Era março de 2020. As ruas ficaram vazias; os jardins, cercados. Os rostos ganharam máscaras e pavor. O comércio fechou, o dinheiro acabou, o medo aumentou, a morte espreitou. Eu, recém casada, juntando amigos, esforços e parcos recursos, acabara de inaugurar, no Porto, em Portugal, uma casa de cultura, a Casa Quântica de Cultura, uma proposta intercultural de linguagens artísticas, que busca criar pontes de diálogo, respeito e compreensão entre as mais diversas culturas, suas nacionalidades, sotaques, características afins e díspares também. Um espaço aberto aos mais diversos campos do conhecimento, como o Teatro, a Gastronomia, a Performance, a Literatura, a Música, a Dança, o Circo, as Artes Gráficas e Visuais, entre tantos outros. Os artistas, assim como o público, reuniam-se a fim de trocar experiências e expandir seus horizontes existenciais. Estreamos no dia 22 de janeiro, realizamos uma ressaca de carnaval no dia 29 de fevereiro e um 8M – encontro das deusas – para celebrarmos o Dia Internacional das Mulheres com 14 artistas em cena. A Casa Quântica de Cultura crescia e se expandia... Já era inclusive objeto de pesquisa de uma mestranda! Mas, como era março de 2020, tivemos, como toda a classe artística mundial, de interromper a nossa programação.
A ideia era continuar a unir artistas em performances inéditas e únicas, com público, muito público. De repente, enfurnada num apartamento de 1 quarto, um T1 como dizem por lá, sem perspectivas e proibida de reunir pessoas, deparei-me, como tantos outros artistas, com a solidão e a incerteza da possibilidade de retorno às ruas, à plateia. Muitos de nós passaram a habitar as redes sociais, para entreter e produzir, no único espaço possível. Eu peguei a contramão e mergulhei profundo nas minhas angústias. Esse relato é uma tentativa de trazer à superfície um pouco do que pude sentir, ver, intuir, aprender, apreender...
A quarentena, muito bem sucedida no Porto, foi interrompida no dia 6 de maio. Seguindo ainda muitas precauções, passamos a ter bastante flexibilidade para nos movimentarmos pela cidade e já começávamos a nos organizar para estabelecer novos parâmetros de trabalho, como, por exemplo, promover encontros com pequenos grupos, trocas, cursos, aulas... Eis que, três dias antes do meu aniversário de 39 anos, no dia 6 de junho, a roda viva da vida joga de novo meus planos pra lá. Recebo a notícia de que minha mãe fora infectada com o vírus da Covid-19 e estava em estado grave, porém não o suficientemente grave para ser internada, na cidade do Rio de Janeiro. Como sou filha única e ela morava sozinha, senti-me compelida a estar com ela nessa jornada para o que desse e viesse.
E lá fui eu para a minha segunda quarentena!
No dia 29 de junho, deixei (o tão esperado verão de) Portugal, país considerado um dos melhores exemplos de controle na pandemia, para encarar o inverno tupinikim (sempre com um sol maroto de plantão), num "Brasil acima de tudo", que já apresentava, nessa época, o marco de CINQUENTA E NOVE MIL MORTES por Covid-19. Nesse fatídico 2020, ganhei dois invernos e perdi o verão... Perséfone não voltou à terra e Deméter continuou furiosa... Como diz o ditado popular, “a vida não é para iniciantes”. Talvez seja para iniciadas... mas isso é outra história.
Mas o que quero mesmo com essas mal traçadas linhas é contar-vos em bom português, (ou brasileiro, como preferirem, contá pra tu, pra vcs, pra ocês) o que aprendi – com essa viagem misteriosa e surpreendente. Então, vamos lá!
Eu aprendi, ou espero ter aprendido, de uma vez por todas, pra não ter de repetir a lição:
- a praticar meditação zen, exercitando o silêncio, a respiração e o pulso da vida, a qual nos ensina a deixar os pensamentos “caírem como ondas, num oceano sem praias”
- a acreditar na magia da existência que me mostrou que um mundo inteiro trancado, trancafiado, apesar de toda dor, pode e continua a existir, tecendo laços de amor e solidariedade
- a comprovar que, ainda que eu nada faça, algo irá acontecer – e que é a partir desse acontecimento que eu posso me (re) colocar e (re) agir
- a valorizar todas as práticas e rituais como SAGRADAS e respeitá-las, mesmo que não me digam respeito, ou sejam desimportantes (para mim), pois tudo IMPORTA (a alguém). Por isso, RESPEITO
- a não julgar antes de experienciar, de provar, de testar. Diante disso, aprendi que julgar o outro, o comportamento alheio, é loucura e vaidade. Não que eu possa ou queira deixar de ser LOUCA e vaidosa, longe de mim. Só tento escrever melhor o meu roteiro. Como boa BOBA da corte, aprendi a dizer verdades ao rei, brincando e facilitando a vida de quem não tem acesso a ele
- a reafirmar e me orgulhar de velhas certezas, de que, por exemplo, DOAR, COLABORAR, AMAR, COOPERAR, SER COLETIVA, SER COM, é bom demais e sempre vale muito. Valor nem sempre de mercado. Valor de princípios éticos e humanos
- a verificar antigas suspeitas (como é bom ter tempo para reavaliar nossas escolhas!), como a de que tudo que defendemos na TEORIA da arte, da filosofia, do feminismo, da sociedade mais igualitária, antirracista, antifascista, pró-ambiental, etc e tal, é tudo muito lindo e super ajuda a criar e espalhar ideias e belezas por aí, mas, porém, no entanto, contudo, todavia, tudo isso ou qualquer coisa, sem a AÇÃO PRÁTICA e EFETIVA no suporte à vida, do outro e da nossa, não vale nada. Ou menos ainda.
