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Árvore da Estação

Árvore da Estação
Dinah Feldman Harari
abr. 29 - 7 min de leitura
010

Eu vivi um grande amor, daqueles de perder o fôlego, de fazer você só pensar na outra existência e até esquecer da sua. Acabou em muitas lágrimas e numa dor tão funda, misturada com aquela sensação de impotência que parece que faz a vida parar.

Meu amor era lindo. Chamava a atenção de quem passava. Seu porte, suas cores, sua forma resplandecia todo seu conteúdo maravilhoso. Era um alento nos dias de chuva e a melhor companhia num dia de Sol.

Nos encontrávamos todos os dias, por alguns anos. Desde o início foi uma conexão imediata. Depois dos nossos encontros, seguia em mim por muito tempo. Às vezes só de pensar na sua existência, um sorriso aparecia nos meus lábios, do outro lado da cidade. E eu sabia que, mesmo quando não estávamos juntos, a sua presença alegrava a vida dos outros, tornava o dia mais belo. Meu amor era capaz de fazer a conexão do que existe de mais profundo no interior da Terra com o que está acima de nós, quase tocando o céu.

Nossos encontros eram tão certos que eu cheguei a pensar que nunca deixariam de acontecer. Que nós sempre estaríamos lá, lado a lado, numa conexão impossível de se traduzir em palavras.

Mas parece que nos educamos para destruir o que não está cumprindo a sua função. Ao invés de tentar “consertar” de alguma forma, cuidar, pensar em uma rota alternativa para preservar tudo que foi construído, defender o que já existe, a nossa tendência é destruir. Pois temos a ideia de que construiremos algo melhor no lugar. Acreditando que construindo algo “novo” tudo será diferente. A excitação do novo ou a ilusão de resolver um problema eliminando o que existe matou o meu amor.

Essa semana pensei nos pares do meu amor. Foi quase uma traição. Só depois de alguns dias pensando em existências semelhantes, lembrei do meu amor. Único. Imponente.

A foto não consegue mostrar sua majestade: a *árvore da estação* - nome carinhoso que apelidei meu amor.

Diariamente, quando eu chegava apressada para pegar o trem, lá estava ela. Eu já avistava sua copa de longe e, na minha corrida matinal para não perder o trem, ela sorria ao me ver passar. Jogava um beijo de bom dia. E me acompanhava até o trem a perder de vista. Suas folhas se derramavam sobre o telhado da estação. Nos dias de longa espera, conversávamos muito. Ela me oferecia a sua sombra no verão, me contava sobre os pássaros que a visitavam, sobre os romances que aconteciam durante a noite e a faziam corar. Só no começo.

Depois foi ficando atrevida, e me contava em detalhes as peripécias dos amantes que se escondiam no seu tronco. Acho que muitas vezes ela adicionava alguns detalhes para me provocar. Foram incontáveis dias de intimidade e romance. Eu comecei a me adiantar, para poder passar mais tempo com ela. Antes de pegar o bilhete na bolsa, um carinho em seus galhos, um beijo trocado na entrada da estação e outros tantos beijos enviados do vagão. A tristeza na partida e a alegria na chegada! Voltar para casa significava mais e incríveis momentos com meu amor.

Um dia, apareceram homens e máquinas, cercaram meu amor e começaram o massacre. Eu fiquei sem palavras e sem ação. Não sabia com quem falar para evitar aquele ato hediondo.

E não foi um ataque surpresa, como um assalto ou um acidente. Mas uma ação premeditada e executada por dias a fio. No começo, eu não entendi. Ela me disse que não era nada grave, uma crise pessoal, algo que precisavam resolver, havia adoecido. Eu fiquei preocupada, “quer que procure um médico, um biólogo, um arborista? ”, eu disse. Ela me disse que era outro tipo de doença, algo que há muito tempo ela trazia em si, mas a equipe ia cuidar disso e iria ficar tudo bem. Que nós estávamos bem.

Eu sentia que a sua fala, apesar dos vocábulos, não me acalmava. Parecia dizer o contrário do seu significado. E a cada dia ela ficava mais distante. Sua forma encolhia com os cortes das máquinas. Ela evitava me olhar. Os beijos haviam sumido. E eu passei a me atrasar. Se houvesse uma forma de entrar no trem sem passar por ali, eu teria feito. Além da impotência de não saber o que fazer, a maior dor foi ela ter se distanciado de mim antes do fim.

Não sei se ela sabia o que a esperava, ou se tinha muitas outras moças para se despedir em pouco tempo. Na verdade, a gente nunca sabe do outro. Podemos tentar saber o que se passa em nós mesmos. Isso se tivermos sorte.

Depois do seu total desaparecimento, nada foi plantado no lugar. O espaço ficou como um cemitério de restos de troncos. Primeiro, vieram as baratas. Penso que elas que vão dominar o mundo quando nós desaparecermos deste lugar. Depois, virou um espaço melancólico, uma mistura de pedaços de madeira com muito lixo. Nada novo apareceu no lugar.

Ando pensando obsessivamente em árvores esses dias. Talvez seja a minha ideia fixa de ter uma base sólida para que, na primavera, a minha copa brilhe frondosa.

E ao lembrar do meu romance com a árvore da estação e nosso final trágico, pensei nessa tendência de destruição que nos habita.

Quando eu era criança, lembro de ter uma perspectiva sólida de futuro. Aos “30 anos” eu teria uma vida estabelecida, pensava. A vida era uma linha reta, com ponto de chegada.

Hoje, quando vejo minha filha, sinto que as novas gerações perderam o “futuro”. Elas têm um presente incerto nas mãos, como uma batata quente que não sabem exatamente onde colocar.

Mas talvez elas tenham a chance de mudar essa forma de agir, baseada em destruição. A minha geração, muitas antes de mim, e algumas depois, viveram com essa perspectiva de que os recursos eram infinitos. Assim como as possibilidades. Quanta vida jogada num desperdício sem fim. E essa lógica permeia tudo. Se algo não funciona, basta trocar. Trabalhar mais, comprar mais, destruir, abrir mão do que não funciona, substituir.

A cada dia, estamos sendo informados que os recursos são finitos. Que a vida é uma preciosidade frágil. Que demoramos muito tempo para construir algo e isso deve ser olhado com atenção, cuidado. Que a saúde do outro é também a nossa. Estamos todos fragilmente interligados. Como um dominó.

Minha pequena acompanhou o fim da árvore da estação comigo. Passamos pela tristeza, revolta e impotência juntas. E agora sonhamos em plantar árvores. Ela diz que vai ser a “governadora” para resolver todos esses problemas. É... parece que o futuro ainda existe.

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