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Variantes

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Vicente Roberto Serroni
abr. 24 - 39 min de leitura
010

             A cidade vivia tempos de pandemia, mas São Paulo não conseguia parar, mesmo com tantas restrições e o perigo do contágio devido a rapidez provocada pelas variantes do coranavírus. A noite esforçava-se para chegar em meio aquela rotina diária composta de muito barulho, corre-corre e tanta pressa. Por detrás dos elevados a neblina surgia tímida, mas possessiva, enquanto sob as marquises o espanto se escondia atrás de muitas máscaras. As lotações causavam medo, o tráfego era intenso com suas buzinas agredindo os ouvidos. Uma insistente fumaça negra a querer cegar os olhos das pessoas mostrava ainda o quanto é preciso evoluir para que o meio ambiente seja um pouco mais saudável.

                        Em meio a essa confusão do cotidiano, parado no local de embarque do trem de metrô da Estação Sé um rapaz observava o movimento com um olhar absorto, distante. Esse pequeno transe durou pouco porque a luz indicando que o trem estava chegando já podia ser vista a poucos metros de distância. Como a maioria dos metrôs este também estava lotado, não havia vírus que intimidasse tantas pessoas. Sujeitou-se ao empurra-empurra e encostou-se ao final do corredor do seu vagão, ficando a observar o que acontecia dentro daquele veículo, um falatório alto, reclamações políticas, econômicas e discussões cuja pauta era a pandemia que se arrastava há muito tempo.

                        O jovem que aparentava ter entre 30 e 35 anos, mantinha-se quieto diante de todo aquele murmurinho, mudando sua fisionomia sempre que as paradas do metrô o obrigavam a se segurar para não cair. A viagem já estava quase em seu destino final, por isso foi se preparando para descer e do modo como entrou, saiu, deixando para trás toda aquela gente que ainda tinha muito que falar. Vila Maria era um bairro acolhedor e pelo menos naquele horário tudo estava calmo, pouco movimento e poucas pessoas nas ruas. O rapaz não caminhou tranquilo alguns quarteirões, chegando até um pequeno portão cuja tinta o tempo havia se incumbido de desbotar. Hesitou um pouco para entrar. Acabou apertando a campainha que ficava um pouco escondida entre folhagens. De dentro da casa vinha um som melodioso de violão, que interrompido fez surgir outro jovem para abrir a porta.

                        --- Olá garoto, voltou mais cedo do que imaginava. Entra, mas vai lavar essas mãos primeiro e deixar o tênis lá no quintal. E coloque a máscara porque sei que você veio naquele metrô lotado.

                        --- Tá bom, tá bom, mas você sabe que me cuido bastante, uso duas máscaras meu amigo e álcool gel direto. Mas porque tanto medo, você já está vacinado!

                        --- É, mas essas variantes que estão aparecendo são muito perigosas, não dá para facilitar!

                        Depois de seguir as regras sanitárias da casa, o jovem sentou-se numa poltrona buscando um descanso porque seu dia havia sido longo e cheio de emoções.

                        --- Vai contando como foi o seu encontro. Correu tudo bem com o parto? Diz aí, menino ou menina?

                        --- Não vou ficar de máscara não, você tá protegido. Não consigo ficar falando com ela. Mas respondendo sua pergunta, é menina!

                        --- Eu já sabia, tinha um pressentimento de que seria menina mesmo! Sei que criança quando nasce é tudo igual, mas se parece com quem?

                        --- Não cheguei a vê-la

                        --- Verdade? Mas e você e a Ana Vitória, conversaram. Está tudo bem?

                        --- Não, nem entrei no quarto, trocamos algumas mensagens no whatzapp, só isso.

                        --- Como assim mensagens Matheus, que coisa mais fria. Você não pode entrar no quarto, é isso?

                        --- Ela decidiu tomar outro rumo. Ana é independente, tem grana, a família é influente, não tem espaço pra mim nessa nova história dela.

                        --- Ivan, que nova história? O que está acontecendo? Tinha certeza que depois dessa gravidez ia ter casório. Cara realmente estou surpreso com o desenrolar dessa história. Mas espera aí, você aceitou assim, de bate pronto?

                        --- Nem discuti.

                        --- Mas devia ter discutido, afinal você é o pai, vai ter direitos sobre essa criança também, ou não?

                        --- Ela decidiu assim, que assim seja, entendeu?

                        --- Não, não entendi. Tá muito estranho tudo isso, vocês se amam cara, é muito lindo tudo o que vocês viveram até agora! É isso, ou estou enganado?

                        --- Entre as explicações dela veio a velha história de que é mais velha, que eu tinha que pensar no meu futuro, como se ela também não tivesse a vida inteira pela frente.

