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UMA TARDE PARA SEMPRE

UMA TARDE PARA SEMPRE
Maria Alice Carnevalli
out. 27 - 8 min de leitura
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UMA TARDE PARA SEMPRE

 Nunca fui desses leitores vorazes que se gabam de ler centenas de páginas de uma vez só em um único dia, às vezes até na diagonal, fazendo um link imaginário com um trecho do primeiro parágrafo da página da esquerda com o último da página direita. Não, eu sempre fui no meu ritmo lento e contemplativo da construção dos personagens, buscando os numerosos significados contidos nas entrelinhas e das frases que me faziam parar para serem relidas e pensadas a partir de um contexto maior da estrutura linear de tempo e espaço de cada história contada.

Desde criança, eu gostava de ficar perto da pequena estante que meu pai mantinha em casa a cada mudança de endereço por causa da sua carreira no magistério. E foram tantas, que já nem me lembro quantos quartos eu chamei de meu. Mas nunca me esqueci daqueles livros que me despertavam a atenção. Conforme eu ia crescendo e me tornando uma adolescente sonhadora e tímida, gostava cada vez mais de dias chuvosos para entrar no mundo mágico dos contos de fadas, com castelos, bosques de lilases e paisagens repletas de figuras encantadas que faziam girar o meu carrossel de ilusões. A minha adolescência foi uma fase turbulenta em que nada parecia ser para valer.

Gostava de folhear os livros de capa dura, do vermelho das enciclopédias do século passado, dos romances de época e me metia até a ler uma coleção de filósofos pensadores, encadernada em verde musgo, tentando achar uma frase que fizesse algum sentido para mim por pura curiosidade. Lia trechos, pulava páginas e passava horas buscando algo que pudesse ir além das aventuras infanto-juvenis de Montero Lobato e de Mark Twain, o meu escritor preferido na época, devo confessar. Eu sentia que havia algo mais profundo do que o “choramingante” Oliver Twist e mais precioso que os tesouros encontrados em ilhas perdidas, incluindo sobreviver sozinho em uma delas, como fez Robinson Crusoe. Mas eu ainda não tinha a maturidade e a experiência suficientes para organizar as ideias sobre a vida e as suas ciladas.

E foi exatamente em uma ilha imaginada pelo escritor inglês William Golding, em 1954, na qual ele ambientou a sua história, o best-seller O Senhor das Moscas, (Lord of the Flies, no original), que eu consegui dar um passo transformador para compreender melhor a condição da humanidade e trago essa escalada comigo até hoje, quase 40 anos depois da primeira leitura, me fazendo capaz de refletir sobre o sentido de tudo. Aparentemente, parecia mais uma aventura de meninos, jovens cadetes ainda adolescentes que sobreviveram à Segunda Guerra Mundial e estavam sendo levados para casa por um avião militar que caiu em uma ilha deserta, em algum lugar do oceano pacífico. Com exceção do piloto, que morreu dias depois por causa dos ferimentos, todos saíram ilesos, mas com o difícil desafio de se manterem vivos e serem resgatados.

Até aí, uma história comum, sem nada de especial para transformar a vida de alguém, como foi o meu caso. Vale destacar que o autor conheceu de perto os horrores do maior conflito bélico da história e chegou à conclusão pessimista de que todos nós nascemos com o instinto ancestral do bem e do mal como faces da mesma moeda, assim como as abelhas já conhecem a fórmula para produzir o mel. O que difere as nossas condutas diz respeito ao alinhamento traçado pelo nosso autoconhecimento e pela capacidade de controlar as nossas emoções nesse campo eterno de batalha. Golding sabia aonde queria chegar quando disse que o seu livro retratava crianças e adolescentes como eles eram.

Eu me lembro até hoje que o meu encontro com essa mensagem se deu em uma tarde morna e ensolarada no tapete do chão da sala. Eu tinha 23 anos e estava cursando Letras, com ênfase na língua inglesa. Era praticamente uma obrigação ler os maiores clássicos nessa língua e, mesmo na marcha lenta, eu tentava me esforçar. Como esse livro parecia ser de fácil compreensão, comecei de cara a ler e a gostar dos protagonistas Ralph, o mais velho da turma, eleito em votação democrática como o líder da missão e do pobre Porquinho, garoto obeso que usava óculos com lentes grossas como fundo de garrafa por ter a visão muito prejudicada, além de sofrer o que hoje conhecemos por bullying. Jack era o antagonista, inclinado a transgredir as leis, e só pensava em usufruir dos prazeres da ilha com paisagens deslumbrantes, lagos transparentes, vegetação farta, frutas, peixes e porcos à vontade para o retorno ao primitivo.

Com o passar do tempo, essa sedução por uma vida livre e sem as ordens do mundo adulto acabou fazendo a cabeça da maioria dos outros meninos que se rebelaram contra Ralph, que queria manter acesa uma fogueira no ponto mais alto da ilha para alguma embarcação ou aeronave avistá-la e socorrer a todos. Entre aqueles que ainda respeitavam a decisão democrática inicial estava Simon, um jovem que sofria de epilepsia e tinha ataques de convulsão frequentes, além de ouvir vozes misteriosas. Foi exatamente do diálogo entre esse personagem e a cabeça de um porco degolado pela turma de Jack para virar churrasco e depois fincada em uma estaca de madeira, que vem um dos melhores trechos literários de todos os tempos.

Uma tempestade começou a tomar conta da ilha que, de bela e ensolarada, passou a se tornar um pesadelo cinzento e ameaçador com o temporal que se aproximava. Ao caminhar sozinho pela mata, Simon encontrou essa cabeça de porco, rodeada por insetos, que revelou a ele a sua essência primordial: assim como a natureza contém a dualidade entre o bem e o mal, essa última também reside dentro de todos os seres vivos, para a qual não existe saída e nem mesmo redenção. Foi então que percebi que o mito do bom selvagem, de Rousseau, não passava de uma utopia. Ninguém nascia livre e nem bom, mas sim, vítima dessa condição irrefutável que jamais vai permitir a construção de uma sociedade justa e igualitária, sem guerras e vivendo em plena harmonia, independentemente de qualquer regime político ou sistema econômico vigente.

Ao ler aquelas páginas, foi como se um clarão de abrisse e iluminasse a minha forma de enxergar a vida dali em diante. Agora sim, tudo aquilo que eu já intuía ao não me empolgar com os discursos ideológicos, por mais inflamados e engajados com causas nobres que fossem, tinha uma explicação. O mal-estar na civilização sempre prevaleceria e nunca seria vencido pelo ímpeto incendiário de revoluções heroicas, pontuais e incentivadas pela instauração de valores éticos e morais tão irreais quanto uma miragem em pleno deserto.

Apesar da sensação de impotência em saber que a minha vida fazia parte de uma jornada existencial bem maior do que ela, senti um certo alívio. Estava finalmente salva dos discursos vazios, da crença nas verdades prontas e de me cobrar por uma tal felicidade que cabia apenas nos contos de fada da infância. Sim, haveria muitos momentos felizes à minha espera pelo caminho, mas agora eu poderia dar a eles a devida dimensão e também aos obstáculos e desafios que viesse a encontrar. Aprendi com O Senhor das Moscas que ser humano era a maior aventura de todas.




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