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Ao espelho

Ao espelho
Cláudio Costa Val
mar. 7 - 10 min de leitura
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Quem é este, ao espelho? Sei que o conheço, mas, ultimamente, o tenho visto diferente. O cabelo e a barriga cresceram, enquanto a musculatura encolheu, sobretudo nos braços. Nele, percebo olheiras, algum desânimo e certo temor. O trabalho? Ah, sim, claro: aumentou. As finanças, entretanto, se abalaram. Falemos a verdade: dilatar as atividades laborais, não está necessariamente ligado ao crescimento da remuneração. Sobretudo em tempos atuais, onde planos foram abortados e premissas transmutadas. Não será exagero dizer que nada passará incólume às vertiginosas mutações.

Quando tudo começou, em meados de março de 2020, achava que duraria pouco. Aposto que vocês também pensaram assim. Tenho certeza. Lembro-me que, em fins do ano passado, assistia na tevê o “drama” na China, e sequer imaginava a dimensão do caos. “A China é muito longe, não precisamos nos preocupar”. Não minto: a mim mesmo, afirmei. Como imaginaria o contrário? Por certo, esqueci-me de adágio antigo, ensinado por professor que marcou a minha vida. O velho Tristão dizia: “depois do primeiro passo afora da soleira, o destino torna-se menos longínquo”. Eis verdade ancestral, que inspirava os viajantes. E revelava que, até mesmo as maiores distâncias se encurtavam, com o avanço das jornadas. Hoje, as lonjuras podem ser menores. 

À véspera de completarmos um ano de lockdown (sim, ele voltou) nem consigo mensurar todas as sensações de vivi. Ou que vivemos – no plural, porque sei que muita gente também segue estupefata. Parece que estamos imersos em ficção cientifica distópica, elaborada por roteirista criativo.  Que enredo bizarro!

Em seu livro “A vida Retirada”, Sêneca (Lucius Annaeus Seneca, 4 a.C. – 65) afirma: “ainda que nenhuma outra coisa buscássemos de saudável, o retiro por si mesmo já é aprazível. Ali, nos tornamos melhores por meio de nós mesmos”. E complementa: “que pensar então da oportunidade de retirar-se, de vez, para perto de indivíduos moralmente qualificados e escolher algum exemplo a fim de direcionar a vida? Ora, isso só é exequível no descanso pleno”.

Dos pensadores-filósofos da Antiguidade, Sêneca é dos mais lidos e celebrados. Alguns de seus textos continuam supreendentemente atuais. Debruçando-me sobre eles, quase percebo clausura como opção fácil, com ares de benesse. Não refuto; ao contrário, entendo: muito se pode ganhar com retiros voluntários.

Em “A Tranquilidade da Alma”, outra obra do autor, fica translúcido o seu ponto de vista: “é necessário saber acomodar-se à sua condição; queixar-se dela o mínimo possível; captar tudo o que ela contém de favorável, já que nada é tão acerbo que uma alma de bom senso não depare, aí, algum conforto”. Embora entendamos o conceito, para nós, ocidentais contemporâneos, movidos por ação e reação, com expectativa elevada, o recolhimento “forçado” teve sabor pouco palatável. Revolveu as nossas entranhas; abalou os nossos sentimentos. Desde os primórdios, não resta dúvida, somos causa e efeito: transfiguramos a realidade e somos transformados por ela.

De abril a outubro do ano passado, deu para suportar. Ainda que a receita tenha despencado, produtividade não faltou. Redescobri o “mundo” que conhecia e vivenciava havia duas décadas; porém, jamais exclusivamente: a web. Produzi videoaulas, investi (e continuo) ministrando aulas online, gravei inúmeros vídeos remotos, participei de lives, dei palestras, fiz lançamentos de filmes e um CD... A pandemia trouxe algum “bônus” (ainda que o termo não seja apropriado): fez-me enxergar um horizonte antes nebuloso. Também me revelou a sensação de produzir e compartilhar “conteúdo necessário”. Para explicar, recorro-me novamente a Sêneca: “o que se exige do ser humano é que seja útil a seus semelhantes e a muitos, se possível. Caso não, a poucos então. Se nem a esses, então aos mais próximos e, em última hipótese, a si mesmo. Ao fazer-se útil para os outros, finda por ativar um empreendimento comunitário”.

A passagem acima parece-me essencial. Porque não há como negar que a sensação de realizar algo que atinja positivamente as pessoas seja ótima. Com frequência, é o que faz valer o esforço. Todavia, o ônus do distanciamento pode ser pesado.

Sendo divorciado e tendo dois filhos adultos, vi-me obrigado a permanecer distante – deles e de todos –, por semanas a fio. Felizmente, os aniversários foram motivos de encontro. Um e outro almoço de fim de semana foram arranjados. Caminhadas por praças e avenidas domingueiras também aconteceram. Ainda assim, é pouco. Soa-me incipiente, para abrandar a carência da presença e do afeto.

No último domingo, meu filho mais velho visitou-me. Comprei o consuetudinário frango assado, preparei os acompanhamentos. Subimos ao terraço, almoçamos à mesa redonda. Curiosamente, no domingo anterior, fora a vez do caçula fazer o mesmo. Semana vem um; noutra, o outro. Como é maravilhoso colocar assuntos em dia com os filhos! Hoje, quem aprende com eles sou eu.