                        --- Tem “angu nesse caroço”, não existe essa história de mais velha, quantos anos? Porcaria, três ou quatro anos, perfeitamente normal. Se fossem mais também não tinha nada a ver, hoje essa questão de idade já está superada!

                        --- Ivan não vivemos mais um normal, estamos mesmo é em um novo normal, essa pandemia mexeu com tudo, com tudo! Está mexendo com a cabeça das pessoas, mexeu com a dela, com a minha, com a sua, com a de muita gente.

                        --- Também não é assim, isso não pode influenciar nas decisões de vocês.

                        Ivan balança a cabeça num gesto de discordância.

                        --- Vou tomar um banho, é o que preciso fazer agora pra relaxar – diz Matheus.

                        --- Vai lá, a Bia foi buscar comida, deve estar chegando. Mas cara, ainda acho...

                        --- Esquece Ivan, esquece!

                        --- Conheço bem você amigo, está aí dando uma de durão, mas está se arrebentando por dentro.

                        --- Amanhã é outro dia!

                        --- E daí?

                        --- E daí que o futuro a Deus pertence, não é assim que se fala?

                        --- O seu futuro é ao lado da Ana Vitória e da sua filha, esse é seu futuro!

                        --- Neste “novo normal” a decisão foi dela, vivemos uma nova era meu amigo!

                        --- Matheus, filosofia barata, pode parar. Essa sua fuga não passa dessa noite sabia? Conheço esse seu sorrisinho sarcástico, quando você cair na real...

                        --- O real que vá pra merda Ivan, se não fosse o real eu não estaria aqui.

                        --- Você não vai voltar a pensar assim, vai? Qual a solução, você não poderia ficar a vida inteira preso àquela cidade, àquele passado, àquele acidente. Você é muito fera meu amigo, tem um futuro promissor!

                        --- O futuro está longe Ivan, deu pra sentir não deu? Olha aí, quando penso que tudo vai dar certo...

                        --- Você se deixou levar, quer saber de uma coisa? Cara sinto te dizer isso, mas dessa vez você foi um fraco, aceitou passivamente e ainda diz que não vai lutar. Vai lá, chuta o pau da barraca, invade, marca seu território, você não é essa pessoa que está se mostrando ser.

                        --- Esqueceu-se que ela é uma socióloga, PHD, doutora, etc, etc...

                        --- Á merda essa sociologia, esse monte de adjetivos, isso não é desculpa. Tenho certeza que tem influência da família nisso aí, tem ou não tem?

                        --- Sei lá, minha cabeça está confusa, mas vai ficar tudo bem.

                        --- Pelo whatzapp, não acredito – diz Ivan.

                        Fez-se silêncio na pequena cozinha, tudo tão quieto que dava para ouvir o som silencioso do ventilador. O ambiente um pouco estranho deixava transparecer um aspecto melancólico, Ivan encostado no umbral da porta com uma xícara de café na mão; Matheus sentado sobre a mesa de mãos postas sobre os joelhos e assoviando um acalanto qualquer. Os dois só despertaram quando a campainha tocou.

            --- Deve ser a Bia – diz Ivan.

            --- Vou tomar um banho então – responde Matheus

            Ivan abre a porta e Bia com ar de aborrecida entra rapidamente falando que só tinha pizza de muçarela. Havia saído pra buscar comida. Ela larga a embalagem envolta em um saco plástico em cima da mesa e corre lavar as mãos. Tanto ela como Matheus tinham muito cuidado com a pandemia, eram exagerados, se é que se pode definir assim quem convivia diariamente com o coronavírus. Ambos eram profissionais da saúde.

            --- Bia você procurou o seu Capeleto, ele sempre dá um jeitinho.

            --- Hoje ele não foi, só estava o filho dele, sempre mal humorado!

            --- Esse ainda vai falir o pai por causa do jeitão dele!

            --- Ah, Ivan, sabe o Berto, aquele senhor que vende verduras em frente a padaria? Quer dizer, vendia. Ele que foi contaminado com a variante do coronavírus, lembra que saiu uma reportagem na TV falando que era nesse bairro? Parece que foi um contágio mais forte, depois de um dia internado ele morreu. Que coisa né, tinha só 39 anos. Fiquei chocada com isso!

            --- Quando eu falo que tem que se cuidar as pessoas me chamam de exagerado. Três variantes, a P1 e P2 e agora mais a N9, esse vírus encontrou no Brasil o lugar ideal para suas mutações, muitos infectados, muitas mortes. Não está fácil não!

            --- Estou escutando alguém no banho, é o Matheus?

            --- Sim, quem poderia ser?

            --- Ué já chegou? Ele disse que viria tarde da noite!