- a entregar, a confiar, a ter fé, a renovar a fé, mesmo quando tudo esmorece. Como disse o poeta, “seguir com fé eu vou, que a fé não custuma faiá”. Aprendi que todo MEDO passa quando a gente entrega, entrega os pontos e as pontas, verdadeiramente, sem expectativas, garantias ou promessas. É a tal fé no inefável, no desconhecido, no abismo. Quando há mortes, miséria e descaso por todos os lados, somente um desejo inexplicável em direção à continuidade nos possibilita a aprender mais e mais. E a seguir, a prosseguir. Até o momento, dia 8 de agosto de 2020, há quase 723 mil mortes por COVID-19 pelo mundo. Nesse placar medonho, três grandes nações sobem ao pódio, para vergonha e desespero de todos nós: Estados Unidos, com 163.575; Brasil, com 100.240 (CEM MIL MORTES!!! Lembram que comecei o texto pontuando 59 mil, no fim de junho?); Índia, com 42.518. Diante desse quadro dantesco, só nos cabe ter fé e lutar para que os vivos reúnam os seus, os nossos cacos, a fim de construirmos, juntos, um futuro tão distante como impensável nas melhores obras de ficção científica. Aliás, lembrei-me da Renascença, e de como os cientistas eram também artistas, e aprendi que está mais do que na hora de sermos artistas, mas também cientistas, sobretudo cientistas sociais.
- a, finalmente, ESTAR ATENTA e DESPERTA. Aprendi que não há como eu não ser EU mesma, com todas as minhas potências e fragilidades, talentos e defeitos. Aprendi que posso conviver com essa salada mista que sou, estou, sempre em devir, de olho no porvir. Aprendi que não devo sacrificar quem sou, que devo respeitar a minha história, honrar os meus passos e daqueles que vieram antes, da nossa ancestralidade. Não devo, não quero e nem consigo sacrificar minha arte, no sentido mais amplo da palavra ARTE, minha força criativa, para viver onde e com quem for, em nome de um contrato de trabalho, uma falsa segurança, fama, mera sobrevivência, passaporte ou coisa que o valha. Aprendemos, todos nós, que tempo NÃO é dinheiro. Essa pandemia veio nos lembrar, na minha modesta opinião, o que já sabíamos, mas, anestesiados, fingíamos esquecer, ou não ver:
o SAGRADO.
E O QUE É SAGRADO PARA NÓS?
Para mim, eu sei alguma coisa e continuo me (re) fazendo essa pergunta todos os dias ao levantar e ao adormecer... Só não conto aqui, pois já aprendi, há muito tempo, com a Suma Sacerdotisa do TAROT, que o sucesso da magia é o silêncio. E, para adentrar os portais do sagrado, é necessário um punhado de silêncio e pés leves. Aprendi que nossos pés têm olhos. Por isso, vez em quando, devemos andar descalços para ver melhor...
Que grata surpresa é estar AQUI e AGORA! Vejam só como não vale à pena, nem as penas, sofrer em demasia. Nem pelas (in) decisões, nem pelas (im) posições, externas e / ou internas. A roda viva da vida joga a gente para lá e acolá. E eis que estou cá.
Cá estou a tentar entender essa linguagem estranha e indecifrável desse tal de FLUXO, que atende também pelo nome de UNIVERSO. E olha que sufoco! SU - FOCO! Uma pandemia! Mundial! Como somos dramáticos não é mesmo? Somos. Já nos ensinou o bom velhinho grego, “drama é ação”. Personagens que somos, somos pessoas que agem... Somos tão, tão narradores, ficcionais, discursivos, que nem mesmo as deusas acreditam nas nossas lágrimas. Elas sabem que nós, escondidos, olhamos para o espelho, com e sem máscara, para verificar como estamos bonitos e aprender um bucadinho mais sobre como e quando chorar melhor. Nem que seja de canto de olho.
Escrevo esse texto no início de um agosto bem leonino, regido pelo SOL. Estamos bem. Minha mãe está curada. Eu (ainda) não fui infectada. Estamos em casa, respeitando todas as recomendações, por respeito aos vivos e aos mortos. Todos os dias, rezamos, mamãe e eu, cada uma com suas crenças e rituais, totalmente diferentes, mas com um só objetivo: o de rogar às deusas e deuses que esse país tropical, (abençoado por Deus?) e bonito por natureza, possa se reerguer em breve e que os mais atingidos pela sempre precária estrutura econômica sobrevivam e tenham forças para continuar, já que, como dizem os versos do poeta, “essa gente vai em frente sem nem ter com quem contar”.
Minha companheira de vida segue cuidando das nossas casas no nosso Porto seguro, a do T1 e a Quântica. E para amenizar um pouco a minha ausência e essa separação repentina, ainda que temporária, adotou um felino geminiano, bem bagunceiro como eu, para lhe ocupar os dias, a mente e o coração, até a minha volta, prevista para outubro. Evoé possamos todos brindar juntes em breve! Aqui no Brasil, em Portugal e onde pudermos e quisermos. O mundo é quântico. A arte, sem fronteiras.