiowá vivem de forma
precária e em conflito, acossados fisicamente por aqueles que se dizem os
verdadeiros donos das terras, e quando não têm outra alternativa, ficam onde
conseguem, como em beiras de estradas. Isso dá a errônea (quando não colocada manipulatoriamente)
ideia de que se trata de um povo nômade, como dizem alguns. Nada mais falso.
Nomadismo é diferente de processos contínuos de expulsão. São eles os
invasores? Ou o contrário? Algumas comunidades: Apika´y, Laranjeira Ñanderu,
Takuara, Y’poí, Ita’y Ka’aguyrusu, Kurusú Ambá, Jatayvary, Ñande Ru Marangatu,
Passo Piraju, Tey’ikue, Amambaipeguá, Teyi Jusu-Caarapó, Kunumi Vera, Guapoy,
Guyra Kambiý, Guaiviry, Yvy katu, Cerro Marangatu, Jaguapiré etc.
vista
pelos indígenas do país como determinante na luta pelo seu direito à terra, a
base legal para a regularização e o registro. Estando eles no coração dos
interesses dos caciques do agronegócio, as perspectivas não são as melhores. E
o Brasil ainda é signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do
Trabalho,
que assegura os direitos dos povos indígenas e da Declaração da ONU sobre o
Direito dos Povos Indígenas. Em 2007 o país foi protagonista no processo de
criação desse documento, com belos discursos e promessas, destacando a
importância dos indígenas na sociedade, se gabando por ter uma Constituição que
garante direitos aos índios e existir um órgão (FUNAI – Fundação Nacional do
Índio) que supostamente atua em prol deles, embora geralmente sem recursos. A
legislação no marco internacional exige a participação dos indígenas nas
discussões e processos que os atingem, ouvindo-os, consultando-os e isso expõe
a gritante distância entre a lei e a situação concreta, num país de conquistas
de papel.
Em
geral, os Termos de Ajustamento de Conduta, primeiro passo para as demarcações,
quando relativas aos guarani-kaiowá, dificilmente são concluídos; comumente, no
meio do caminho, algum procedimento jurídico (liminares, suspensões etc.)
interrompe o processo em prol de governantes estaduais e municipais,
fazendeiros, empresários e congressistas da chamada bancada ruralista, mesmo
com as denúncias, pressões, alertas e ações de vasta gama de atores, tais como
a ONU, Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ONGs, CIMI, APIB (Articulação
dos Povos Indígenas do Brasil), a própria FUNAI, dentre outros. Em março de
2013, por ex., 88 organizações assinaram o documento Manifesto Pela Vida –
Solidariedade e Defesa dos Povos Indígenas em Mato Grosso do Sul. A ONU lançou um documentário (Guarani e
Kaiowá: pelo direito de viver no Tekoha)
e um relatório (2009);a Anistia Internacional
publicou outros ao longo do tempo (quando não específicos aos guarani-kaiowá,
ao menos com capítulos e seções a respeito), além de ações
urgentes, notas públicas; e esse povo foi um dos casos da Campanha Escreva por Direitos de 2013 (mais especificamente a
comunidade Apika’y), além da conexão com a Campanha em curso chamada Coragem, relativa aos defensores dos
direitos humanos.
Em
meio a tudo isso, mortos e feridos foram se sucedendo. Marçal de Souza,
conhecido como Marçal Tupã-i, guarani nhandeva que ficou famoso
ao discursar para o Papa João Paulo II, em sua primeira visita ao Brasil (1980),
disse:
“Este
é o país que nos foi tomado. Dizem que o Brasil foi descoberto. O Brasil não
foi descoberto, não, Santo Padre, o Brasil foi invadido e tomado dos indígenas.
Esta é a verdadeira história. Nunca foi contada essa verdadeira história do
nosso povo. Eu deixo aqui o meu apelo de 200 mil indígenas que habitam e lutam
pela sua sobrevivência neste país tão grande e tão pequeno para nós...”[7]
“Queremos
dizer a Vossa Santidade a nossa miséria, a nossa tristeza pela morte dos nossos
líderes, assassinados friamente por aqueles que tomam o nosso chão, aquilo que
para nós representa a nossa própria vida e a nossa sobrevivência neste grande
Brasil, chamado um país cristão”[8].
Em 1983 Marçal é
assassinado a tiros, seus algozes julgados e absolvidos dez anos depois. Enquanto
o mundo olha perplexo o que acontece com os guarani-kaiowá, muitos outros
tombaram e restaram feridos, inclusive crianças.
Os
anos de 2015 e 2016 foram de acirramento de tensões nas comunidades
guarani-kaiowá, violências, despejos, calúnias e mentiras se espalharam, somando-se
às investidas legislativas. Em outubro de 2015 a PEC (Projeto de Emenda
Constitucional) 215 é ressuscitada na forma de um substitutivo, propondo medidas
que atingem o processo de demarcação: passar para o Congresso Nacional as
decisões sobre as demarcações e proibindo sua ampliação, o que, na prática,
tira do Executivo (e fundamentalmente da FUNAI) as ações nessa área,
transferindo-as para os interesses da bancada ruralista e do agronegócio no
Legislativo. Além disso, a PEC 215 cria o chamado marco temporal, que elimina
discussões sobre demarcação de terras indígenas que estão em áreas tomadas
depois da promulgação da Constituição, medida parece que feita para atacar
efetivamente os guarani-kaiowá, uma vez que eles foram expulsos de suas terras
ancestrais e iniciaram as retomadas depois da Carta.
Fiquemos então com
as palavras de Vincent Carelli, diretor do belíssimo documentário Martírio, sobre os guarani-kaiowá:
diante da beleza dos seus mantras, do carinho com que tratam dos seus aliados, da sua alegria de viver para além da penúria material em que vivem, do desprezo e do ódio que os cercam, da violência que sofrem. Daquele dia em diante, toda vez que deixo uma aldeia, e não foram poucas, sou tomado pela mesma comoção”.
* “Estrangeiros em nosso próprio país” é parte do título do relatório “Brasil – Estrangeiros em Nosso Próprio País”: Povos Indígenas do Brasil, publicado pela Anistia Internacional em 2005; AI Index: AMR 19/002/2005.
[1] https://anistia.org.br/noticias/brasil-o-iminente-despejo-forcado-dos-guarani-kaiwoa/
[2]
https://anistia.org.br/guarani-kaiowa-margem-dos-direitos/ [3]
“O índice de
suicídio entre os Guarani-Kaiowá é 34 vezes maior do que a média do Brasil e um
dos mais altos do mundo” (https://anistia.org.br/noticias/presidenta-dilma-proteja-os-direitos-dos-guarani-kaiowa-e-conclua-demarcacao-de-suas-terras-ancestrais/).
“Entre 2000 e 2015 mais de 750 guarani-kaiowá cometeram suicídio” (https://www.youtube.com/watch?v=ED5rHU1YEKE).
[4]
Conselho
Indigenista Missionário. Violência contra
os povos indígenas no Brasil – dados de 2016.
[5] Anistia Internacional. ‘Sabemos dos nossos direitos e vamos
batalhar por eles’: direitos indígenas no Brasil – os guarani-kaiowá. AMR
19/001/2011, novembro de 2010.
[7] Prezia, Benedito. Marçal Guarani: a voz que não pode ser esquecida. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011, p. 10.
[8] Op. cit., p. 13.