            --- É, mas voltou mais cedo, as coisas não saíram bem como ele esperava.

            --- Como assim? Nada de grave com o parto da Ana Vitória né?

            --- Tudo bem com o parto, nasceu uma menina, mas parece que o amor dos dois está à deriva! Separados pelo whatzapp!

            --- O que é isso, explica direito.

            --- Só se falaram pelo zap e ela colocou um fim no relacionamento.

            Bia senta-se na cadeira não acreditando no que ouviu.

            --- Não quero acreditar nisso, amor inconteste dos dois, tanto que gerou uma filha, agora sim tudo ficou mais bonito ainda. Como pode?

            --- Algo deu errado e parece que ele está escondendo alguma coisa. O problema é que quando acontecesse isso ele volta a lembrar da família dele, do passado, aquelas coisas que você já sabe.

            --- Eu botava a maior fé nesse amor, o que pode ter acontecido? Tempos difíceis esses dessa pandemia que está mexendo com o emocional das pessoas. Sabe se ele vai comer?

            --- Acho que sim. Joga essa embalagem no lixo e lave as mãos de novo, depois dessa do seu Berto ter morrido por causa da variante todo cuidado é pouco.

            --- Sim, vou lavar, depois coloco os pratos na mesa.

            --- Vou abrir um vinho, acho que hoje o Matheus precisa de um porre!

                        O barulho da água a cair sobre o corpo de Matheus misturava-se com um canto qualquer que se ouvia ao longe. Talvez a melodia quisesse mostrar o quanto alguma coisa fazia falta; o quanto era necessário um momento de paz, de harmonia, de aconchego. No espelho todo embaçado escondia-se a imagem sofrida e calada de uns olhos que procuravam alguma coisa que Matheus sabia não ser fácil de achar.

                        Um toque na porta despertou-o, só então se deu conta de que há muito estava no banho. Ao sair deparou-se com Bia que o cumprimentou já entrando no assunto sobre Ana Vitória.

            --- O Ivan me contou o que aconteceu. Achei muito estranho a atitude dela.

            --- Tenho uma filha, estou feliz por isso!

            --- Me desculpe Matheus, mas só isso não basta. Está na cara que vocês se amam demais; agora completou tudo com essa criança. O que aconteceu de fato? É sério mesmo que você já aceitou numa boa?

            --- Deve haver mais motivos do que a gente pensa Bia, motivos que ela não quis falar.

            Ivan aparece com uma garrafa de vinho; Bia se apressa a pegar três taças e abre um brinde a favor da alegria para aquele momento. Matheus sabia que aquilo era uma tentativa dos amigos para fazê-lo feliz e quando sem saber porque já estava a cantar e a dançar mandando embora os pensamentos que o atormentavam.

            A noite se foi e com ela o sono chegou para os três depois de degustarem um bom vinho, comerem pizza e tocarem muito violão. Dormiram, de um lado prostrados no tapete Ivan e Bia; no sofá Matheus, que gostava sempre de enfiar a cabeça sob os travesseiros.

            Apesar do cansaço e da noitada com os amigos Matheus acabou despertando quando ainda não eram nem cinco horas da manhã. Percebeu que Ivan e Bia dormiam profundamente, mesmo assim levantou-se com cuidado. Colocou alguns pertences dentro de uma mochila e suspirou ao olhar para seu quarto; sua cama bem arrumada; uma tela abstrata por ele pintada; alguns livros em uma estante; fotos de pessoas queridas. Aquilo lembrava sua casa, sua família e sua vida passada. Olhava tudo sem deixar passar detalhes. Contemplou por mais tempo a única tela que havia pintado na sua vida, alvo de muitas indagações e conclusões das mais intrigantes. Por um momento teve a impressão de estar lá naquela felicidade e sorriu.

            Na escrivaninha encontrava-se um troféu que havia ganhado quando tirou o primeiro lugar num Festival de Música em sua cidade natal. Em meio a objetos jogados viu uma folha e uma caneta como a pedir algo; e uma inspiração veio com muito desejo:

            ... Vocês são bacanas demais! Desculpem se os farei sentir minha falta. Sei que compartilharam muitas coisas boas comigo e que também sentiram minhas dores. As coisas foram demais para mim, a morte, a sorte. Vou sair por aí e desligar, mas não se preocupem que não penso em nada de muito estranho. Entendam, eu preciso me libertar! Fiquem com este meu poema:

 

                                   “Viu sorrisos disfarçados e sorriu;

                                   Contemplou-se ao espelho e vangloriou-se.

                                   Procurou falar de amor e matou-se”

           

Completou a mensagem num tom de esperança: “Ivan, muito haveremos de fazer. Até qualquer data. Beijo grande pra você minha querida Bia! Se cuidem nesta pandemia, dias melhores virão!”.

