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E se ele falasse?

E se ele falasse?
Talita Martins Salvador
mar. 26 - 12 min de leitura
0180

               

        Alice estava incomodada, aquele não havia sido um dia fácil no trabalho, só queria ir para casa e tomar um longo banho, mas o ônibus demorava a chegar. Não havia cobertura onde esperava e as nuvens negras sobre sua cabeça anunciavam a tempestade que chegaria a qualquer momento. Estava sem guarda-chuva. “Que ótimo!” Ela se sentou no banco do ponto e puxou o ar, que entrou abafado pelas entranhas do tecido de sua máscara. Um senhor, procurando um espaço entre as pessoas, passou por ela e soltou um espirro. Ele tentou abafá-lo com a mão, já que estava sem sua proteção, mas sem sucesso e um pouco constrangido, olhou para os lados sem graça e exclamou um pedido de desculpas contido. “De que adianta se desculpar agora, meu amigo? Seria mais educado de sua parte se estivesse usando a sua máscara.”, pensou, mas não disse nada, queria evitar confusão. Os primeiros pingos de chuva começaram a cair e Alice levantou instintivamente sua cabeça para observá-los. Pequeníssimos pontos verdes, milhares deles, vagavam pelo ar por entre as gotas. Alguns juntavam-se a elas e alcançavam o chão mais rápido, outros permaneciam flutuando em seu ritmo lento e constante. Alice tentou aproximar-se de um dos pontos para observá-lo melhor. Um bicho... talvez fosse um inseto? Não, era algo diferente. Algo que nunca havia visto antes. O que era aquilo? Eram coroas em suas pontas?

               – Mas que m... é essa? – soltou a pergunta em voz alta, não conseguindo se conter.

               – Somos corona, somos corona – Os pontos anunciaram em uma sinfonia sincronizada.

               Alice olhou assustada para os lados, procurando quem falava com ela, mas todos no ponto estavam pareciam estar ignorando-a com louvor.

               – Somos corona, somos corona. – Escutou novamente.

               Seus olhos arregalaram-se ao perceber que a resposta vinha daqueles pequenos pontos flutuando no ar a sua frente. A surpresa logo passou a desespero quando se deu conta do que aquilo significava. Abriu sua bolsa, pegou um borrifador que carregava dentro dela e começou a espirrar álcool para todos os lados. Vários dos pontos sumiram instantaneamente, mas muitos outros ainda estavam ali. Balançando as cabeças em negação, as pessoas a sua volta afastaram-se discretamente.

               – Que foi? Não estão vendo? Estão por todos os lados! – ela gritou histericamente.

               – Não adianta, só você pode nos ver ou ouvir e se continuar a agir assim só pensarão que é louca – um dos pontos comentou, aproximando-se da menina. Ela soltou um grito abafado de pavor e borrifou o álcool diretamente nele, mas nada aconteceu, ele continuou ali.

               – Que maluca! – um garoto que estava sentado despreocupado com seus fones no ouvido, comentou.

               – Eu não lhe disse?!

               – Ele está certo! Eu realmente endoidei. Meu Deus! Sou uma maluca e vou ficar doente. Não posso morrer! Eu ainda quero viajar, comprar uma casa... que droga! Eu ainda nem consegui um emprego decente – começou a divagar consigo mesma, sentando-se novamente.

               – Que drama! Não vou te infectar. Não enquanto você manter seus “poderes”, de qualquer jeito.

               – Poderes? Isso está mais para uma maldição. Quem é que ia querer falar com algo como você? Aliás, o que são vocês? Você é mesmo ele?

               – Devo dizer que conheço muita gente que morreria para falar conosco: médicos, cientistas, e a lista continua... você deve estar em negação e eu entendo, todos reagem de maneira similar. Realmente é muito para processar. Mas se nesta altura do campeonato ainda não sabe o que sou, só posso concluir que estava vivendo em uma caverna. Sim, somos o coronavírus, aquele que causa a doença que vocês chamam de Covid-19. Nossa colônia recém saiu daquele senhor ali. – Ele foi para frente, apontando para o homem que a pouco, havia espirrado. – Estou aliviado de ter saído, estava muito apertado ali. Não sei como ele ainda está de pé, há muitos de nós naquele organismo.

               – Isso não é real, isso não é real, isso não é real... – Alice recitava para si mesma em um frenesi, balançando o corpo para frente e para trás.

               – Se você quer perder seu tempo negando o que está acontecendo, fique à vontade. Só lhe aviso que esta é uma oferta com prazo de validade, logo não poderá mais nos ver ou ouvir, então, se eu fosse você, aproveitaria a oportunidade.

               Alice parou. Saindo do transe com o que ele falou. Por mais louco que aquilo parecesse, e com certeza era, ele tinha razão. Estávamos em uma guerra há quase um ano contra aquele pequeno ser, haveria melhor oportunidade para desvendar finalmente seus mistérios?

               – Por quê? – foi a única coisa que conseguiu dizer.

               – Por que o quê? Por que o céu é azul? Por que as jacas, mesmo sendo enormes e pontudas, crescem no alto e não rasteiras como as melancias? Você precisa ser mais específica.

               – Por que estão aqui? Por que vocês começaram a existir? O que fizemos de errado para que vocês aparecessem?

               – Não somos novos. Talvez sejamos mais velhos do que vocês, quem sabe?! Vocês modificam, todos os dias, o planeta em que vivem. Desmatam, colocam fogo, extinguem espécies, poluem, acham que tudo que está na natureza: animal, mineral ou vegetal; está lá somente para seu bel-prazer. Pensou que esse modo de vida não traria consequências? O que fizeram de errado? Você me pergunta. Acho mais fácil enumerar o que estão fazendo de certo. Por que estamos aqui? Vou lhe responder com outra pergunta: o que faria se te expulsassem do habitat onde vive?