Com 2021 vivendo as "água de março", o desafio permanece, enquanto o tempo voa. A propósito, suponho que o tempo não seja retilíneo, tampouco uniforme: é variável. Assim, transcorre mais ou menos acelerado, de acordo com as eras. Ou com os momentos.

Seguindo a inquietude do cineasta sueco Ingmar Bergman (1918 – 2007) e do dramaturgo irlandês Samuel Beckett (1906 – 1989), há tempos me debruço sobre o “tempo”. Já ouvi muita gente afirmar que o tempo é relativo. Nos livros de psicanálise, os autores descrevem que o tempo cronológico e aquele que transcorre na mente existem de maneiras distintas. Há filósofos que afirmam que o tempo não designa outra coisa senão uma determinada característica do modo humano de receber informações, através dos sentidos. Os religiosos acreditam que o tempo seja eterno. Os céticos, não. Os cientistas tentam entendê-lo. Muita gente deixa o relógio avançar vertiginoso. Outros, fazem a vida escorrer vagarosamente. Ao final, existe diferença? Minha impressão é que, para os mais perspicazes, a pandemia fez com que o tempo fosse “vivido” de maneira nunca d’antes observada. Mas não teço conclusões, senão dúvidas. Certeza, apenas uma: o mundo jamais será o mesmo. Para todos os lados, fala-se em o “novo normal”. Depois da vacina, o conheceremos.

Quanto mais penso sobre a atualidade, mais conjeturações me surgem. Não posso negar espaço a um surpreendente fragmento do livro “O Teatro e seu Duplo”, escrito em 1938, pelo francês Antonin Artaud (1896 – 1948). Vejam só.

"Os arquivos da cidadezinha de Cagliari, na Sardenha, contêm o relato de um fato histórico e incrível.

Numa noite de fins de abril ou começo de maio de 1720, cerca de vinte dias antes da chegada a Marselha do navio Grand-Saint-Antoine, cuja atracação coincidiu com a mais maravilhosa explosão de peste que tenha feito borbulhar as memórias da cidade, Saint-Rémys, vice-rei da Sardenha, a quem as reduzidas responsabilidades de monarca talvez tivessem sensibilizado aos vírus mais perniciosos, teve um sonho particularmente aflitivo: viu-se pestífero e viu a peste arrasar seu minúsculo Estado.

Sob a ação do flagelo, os quadros da sociedade se liquefazem. A ordem desmorona. Ele assiste a todos os desvios da moral, a todas as derrocadas da psicologia, escuta em si mesmo o murmúrio de seus humores, corroídos, em plena destruição, e que, num vertiginoso desperdício de matéria, tornam-se densos e, aos poucos, se metamorfoseiam em carvão. Será tarde demais para conjurar o flagelo? Mesmo destruído, mesmo aniquilado e pulverizado organicamente, e queimado em suas entranhas, ele sabe que não se morre nos sonhos, que neles a vontade atua até o absurdo, até a negação do possível, até uma espécie de transmutação da mentira com a qual se refaz a verdade.

Ele desperta. Saberá mostrar-se capaz de dissipar todos os boatos de peste que estão correndo e os miasmas de um vírus vindo do Oriente.

Um navio que partiu há um mês de Beirute, o Grand-Saint-Antoine, pede licença para atracar e desembarcar. E então ele dá a ordem louca, a ordem considerada delirante, absurda, imbecil e despótica pelo povo e por todo o seu círculo. Rapidamente manda para o navio, que presume contaminado, a barca do piloto e alguns homens com a ordem para que o Grand-Saint-Antoine vire de bordo imediatamente e se faça à vela para longe da cidade, sob pena de ser afundado a tiros de canhão. A guerra contra a peste. O autocrata atacava de frente.

É preciso, de passagem, observar a força especial da influência que aquele sonho exerceu sobre ele, pois ela lhe permitiu, apesar dos sarcasmos da multidão e do ceticismo de seu círculo, perseverar na ferocidade de suas ordens.

Seja como for, o navio continuou seu caminho, chegou a Livorno e entrou no porto de Marselha, onde lhe foi permitido desembarcar.

Os serviços públicos de Marselha não guardaram lembrança do que aconteceu com sua carga de pestíferos. Sabe-se mais ou menos o que aconteceu com os marinheiros de sua tripulação, que não morreram todos de peste e se espalharam por diversos lugares.

O Grand-Saint-Antoine não levou a peste a Marselha. Ela já estava lá. E num período de particular recrudescência. Mas já se tinha conseguido localizar seus focos.

A peste trazida pelo Grand-Saint-Antoine era a peste oriental, o vírus original, e é de sua chegada e de sua difusão pela cidade que datam o lado particularmente atroz e o alastramento generalizado da epidemia".

O excerto de Artaud é prova cabal de como os ciclos se repetem. Os fatos podem variar, mas a espiral do tempo, que circunda a Humanidade, cria o seu eterno vai e vem. Quer queiramos ou não; quer saibamos ou não.

Nos últimos doze meses, tivemos perdas – milhares! Vivemos angústias: inúmeras. Sentimos as dores. O que seria da vida sem os amores?

Espero que aprendamos. E que sejamos melhores.

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