           

Raras eram as vezes que o Sol surgia naquele inverno rigoroso que há muito São Paulo não enfrentava, porém ele se fez presente numa manhã que se mostrava mais quente. A curiosidade diante das bancas de jornais era intensa, as notícias sobre a pandemia continuavam causando espanto por causa das variantes que apareciam cada vez mais a cada dia. A lentidão da vacinação contrastava com a rapidez que essa mutação do vírus se impunha contra as pessoas e contra o sistema de saúde.

            Sentado na poltrona da sala, quem lia também um jornal era Ivan, temia achar algo a respeito da partida de Matheus, mas ao mesmo tempo seu coração aquietava-se porque sabia que o amigo tinha verdadeira paixão pela vida. Apesar de saber quase tudo a respeito da pandemia buscava sempre novas informações a respeito das vacinas, que tardiamente chegavam para as pessoas. Trabalhador da saúde, por muitas vezes decepcionou-se com a estratégia que os governantes usaram para conter a pandemia, com o negacionismo de algumas autoridades, com a intolerância da maioria da população que não aceitava o distanciamento. Mesmo diante desse quadro triste nunca mostrou desânimo diante da luta que juntamente com Bia e milhares de companheiros travava contra o coronavírus. Lia atentamente as notícias, mas se preocupava com olhadelas rápidas para a cozinha onde Bia preparava um café.

            --- Bia estou atrasado, apressa aí.

            --- Está pronto o café, vem tomar. Quer leite?

            --- Sim, um pouco, mas quero mesmo é um cafezinho bem doce!

            --- Você vai aguentar trabalhar hoje o dia inteiro? Porque não tira o dia de folga e descansa. Você não disse que tem horas em haver?

            --- Ah, não, quero ir, disseram que iam chegar mais vacinas hoje!

            --- Duvido, não dá pra confiar muito não, planejaram mal tudo isso. Aliás, desde o início dessa pandemia tudo foi mal planejado, subestimaram demais essa doença e o negacionismo foi um desastre. Ontem o povo estava querendo invadir o local de vacinação, tenho medo dessas coisas.

            --- Eu vi, é o medo das variantes. Mas hoje acho que tudo se acalma com a chegada de mais vacinas.

            --- E o Matheus hein, por onde andará nosso amigo?

            --- Vai estar bem, senti isso no recado que ele nos deixou.

            --- Que pena, vamos sentir muito a falta dele.

            --- Vamos sim, gente boa demais!

            --- Será que um dia ele volta para um abraço Ivan?

            --- Volta sim, lembre-se do que ele disse; “muito haveremos de fazer juntos”. Ainda temos muita criatividade para dividir!

            --- Isso é verdade!

            Ivan e Bia pareciam saber o real motivo da partida de Matheus. Conformavam-se, pois talvez soubessem ser necessária aquela partida. Tinham certeza que um novo encontro aconteceria entre os três num futuro bem próximo. Acreditavam que o amigo retornaria trazendo boas notícias.

           Um prédio erguia-se majestoso e dono do lugar. O poder do concreto imponente fazia o homem sentir-se minúsculo à proporção do ambiente. Matheus esperava pelo elevador, observava que regras, regras e mais regras sanitárias tinham que ser cumpridas. Gostava do que via. Não demorou muito até sua chegada a uma sala onde uma secretária procurava comunicar-se com o interior do escritório.

            Foi atendido e ao se apresentar a secretária disse que já era esperado.

--- É só um minuto senhor Matheus, o doutor já vai atendê-lo. Hoje está uma loucura isso aqui, estamos com várias audiências e três funcionários estão com Covid. A vida é uma correria, não acha?

            --- Sempre uma correria, você tem razão!

            O interfone da sala toca.

--- Pronto, doutor Rogério já vai atendê-lo. Por favor, a primeira porta a direita.

            Matheus encaminhou-se para a sala indicada pela secretária.

--- Senhor Matheus, uh lá lá, até que enfim resolveu aparecer! Como o tem passado?

            --- Bem, obrigado, mas nada de senhor, só Matheus

            --- Está bem, como quiser, mas espero que desta vez tenha se resolvido e que também tenha tirado aquelas ideias bobas da cabeça!

            --- Resolvi sim, mas as ideias que por sinal não são bobas continuam na minha cabeça. Esse dinheiro não me seduz!

            --- Entendo, mas é um direito seu, um seguro garantido por lei e que depois de uma verdadeira batalha jurídica fez justiça para muitas famílias!

            --- Trocaria essa justiça por toda minha família viva! O que esperar de um dinheiro vindo nessas circunstâncias?

