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Memórias do Último Homem que Viveu

Memórias do Último Homem que Viveu
Daniel Malta Viana
mai. 5 - 3 min de leitura
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escrevo de dentro de meu sótão…

comunico a quem me leia — meu caro supervivente — que estas minhas palavras foram escritas sob a imensa e funesta sombra de tempos escuros, então que me faça o favor de perdoar a melancolia de meus significantes.

o ano vigente não vos importa, pois a este ponto certamente somos eu e ele nada além de sedimento.

os sobrenomes de nossos pais (inclusive aqueles que eram virtuosos) foram esquecidos, nossos políticos padeceram de tamanha angústia que os fizeram deitar no leito dos pobres para partilhar da dor que era a mesma, nossos livros canônicos foram devorados pelas traças e é muito que certamente sabido à esta altura que nem nossa ciência nos serviu para sustar o delírio ou apartar de nós as doenças oportunistas que nos arrebataram aos montes, tal como o profeta oraculou.

tudo começou com a febre…

de uma única província do oriente, em meio à conglomeração de bichos e pessoas, fomentou um mal que se alastrou para o resto do globo.

de início, nos disseram que era boato.

depois, que não era sério.

o tal mal era apenas uma pequena aflição que se resolveria em algumas semanas.

não era preciso preocupação.

ora, o passado é um fantasma translúcido, um firmamento que se sente sem lhe dar reconhecimento.

nós mesmos, em nosso tempo, caminhávamos por nosso reinado com os olhos no horizonte, sondando urgências inventadas.

nunca nos preocupamos com vida que houvesse abaixo de nós.

pisamos em formigas e flores sem as notar, urgimos os pássaros para fora dos nossos caminhos e passamos pelos sem teto sem dar sequer a esmola de um olhar.

e sendo essa a natureza de todo ser superior, sei que vosso interesse a nosso respeito se dá por via de uma atenção esdrúxula.

e que se assim não fosse que vosso arbítrio e curiosidade lhes permitissem despender de herança tão vultosa e sagrada como o tempo devotada a um objeto de estudo totalmente desprezível, não tencionariam conceder a nós qualquer consideração.

mas talvez seja fato que exista algum valor até mesmo nas coisas mais patéticas, quiçá algo inerentemente útil e particular em todas as coisas extintas.

todo fracasso carrega consigo o seu ensinamento, e para isso estivemos aqui, penso eu.

afinal, para nós a morte sempre foi como única certeza.

nem ser feliz era para nós uma garantia, mas se tornava preciso.

pois a penumbra da morte sempre foi anúncio de sua chegada cabal.

aliás, me pergunto se vossa ciência conseguiu progredir no aspecto da longevidade.

imagino eu que aí morram somente os indivíduos que assim desejam.

eis que a vida só se torna especial em função da finitude.

sem ela é fácil enfastiar de dias repletos e planos.

sem a fatalidade, até o amor vira mero requinte.

somos agora o combustível fóssil que alimenta vossas máquinas, nada mais.

nossa vaga lembrança explorada em uma área científica qualquer que serve de estudo para algum jovem reputado como um párea pelos amigos, tido como embaraço para os seus pais.

nosso erro se perpetua através de todas as versões de nós.

como faturas que excedem o capital da espécie.

o débito primordial da humanidade sempre será o seu desdém pelo humano.

foi a herança legada a mim.

e que agora chega a ti.

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