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Terra dos Assombrados

Terra dos Assombrados
Clávio Jacinto
fev. 24 - 9 min de leitura
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O REINO DA ESCURIDÃO

 

 

Perto do Pólo Norte havia um lugar estranho, um reino esquecido, um lugar remoto e frio, onde reinava completa escuridão, seus habitantes eram chamados de “assombrados” não porque fossem almas destituídas de carne, mas porque eram vultos vivendo nas trevas.  Por incrível que pareça essas pessoas viviam felizes, não havia motivos corretos para essa felicidade, mas de certo modo eles amavam a escuridão. Não havia carros ali, seria um desastre, pois os pedestres se esbarravam sempre uns nos outros, alguns viviam se arrastando pelos lugares em busca de um destino. O senso de direção era muito difícil, não havia qualquer orientação, nem norte e nem sul, nem altura e nem profundidade, o mundo era tridimensional pelo tato, os olhos eram as janelas para o lugar nenhum.Não havia senso de certo e errado, quase tudo era uma nulidade existencial. Esse reino era um local adequado e refugio para niilistas e o berço onde nasciam as mais atrozes almas desprovidas de atributos de contemplação. Uma perene nevoa pegajosa e escura nunca deixava sequer uma estrela brilhar até mesmo as aves mais estranhas não gostavam dessa infame penumbra. Podemos imaginar como seria difícil viver em um lugar assim, nas apalpadelas as pessoas tentavam encontrar o seu destino, e quase sempre o tropeço nas pedras e a queda fatal num abismo era comum. Podemos viver toda uma vida dentro de uma existência, mas ela não tem uma direção por onde encontramos o belo e não contemplamos as excelências do espírito, essa é uma vida vã.  Lembro-me de Tolstoi que num momento de reflexão mais pura bradava que haviam homens no mundo que ao olharem para a floresta só enxergavam lenha para queimar. Mas para os assombrados, não havia lenha, nem floresta e nem fogo.

As pessoas se acostumaram a isso, posso dizer o quanto é terrível viver num lugarejo assim, não havia um por do sol e muito menos um amanhecer digno de contemplação.  Posso dizer mais, os galos aprenderam a cantar a mais triste canção, como se vivessem para sempre no cárcere de uma noite eterna.  E de fato, a noite parecia ser eterna, e o povo de lá se conformou com as sombras de tal modo que viviam se esbarrando nas paredes e sorriam com as fatalidades da vida. Não havia gente feia e nem bonita, todos eram iguais. E o modo como o rei mesmo dizia aos seus súditos, era uma grande alegria pensar que no mundo existia um em que todos permanecessem iguais, uma espécie de socialismo da escuridão. Não deixemos de lembrar que pouco a pouco, a mesma escuridão que esconde a verdade, também pode escurecer o coração para que não venha compreender a necessidade da presença dela. A última vez em que o rei foi ao anfiteatro dar o seu discurso, ele simplesmente argumentou com a lógica afinada, sinal de um pensador arguto, pedindo atenção a todos os cidadãos assombrados, o rei entregou seu breve discurso como podemos ler abaixo:

 

Povo assombrado

Boa escuridão a todos!

Venho através do presente discurso, afirmar que somos a civilização mais perfeita entre os homens, nós assombrados somos um povo feliz, e vou provar através do meu discurso o quanto estou certo em  afirmar essa verdade. Não há invejosos entre nós, ninguém morre de inveja do que o outro possui. nossos olhos não contemplam aquilo que pode produzir desejo ilícito dentro do nosso coração. Não temos esse problema de alguém ser diferente, olhem, todos somos iguais, não há racismo entre nós, todos estão no mesmo nível racial, olhe para nossos cidadãos, não há sequer um único avarento entre eles, não sabemos a distinção entre ouro e prata, não conhecemos cifras nem números. Nosso mundo é perfeito, não temos problemas com a moda, qualquer roupa nos serve, e com relação a vaidade? de que nos vale roupas bonitas e glamour? Não precisamos de bibliotecas, para que nos servem os livros? Não precisamos de escrita. Certa vez, um de nossos assombrados quis implantar certo método de leitura chamado “Braille”, mas fizemos uma campanha contra, acredito que a ignorância e a escuridão se harmonizam muito bem. Aqui temos felicidade, não há discriminação social, todas as casas são iguais a nenhuma, e toda a face é igual a ninguém. Creio que somos a sociedade mais perfeita do mundo. Este é o nosso paraíso, as margens da terna alegria vivemos, numa igualdade de condição que colocam todos nossos cidadãos no mesmo nível.