            --- Sei da sua dor, da sua perda, mas como todos dizem, vida que segue, não é mesmo? Vai usar o dinheiro dessa vez?

            --- Sim, desta vez o motivo é justo!

            --- Ah!, então temos um motivo. Posso saber onde irá empregá-lo?

            --- Na vida!

            --- Na vida? Como assim?

            --- Se eles morreram e o dinheiro ficou pra eu viver, vou viver!

            --- Não está pensando em gastar todo esse dinheirão de uma hora para outra senhor Matheus?

            --- Quanto ao dinheiro fique tranquilo, será bem aproveitado!

            --- Como quiser, é só assinar essas notificações e depois procurar o banco e seguir os trâmites legais. Posso saber o que o fez pensar novamente no dinheiro?

            --- Novamente não, porque nunca pensei, mas agora quero viver este novo normal de uma forma diferente!

            --- Acho que deveria haver maior consideração do senhor em relação a esse dinheiro, afinal esse valor do seguro foi porque...

            --- Por favor doutor Rogério, não quero lembrar-me dos fatos porque isso me aborrece bastante.

            --- Está bem, aqui estão os papéis. Muito cuidado senhor Matheus essa vida é perigosa e está mais ainda com essa pandemia. Dinheiro no bolso e nada na mente é uma arma engatilhada!

            --- Obrigado pelo conselho. Tenha um bom dia!

                        A cidade neste dia mostrava-se mais calma, o medo das variantes do coronavírus agora parecia tomar conta das pessoas que estavam evitando sair de casa por qualquer coisa. Tudo indicava que haveria chuva no período da tarde e que a onda de frio iria aumentar. Matheus caminhava resoluto e rápido como quem havia decidido a coisa mais importante da vida. Só resolveu parar à porta de uma pensão localizada numa zona pouco recomendável da cidade. Na frente uma placa indicava o nome: “Pensão Tia Joana”. Deixou cair a mochila e apertou a surrada campainha pendurada por um fio que nada chamou. Tornou a apertar e uma voz da sacada chamou-lhe a atenção:

            --- Ei, não funciona. Espera que vou te atender

                        Era uma senhora de meia idade, muito desconfiada como todas as donas de pensões por esse Brasil afora. Tinha a voz rouca, talvez por causa do cachimbo que Matheus viu em sua mão quando ela gritou de cima da sacada. Negra,  cabelos brancos e o rosto marcado pela vida, a velha senhora demorou um pouco para descer a pequena escada da casa.  Abriu a portinhola, olhou demoradamente para Matheus e por fim, colocando a máscara no rosto resolveu abrir a porta por completo.

            --- Que deseja?

            --- Ora o que desejo – respondeu Matheus – Na porta está escrito pensão, não?

            --- O senhor é fiscal da Prefeitura? Tô seguindo todas as regras, não vem fechar minha pensão não porque senão morro de fome!

            --- Não sou fiscal senhora, quero alugar um quarto.

            --- Aqui não é lugar pro senhor não, parece gente de bem, gente fina!

            --- E lá existe gente fina nesse mundo Tia Joana?

            --- Então é filhinho de papai que fugiu de casa e aqui...

            --- A senhora tem ou não tem um quarto para me alugar?

            --- Bem, não quero confusão pro meu lado, aqui vira e mexe os “tiras” aparecem, se você deve vai em cana rapidinho.

            --- Fica tranquila, não devo nada e nem quero confusão, só quero um quarto, só isso.

            --- Está bem, pode entrar. Ah, mas primeiro um aviso, o dinheiro antes! Não quero levar calote, apesar da sua aparência todo cuidado é pouco porque a pilantragem também tem cara boa, se veste bem, sabe como é?

            --- Ao menos posso saber onde vou ficar?

            --- Os quartos aqui são de duplas e só tem lugar com o “Estranho”

            --- “Estranho?”

            --- É um senhor estranho, mas de boa conduta, não faz mal a ninguém! Só tem o defeito de beber um pouco e uns ataques durante a noite.

            Matheus olhou aquela velha senhora e sorriu.

            --- E a senhora acha isso pouco? Que bela recepção! Não tem outro quarto não, um individual?

            --- Não. Se não quiser pode procurar outro lugar. Mas vou adiantando, por aqui é tudo assim!

            --- Está bem, eu aceito. Onde fica?

                        Matheus pensou consigo: “Meu novo normal”

            --- Ali, no fim do corredor, número 12. Ah, outra coisa, quando quiser trazer mulher avise antes. E paga-se mais!

            --- Afinal isto aqui é pensão ou ...

