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As mãos de Maria

As mãos de Maria
Instituto Verdeluz
ago. 1 - 6 min de leitura
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Maria não é nome. É um legado, de grafia trivial e natureza extraordinária, que passa de uma mulher pra outra, aparentadas elas ou não.

As mãos de Dona Maria exibem manchas de sol de anos de sertão. Elas contam histórias de décadas atrás, assumindo que aconteceram ontem. Os já falecidos ressuscitam em sua memória, tecendo sua imaginação.

“Compadre Gerardo esteve aqui ontem”, Maria diz.

O Compadre Gerardo tinha morrido há oito anos.

Ela percebe segundos depois e ri, sem desconcerto nem cerimônia, como se a velhice fosse uma amiga que dispensasse julgamentos.

Minha avó Maria já cozinhou muito tejo, cassaco e avoante quando morava no interior. Mas se a caça do vô não ia bem, preparava feijão com farinha. Fome nunca passaram, ela gostava de destacar.

Criados no seio da terra, seus filhos e filhas cresceram tomando muito banho de rio e comendo manga do pé. Escovavam os dentes com juá e os pés eram seu principal meio de transporte. Mais tarde, meus avós e suas seis crias se mudaram para perto da capital, onde a proximidade com a Ceasa traria mais oportunidades de emprego.

Hoje, adultos com seus cinquenta e poucos anos, meus tios e tias não se converteram inteiramente ao estilo de vida da cidade. Usam o carro apenas para longas viagens, preferindo a bicicleta e as caminhadas. Minha tia Isabel planta muito do que come, dispensa o refrigerante e desacredita nos sintéticos. O tio Manoel cuida do quintal, onde criam galinha, capote e pato. Lembro dos açaís que ele colhia pra gente. Gostávamos da fruta bem antes de virar moda, saboreando-a uma vez por ano.

Mas esses eram meus tempos de infância. Hoje, pode-se ter açaí todos os dias. Não mais do terreno da minha avó, mas adquirindo de algum distribuidor de grande escala que os fornece para os incontáveis quiosques da cidade. É um sabor que fica cada vez mais caro. Sempre me pergunto que sacrifícios são invisibilizados para sustentar essa enorme pressão de seu mercado consumidor.

Cresci numa época mais desacelerada, quando os açaís eram raros, antes da explosão das redes sociais e das hamburguerias. Mas sempre havia frutas em casa, compradas do Seu Antônio, que morava no nosso quarteirão e cuja família tinha plantações na serra.

“Dois reais por uma penca de banana... Não se vê em outro lugar esse tipo de coisa, essa amizade”, minha mãe refletia.

Ela sempre enalteceu os quintais produtivos. Vivia fazendo compostagem e sujando as mãos de terra. Já plantou tomate-cereja, hortelã e medicinais aqui em casa. Fazia festa quando a mangueira dava frutos e mais ainda quando estes vinham comidos pelos passarinhos. Mamãe queria mais espaço para plantar. A caçula da família e a primeira a formar-se na universidade enchia a boca e o coração para falar sobre segurança alimentar. Graduou-se em Economia Doméstica enquanto criava os três filhos. Buscava sempre nos alimentar bem, mediante o nosso orçamento, mas pareciam inevitáveis as carnes e industrializados das grandes cadeias de produção. Sabíamos dos perigos envolvidos, da poluição, do desmatamento, dos transgênicos e aditivos que maltratam nosso corpo e a natureza.

Foi logo no primeiro semestre da faculdade que eu soube que absolutamente tudo estava contaminado e que o nosso estilo de vida contemporâneo nos fazia cruzar diariamente uma linha de fogo. Finalmente fez sentido para mim o fato de mais pessoas estarem desenvolvendo câncer e doenças ligadas à má alimentação.

Enquanto jovem adulta, fui percebendo que a vida era um ciclo de consumo e trabalho, não sendo estes necessariamente apreciáveis ou dignos. A informalidade crescia no país e, ganhando menos, as pessoas se alimentavam cada vez pior. O povo corria para os embutidos e ultraprocessados, que eram mais baratos. O saudável se tornou menos acessível.

Exaustos ao final do dia, as pessoas retornavam às telas, onde compartilhavam afetos à distância. Assistiam à vida dos outros, imagens que não as representavam, que não faziam sentido ou que simplesmente pertenciam ao mundo lucrativo da ficção. Quantas vezes chegamos a desejar que nossa vida fosse igual a de um personagem de série...

Quando penso na minha família que veio do sertão, onde havia tamanha liberdade, concluo que a promessa feita pelo urbano, de que nele tudo é possível, é falsa. Os sonhos que habitaram meu imaginário de criança iam gradativamente dando espaço às constatações da realidade.

Contudo, estar ciente deste caos pedia mais do que conciliar esperanças e frustrações. Requeria coragem para resistir a tudo que nos sufocava. Então, a educação se tornou meu combustível e também meu caminho. Fui encontrando pessoas diferentes de mim e, ao mesmo tempo, muito semelhantes. Ainda que viéssemos de lugares diferentes, compartilhávamos os mesmos ideais.

Encontrei alegria nas pequenas coisas e nos breves momentos com os amados, na esperança de criar um paraíso limitado num mundo completamente distópico. Viveríamos para transformar, incluir e diversificar.

Cheguei a me tornar cientista, professora e ambientalista aos olhos da sociedade. Mas, a princípio, eu era apenas uma sonhadora, moldada pelos meus tão livres ancestrais.

O passado se foi, mas me construiu e, por isso, continua em mim.

Um dia me tornarei pó, me unirei à terra. E as mãos da minha avó Maria, marcadas pelo campo, permanecerão lá, comigo. 

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