(Um breve silencio)

Todos aplaudiram o rei, o povo assombrado estava vivendo uma utópica sociedade, onde as fronteiras não existiam, imersos naquelas sombras, não conheciam nada além da escuridão, ninguém disputava a propriedade dos outros, as mulheres bonitas não mais disputavam com as feias, os velhos não cobiçavam o vigor dos moços, nem o leproso desejava a saúde dos saudáveis pois não havia qualquer distinção entre eles, a cobiça e o orgulho não existiam naquele lugar, ninguém podia ostentar ser dono de um palácio, pois não havia distinção entre palácios e taperas. Parecia ser uma sociedade perfeita, e a grande felicidade do povo em permanecer no escuro, a grande sustentabilidade dessa alegria, era essa igualdade; todos numa mesma escuridão, sem livros, sem cores, sem luz e sem identidade.

 

Mas um dia entrou um invasor naquele reino, e com uma lâmpada acesa entrou na cidade dos colapsos, a capital do reino dos assombrados, e a lâmpada acesa alumiava tudo ao redor por onde andava aquele forasteiro invasor, que portava uma lâmpada na sua mão direita e a Divina Comédia de Dante Alighieri na esquerda, porquanto era a sua face, a de um homem assustado ao ver o aspecto de cada assombrado, e assim eram chamados com justiça, pois os trapos que vestiam eram piores do que o de Diógenes, e seus rostos eram completamente sujos, não somente a face mas todo o corpo era um amontoado de monturo, uns sentiam pavor do outro quando a luz revelava a condição de todos, além das ruas estarem empilhadas de lixo de toda a espécie e as paredes das casas estarem impregnadas de toda sorte de imundícia. O forasteiro ficou cheio de compaixão daquela gente, mas os assombrados reagiram, primeiro porque o brilho da lâmpada acesa incomodava os olhos e depois a luz revelava a condição terrível em que se encontravam, de modo que cresceu o alvoroço na cidade de Colapso. O rei ficou sabendo do acontecido e tomou as devidas providências, soldados munidos de não sei o que, talvez lanças de lápis-lazúli ou bordões de bronze e espadas de pedras, marcharam contra o homem da luz. Grande foi a turba que investiu contra o coitado do homem estrangeiro, de modo que foi levado até a presença do rei. Ao ver o aspecto horrível daquele monarca, um homem cujas barbas e cabelos arrastavam no chão, a face enrugada e a boca cheia de dentes enegrecidos, o palácio cheio de entulhos, os telhados quebrados, a lama escorrendo pelos cantos, teias de aranhas faziam daquele lugar horrível um ambiente assustador, isso sem contar com os milhares de répteis que perambulavam por aquele lugar. O  forasteiro tomou de sua bolsa um espelho e mostrou ao rei o que poderia ser chamado de um reflexo de si mesmo. Mas o rei revoltado acusou o forasteiro de magia e promotor de escândalos na sociedade das sombras, ainda, porém, acreditando que o seu reflexo não era de fato ele mesmo, mas um monstro sobre a janela de outra dimensão que o forasteiro queria libertar, e temendo que aquele monstro saísse de dentro do espelho e viesse para tomar seu próprio trono, mandou quebrar o espelho, apagar a lâmpada e matar o forasteiro, que sendo arrastado até o monte das Penúrias, foi assassinado a pauladas e seu corpo jogado em um poço de betume que ficava na margem desorientada do reino dos assombrados.

Assim, o rei da terra assombrada se sentiu aliviado pois aquele monstro ficou eternamente preso dentro do espelho quebrado acreditava que havia ficado preso no escuro e o seu povo tinha sido preservado de uma grande invasão de alienígenas e outros seres horríveis.

O rei dos assombrados Chamou de “abominação” aquela lâmpada acesa do forasteiro e invasor, e a lei régia daquele reino era que não se permitisse que ninguém entrasse naquelas paragens sombrias com qualquer tipo de fogo ou lâmpadas, nenhum tipo de luz era permitido naquele lugar para não quebrar a harmonia da igualdade do reino e muito menos dissipar a fonte de toda a felicidade social: a escuridão.

 

 

Clavio J. Jacinto

 

 

 

 

 

 

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