            --- Pense como quiser, a comida é boa e os quartos estão sempre limpos. Só que temos nossas regras. E regras sanitárias também senão lacram isso aqui e a tia já não tem mais idade pra morar embaixo da ponte! 

            A mulher olhou pra ele sorrindo. Matheus foi andando e também sorrindo em direção ao quarto 12.

            --- Falou Tia Joana, pode ficar tranquila que não vou te dar trabalho não.

            --- E respeito quando falar comigo, sou mulher vivida e não aceito ser desrespeitada!

            --- Não se preocupe, também sou vivido e sei respeitar as pessoas quando elas merecem.

            --- Você vivido? Não diga bobagens menino, você não viu nada da vida ainda!

Será que Matheus não havia mesmo visto nada ainda? O que realmente o levava a tomar caminhos estranhos e abandonar tudo que tinha conquistado até agora? O lugar apesar de pouco confiável era arejado. Chegou ao fim do corredor, empurrou a porta do quarto 12 e entrou procurando não fazer barulho. Tão logo entrou uma voz abafada chamou-lhe a atenção.

            --- Quem é?

            --- Sou o outro que vai se ajeitar por aqui.

            O homem olhou-o com certa indiferença.

            --- Pode entrar, faça dele o seu lar!

            --- Lar?

            --- É, geralmente as pessoas que procuram lugares como este é porque não têm lar. Acertei?

            --- É, vamos admitir que sim.

            --- Qual é seu nome?

            --- Matheus

            --- Só?

            --- O resto não importa.

            --- Carlos é o meu.

            --- E o “Estranho?”

            --- É por conta de Tia Joana. E você, porque apareceu por estes lados? Você tem cara de gene boa! Existem problemas? Coisas como fuga, polícia!

            --- Polícia não, fuga talvez.

            --- Que tipo de fuga?

            --- Sei lá, talvez de um passado, ou quem sabe de um presente.

            --- A vida!

            --- É, quem sabe!

            --- O que ela andou lhe aprontando meu rapaz?

            --- Muita coisa!

            --- Parece que a gente está no mesmo barco!

            --- Será que afunda?

            --- Depende do mar que você quer enfrentar! Mas já que você vai dividir esse quarto, fique tranquilo quanto a Covid, essa me pegou e não levou.

            --- Eu ainda estou no lucro com esse vírus, não tive Covid, tomo muito cuidado, agora mais do que nunca porque surgiram aí umas variantes perigosas.

            --- Estou sabendo!

                        Matheus observou uma garrafa de conhaque e um copo no chão. Carlos aparentava ser um homem de seus 50 anos. Tinha jeito de ter sido tragado por um mar enfestado de surpresas. Mostrava já ter tido um porte atlético, mas dava pra se notar que a bebida vinha judiando daquele corpo. Os olhos procuravam um vazio enorme e uma tosse mostrava o desarranjo de uma vida já indo embora.

                        O quarto, apesar do lugar era como Tia Joana havia dito, bem arrumado, lençóis simples, mas limpos na cama e uma pequena mesinha com toalha e álcool em gel. O Sol às vezes parecia querer entrar por uma fresta da janela por causa de algumas imperfeições. Algo dizia para Matheus que aquele local estava repleto de histórias de vida. Enquanto ajeitava suas coisas, o barulho de um avião cortando os ares despertou Carlos que correu para o canto do quarto tapando os ouvidos. Parecia querer se salvar de alguma catástrofe. Matheus também por alguns minutos ficou olhando para o teto, como esperando pelo pior. Enfim, o barulho desapareceu e tudo se normalizou. Matheus voltou-se para Carlos.

            --- Porque o espanto?

            --- Será que não podem parar com isso? Essas máquinas são a destruição!

            --- Também não gosto de ouvi-los. Algum trauma te incomoda com a passagem deles?

            --- Por favor, não falemos nisso!

                        Fez-se silêncio no interior do quarto. O que se escondia por trás daquele espanto? Os problemas advindos do som do avião trouxeram uma garota que olhava os dois com dois olhos muito azuis.

            --- Puxa, aconteceu alguma desgraça?

            --- Vá à merda – esbravejou Carlos.

            Matheus olhou-a e depois perguntou a Carlos.

            --- Quem é essa?

            Antes que Carlos pudesse dizer alguma coisa a garota falou:

            --- Patrícia Delícia, como todos me chamam!

            O destino havia se incumbido de realizar aquele encontro. Os dois tinham marcas profundas do passado; enquanto Matheus buscava esquecer a perda de toda sua família em um desastre de avião e sua recente decepção amorosa; Patrícia procurava apagar as marcas deixadas por uma violência sexual que havia sofrido tempos atrás. Coincidentemente os dois eram formados em jornalismo. A convivência dos dois na pensão de Tia Joana foi marcada por encontros, desejos, confidências e cumplicidade abrindo então caminho para uma paixão arrebatadora.

