UMA TARDE PARA SEMPRE
Desde
criança, eu gostava de ficar perto da pequena estante que meu pai mantinha em
casa a cada mudança de endereço por causa da sua carreira no magistério. E
foram tantas, que já nem me lembro quantos quartos eu chamei de meu. Mas nunca
me esqueci daqueles livros que me despertavam a atenção. Conforme eu ia
crescendo e me tornando uma adolescente sonhadora e tímida, gostava cada vez
mais de dias chuvosos para entrar no mundo mágico dos contos de fadas, com castelos,
bosques de lilases e paisagens repletas de figuras encantadas que faziam girar
o meu carrossel de ilusões. A minha adolescência foi uma fase turbulenta em que
nada parecia ser para valer.
Gostava
de folhear os livros de capa dura, do vermelho das enciclopédias do século
passado, dos romances de época e me metia até a ler uma coleção de filósofos pensadores,
encadernada em verde musgo, tentando achar uma frase que fizesse algum sentido
para mim por pura curiosidade. Lia trechos, pulava páginas e passava horas
buscando algo que pudesse ir além das aventuras infanto-juvenis de Montero
Lobato e de Mark Twain, o meu escritor preferido na época, devo confessar. Eu
sentia que havia algo mais profundo do que o “choramingante” Oliver Twist
e mais precioso que os tesouros encontrados em ilhas perdidas, incluindo
sobreviver sozinho em uma delas, como fez Robinson Crusoe. Mas eu ainda
não tinha a maturidade e a experiência suficientes para organizar as ideias
sobre a vida e as suas ciladas.
E foi
exatamente em uma ilha imaginada pelo escritor inglês William Golding, em 1954,
na qual ele ambientou a sua história, o best-seller O Senhor das Moscas,
(Lord of the Flies, no original), que eu consegui dar um passo transformador
para compreender melhor a condição da humanidade e trago essa escalada comigo
até hoje, quase 40 anos depois da primeira leitura, me fazendo capaz de refletir
sobre o sentido de tudo. Aparentemente, parecia mais uma aventura de meninos,
jovens cadetes ainda adolescentes que sobreviveram à Segunda Guerra Mundial e
estavam sendo levados para casa por um avião militar que caiu em uma ilha
deserta, em algum lugar do oceano pacífico. Com exceção do piloto, que morreu
dias depois por causa dos ferimentos, todos saíram ilesos, mas com o difícil desafio
de se manterem vivos e serem resgatados.
Até
aí, uma história comum, sem nada de especial para transformar a vida de alguém,
como foi o meu caso. Vale destacar que o autor conheceu de perto os horrores do
maior conflito bélico da história e chegou à conclusão pessimista de que todos nós
nascemos com o instinto ancestral do bem e do mal como faces da mesma moeda,
assim como as abelhas já conhecem a fórmula para produzir o mel. O que difere
as nossas condutas diz respeito ao alinhamento traçado pelo nosso
autoconhecimento e pela capacidade de controlar as nossas emoções nesse campo eterno
de batalha. Golding sabia aonde queria chegar quando disse que o seu livro retratava
crianças e adolescentes como eles eram.
Eu me
lembro até hoje que o meu encontro com essa mensagem se deu em uma tarde morna
e ensolarada no tapete do chão da sala. Eu tinha 23 anos e estava cursando
Letras, com ênfase na língua inglesa. Era praticamente uma obrigação ler os
maiores clássicos nessa língua e, mesmo na marcha lenta, eu tentava me
esforçar. Como esse livro parecia ser de fácil compreensão, comecei de cara a
ler e a gostar dos protagonistas Ralph, o mais velho da turma, eleito em
votação democrática como o líder da missão e do pobre Porquinho, garoto obeso
que usava óculos com lentes grossas como fundo de garrafa por ter a visão muito
prejudicada, além de sofrer o que hoje conhecemos por bullying. Jack era o
antagonista, inclinado a transgredir as leis, e só pensava em usufruir dos
prazeres da ilha com paisagens deslumbrantes, lagos transparentes, vegetação
farta, frutas, peixes e porcos à vontade para o retorno ao primitivo.
Com o
passar do tempo, essa sedução por uma vida livre e sem as ordens do mundo
adulto acabou fazendo a cabeça da maioria dos outros meninos que se rebelaram
contra Ralph, que queria manter acesa uma fogueira no ponto mais alto da ilha
para alguma embarcação ou aeronave avistá-la e socorrer a todos. Entre aqueles
que ainda respeitavam a decisão democrática inicial estava Simon, um jovem que
sofria de epilepsia e tinha ataques de convulsão frequentes, além de ouvir
vozes misteriosas. Foi exatamente do diálogo entre esse personagem e a cabeça
de um porco degolado pela turma de Jack para virar churrasco e depois fincada
em uma estaca de madeira, que vem um dos melhores trechos literários de todos
os tempos.
Uma
tempestade começou a tomar conta da ilha que, de bela e ensolarada, passou a se
tornar um pesadelo cinzento e ameaçador com o temporal que se aproximava. Ao
caminhar sozinho pela mata, Simon encontrou essa cabeça de porco, rodeada por
insetos, que revelou a ele a sua essência primordial: assim como a natureza
contém a dualidade entre o bem e o mal, essa última também reside dentro de
todos os seres vivos, para a qual não existe saída e nem mesmo redenção. Foi então
que percebi que o mito do bom selvagem, de Rousseau, não passava de uma utopia.
Ninguém nascia livre e nem bom, mas sim, vítima dessa condição irrefutável que
jamais vai permitir a construção de uma sociedade justa e igualitária, sem
guerras e vivendo em plena harmonia, independentemente de qualquer regime
político ou sistema econômico vigente.
Ao ler
aquelas páginas, foi como se um clarão de abrisse e iluminasse a minha forma de
enxergar a vida dali em diante. Agora sim, tudo aquilo que eu já intuía ao não
me empolgar com os discursos ideológicos, por mais inflamados e engajados com
causas nobres que fossem, tinha uma explicação. O mal-estar na civilização
sempre prevaleceria e nunca seria vencido pelo ímpeto incendiário de revoluções
heroicas, pontuais e incentivadas pela instauração de valores éticos e morais tão
irreais quanto uma miragem em pleno deserto.
Apesar da sensação de impotência em saber que a minha vida fazia parte de uma jornada existencial bem maior do que ela, senti um certo alívio. Estava finalmente salva dos discursos vazios, da crença nas verdades prontas e de me cobrar por uma tal felicidade que cabia apenas nos contos de fada da infância. Sim, haveria muitos momentos felizes à minha espera pelo caminho, mas agora eu poderia dar a eles a devida dimensão e também aos obstáculos e desafios que viesse a encontrar. Aprendi com O Senhor das Moscas que ser humano era a maior aventura de todas.