               – Teria que encontrar outro lugar para me instalar.

               – E eis sua resposta.

               Alice calou-se por um instante, processando o que acabara de ouvir.

               – Mas o que vocês pretendem nos atacando? Querem acabar com a humanidade? Vocês mataram mais de um milhão e meio de pessoas no mundo todo.

               O vírus riu-se com certo desdém.

               – Nem que tivéssemos planejado, não nos daríamos ao trabalho. Do jeito que as coisas vão indo, vocês mesmos terão sucesso nessa empreitada. Veja bem, há um grande risco também para a minha espécie quando habitamos um humano, afinal vocês têm alguns meios eficazes de nos combater. Seria uma batalha sem propósito. Guerra é conceito humano, não vemos sentido nisso. Sempre coexistimos muito bem com outros animais, sem lhes causar danos, mas como cada corpo reage a nós, isso está fora do nosso controle. O que posso dizer é que não fomos feitos para habitar o seu organismo. Nem é o que mais gostamos, para ser sincero! Mas não tivemos escolha, nos obrigaram a migrar e as consequências disso não podem recair sobre nossas coroas.

               A lógica fez com que Alice se sentisse contrariada. Como podia uma coisa insignificante daquelas dizer que a culpa era dos humanos?

               – Não acredito que não queiram acabar conosco. As evidências estão aí, sonhos interrompidos, famílias desfeitas.

               – E se esse desejo não for nosso? A Terra é um ser vivo e, como tal, reage às ameaças, assim como o seu organismo combate a nossa presença. Já pensou que ela pode estar querendo se curar? Além do mais, vocês não se orgulham em dizer que são os únicos seres racionais por aqui? Bem, isso, em partes, é verdade.

Um garoto se aproximou do menino que estava ao lado de Alice e este elevou a mão que estava apoiada no banco para cumprimentar o amigo. Ela notou que as mãos dos dois estavam cheias de pontos verdes e se exaltou quando o novato as levou instintivamente aos olhos para coçá-los, forçando vários dos pontos a entrarem em suas mucosas oculares.

– Não! Não faça isso! – gritou exasperada.

Os dois olharam surpresos para ela e o garoto que já esperava há algum tempo no ponto puxou o outro de canto pela camisa.

– Não liga para essa dai não, ela é maluca! Não faz muito tempo, estava jogando álcool em todo mundo aqui. – Ambos deram risada, ignoraram Alice e continuaram a conversar.

– Bem, as vezes eu tenho minhas dúvidas sobre vocês serem seres pensantes – comentou o vírus depois da cena que acabaram de presenciar – Mas sobre nós, estão certos, não temos o poder de planejar, só existimos.

Alice balançou a cabeça, tentando não pensar no menino que acabara de ser infectado pelo outro. Mas sem muito sucesso em conter sua frustração, exaltou-se:

– Temos muitos remédios que funcionam contra vocês, como a Cloroquina, a Ivermectina e tantos outros!

O vírus se remexeu no ar, exasperado. Alice poderia jurar que se ele pudesse gargalhar o estaria fazendo naquele exato momento.

– Você acabou de me deixar em uma crise existencial. Eu tinha certeza de ser um vírus, mas agora já não sei mais. Quem sou? Será que sou um protozoário? Um verme? Um inseto? Ou, quem sabe, um ácaro?

– Mas o tempo de vocês aqui está contado! – respondeu irritada com a provocação. – Estamos desenvolvendo várias vacinas.

O vírus pareceu subitamente desanimado.  

               – Ah, essas sim são eficazes. São como bombas, dificilmente irão nos erradicar, mas causam um estrago danado! Mas temos um ponto ao nosso favor neste aspecto: vocês não acreditam muito nelas, assim como não acreditam na gente, não é mesmo?

               Alice bufou frustrada. Era impressionante como seus argumentos abalavam sua convicção. Ele estava certo novamente, pois nos últimos anos havia uma crença crescente de que vacinas eram feitas para manipular os homens e não para prevenir doenças.

               – Seu tempo está acabando, tem mais alguma coisa que queira saber?

               – E quando que vocês vão embora?

– A contragosto, preciso dizer que isso só depende de vocês.

– Algum conselho que possa nos dar para isso acontecer?

               – Por que eu lhe daria algum conselho? Para mim e para os meus está ótimo assim! Continuem ignorando nossa existência, encontrando pessoas, fazendo festas. Quem é que não gosta de uma boa festa? Comemorem bastante! Haja como se não houvesse amanhã, quem sabe um dia vocês não acertam?

               Ele esperou pela reação da menina, mas como esta não veio, continuou:

               – Nosso tempo acabou. Você não vai lembrar de mim ou da nossa conversa. Acredite, será melhor assim! Aqueles que recordaram acabaram ficando um tanto quanto malucos e inventaram teorias absurdas sobre nós e como nos eliminar, de nada adiantou a experiência. Desse jeito, com sorte, o seu subconsciente irá gravar algumas informações úteis para você e é assim que deve ser.

               Alice piscou. E quando abriu os olhos novamente, não havia nada no ar além das gotas de chuva. Não sabia ao certo porque procurava alguma coisa, mas não conseguiu afastar a estranha sensação de que algo estava lá. Surpreendeu-se com o borrifador em suas mãos, não se lembrava de tê-lo pegado. Finalmente o ônibus estava chegando. Fez sinal e esperou pacientemente na fila para embarcar no veículo. Olhou para os dois adolescentes que conversavam no ponto e, por algum motivo, sentiu uma urgência extrema de passar álcool gel nas mãos.

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