Não demorou muito para os dois deixarem a pensão, foram morar juntos em um apartamento alugado por Matheus em Vila Mariana, bairro que ele conhecia e gostava. Com o bom dinheiro que havia ganhado do seguro por causa do acidente com sua família; além de alugar o imóvel, também investiu na sua agência que havia deixado quando resolveu partir em busca de uma nova vida. Criou um site de notícias; uma revista e uma rádio web. A carreira jornalística dos dois ganharia um novo impulso com a estruturação da agência que levava o nome de Aruna Comunicações.

            Numa de suas andanças pela cidade de São Paulo, um dia Matheus percebeu um movimento muito grande de ambulâncias a circular pelas ruas. Eram muitas, sabia que a pandemia provocava isso, mas nunca naquela proporção. Ficou curioso para saber o que estava acontecendo, sua veia jornalística dizia que alguma coisa preocupante marcava a presença de tantas ambulâncias de uma vez só pelas ruas. Comentou com Patrícia que também achou estranho todas aquelas sirenes tocando ao mesmo tempo e os motoristas preocupados pedindo passagem.

            Matheus resolveu seguir aquela procissão de ambulâncias, tinha tempo para isso, estava curioso pra saber por que tudo aquilo. O destino delas era o Hospital de Catástrofe que o governo paulista havia montado no Sambódromo do Anhembi. Tão logo as ambulâncias chegavam os pacientes eram locomovidos rapidamente para dentro do hospital. Havia algo de estranho naquele tipo de intervenção, os profissionais de saúde estavam paramentados com macacões que lembravam filmes de ficção.

            Não demorou muito para que vários veículos de imprensa chegassem ao local. Matheus tinha um crachá de sua empresa jornalística, o que facilitou sua chegada mais próxima dos repórteres.

            --- Amigo o que é este tumulto, porque todo esse aparato de segurança com esses pacientes – indagou a um repórter.

            --- Parece que uma variante muito contagiosa foi descoberta em uma empresa lá na zona leste, fizeram o teste lá mesmo e deu positivo, então estão todos sendo trazidos para cá para isolamento. A empresa foi lacrada e interditada.

            Mesmo distante, Matheus mantinha contato com seu querido amigo Ivan e foi dele que recebeu a informação sobre o episódio da empresa da zona leste onde parte dos funcionários haviam se contaminado. Ao todo eram 36, sendo que destes 16 haviam ido a óbito em questão de horas dentro da empresa. Tratava-se de uma variante letal que tanto cientistas como as equipes médicas estavam muito preocupados.

            Depois de dois meses e meio, os outros vinte funcionários que haviam cumprido quarentena no Hospital Catástrofe iam ser liberados, causando apreensão na população da cidade. Avisado por Ivan, Matheus colocou como pauta principal do seu site a cobertura completa da liberação daqueles pacientes.

            No dia e hora marcados para a liberação dos funcionários remanescentes da tragédia da variante na empresa da Zona Leste, a equipe de Matheus se surpreendeu com o aparato montado à frente do Hospital de Catástrofe; dezenas de órgãos de imprensa; policiamento ostensivo e uma multidão que causava espanto com seus gritos e faixas contra a decisão tomada de liberar aquelas pessoas. Muita gente estava ali descumprindo a ordem de não fazer aglomeração, o que já causava certo tumulto entre polícia e manifestantes.

            --- Gente, vamos tomar cuidado porque os ânimos estão exaltados – disse Matheus para sua equipe. “Eu acho que não vai sair ninguém daqui hoje” – completou.

            Patrícia havia conseguido a informação de que o Batalhão de Choque estava vindo para o local com a ordem de dispersar os manifestantes, mas nem bem passou isso para Matheus quando estourou o primeiro conflito com a saída de uma ambulância do Hospital. Bombas de efeito moral começaram a cair bem próximo da equipe que precisou se afastar para não ser atropelada pela multidão.

            --- Vamos tentar ouvir alguém aqui Patrícia, vem comigo – disse Matheus.

Ele havia visto um dos organizadores da manifestação que carregava um megafone onde esbravejava contra aquela decisão. Conseguiu chegar até ele.

            --- Senhor, senhor, qual o motivo da manifestação – perguntou Patrícia enquanto era cercada por vários manifestantes que gritavam insistentemente a frase “Não vai sair!”

            Conseguiu a resposta do homem com o megafone.

            --- O motivo dessa manifestação é medo, quem garante que essas pessoas não carregam o vírus mortal? Queremos proteção para os nossos filhos, morreram dois jovens de 18 anos, não tem que sair ninguém daí até tudo ficar esclarecido. Não se falou mais nada desse caso, tem muita gente morrendo nesse país e deve ser por causa dessa variante aí! – disse o entrevistado.

Mais correria, enquanto Patrícia fazia a entrevista o Batalhão de Choque que havia chegado intervia mais energicamente. A equipe do site de Matheus registrava tudo; ele também com o celular fotografava várias cenas. O cheiro incômodo das bombas de gás fazia efeito, as pessoas se afastavam rapidamente; o mesmo acontecendo com Matheus e sua equipe. Quem permanecia em meio àquele tumulto gravando tudo era Patrícia, usando uma máscara contra gases e seu macacão anti-Covid que Matheus tinha comprado. Tudo era transmitido ao vivo pelo site de notícias da agência Aruna Comunicações. Depois do o tumulto à porta do Hospital, Matheus e equipe ainda prosseguiram acompanhando a coletiva do Diretor do Hospital de Catástrofe, conseguindo também uma entrevista inédita com um dos pacientes que foi liberado. Havia muita apreensão por parte da população e ainda pelas famílias dos funcionários da empresa onde aconteceu o contágio. Por questões de segurança todos os pacientes envolvidos naquele episódio foram liberados bem depois dos protestos que aconteceram.

De volta à redação todos comemoram a cobertura que haviam feito. Até aquele momento o site de notícias tinha atingido a marca de 100 mil visualizações, fato este que nunca havia acontecido com a agência.

            --- Foi muito importante o depoimento do Diretor do Hospital, as pessoas precisavam escutar uma afirmação técnica – disse Matheus. “A colocação dele de que todos os pacientes que foram liberados não apresentavam sintomas de Covid e estavam vacinados com a 1ª e 2ª dose, comprovando isso com vídeos e resultados dos exames foi uma informação importante. Era o esclarecimento que a população que está com muito medo dessa variante precisava ouvir” – completou.

            --- A coletiva também serviu para aliviar a tensão que as famílias dos pacientes estavam passando – disse Patrícia. “Por duas razões, primeiro porque provaram que os familiares não estavam doentes, não carregavam a variante e, segundo, para a própria segurança das famílias que como o nosso entrevistado afirmou estavam recebendo ameaças” – disse ela.

            No caminho para casa Matheus e Patrícia acompanhavam pelo ipad as repercussões no site da agência sobre a cobertura da manifestação. O dia tinha sido tenso, mas os dois se mostravam muito satisfeitos com o que estavam fazendo, havia uma cumplicidade muito forte entre eles, que num passado não muito distante mal sabiam que caminho seguir nesse novo normal que a realidade estava provocando. Já em casa Matheus se jogou na sua poltrona preferida soltando um “ufa” e já fazendo um pedido para Patrícia.

            --- Amor dá pra trazer uma cervejinha?

            --- Só um instantinho, vou fazer xixi rapidinho!

            Enquanto esperava Matheus colocou uma playlist dos Tribalistas para tocar, adorava o trio e a primeira música “Diáspora” o colocou a refletir sobre o momento que o Brasil estava passando com tantas separações que aconteciam nas famílias. Um trecho da letra fez com que ele fechasse os olhos para refletir: “onde está meu irmão sem irmã; o meu filho sem pai; minha mãe sem avó dando a mão pra ninguém, sem lugar pra ficar; os meninos sem paz; onde estás meu Senhor, onde estás, onde estás?”.

            --- A cerveja meu amor – Patrícia o despertou.

            --- Meu anjo presta atenção nessa música dos Tribalistas, vou voltar num trecho dela que acredito muita gente deve estar passando por momentos assim.

            Os dois prestam atenção concordando com a cabeça.

            --- Depois de mais de um ano, quando todos acreditavam já estar acabando a pandemia o que vemos é este caos, aumento de mortes; variantes silenciosas atacando agressivamente; colapso na saúde; depressão; muita angústia; o medo de faltar oxigênio pra respirar, veja só? – comenta Matheus.

            --- Triste meu amor, triste tudo isso. Mas agora vamos relaxar, hoje nós merecemos. “Tin tin” amoreco!

            Os dois brindam tocando as garrafas de cerveja. Matheus cede um cantinho em sua poltrona para Patrícia se aconchegar. Os carinhos vão tomando conta daquele momento levando-os até o tapete da sala onde se amam ardentemente. Sentiam que precisavam daquilo. Abraçados acabam se entregando ao sono enquanto a playlist dos Tribalistas termina tocando a suave “Vilarejo” pedindo ”pra deitar no chão pra acalmar o coração”

           

           


 

 

 

 

 

           

 

 

 

 

           

           

           

           

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