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Uma Analogia de Duas Cidades

Cacyo Nunes
set. 25 - 10 min de leitura
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Prestado-se sempre o devido respeito ao regulamento deste prêmio, que nos exige uma narrativa real de nosso aprendizado durante a pandemia, eu gostaria de dizer que a maior lição de vida que tirei do momento em que vivemos pode ser melhor explicada por meio de uma analogia. Imaginemos duas cidades, Azul e Amarela, vizinhas; são fictícias, mas não existe nada de mais real, de mais sólido, do que a aula que elas tem para nos dar sobre a perseverança em tempos difíceis. Imaginemos que elas estejam perto de alguma zona sísmica; já não são duas cidades brasileiras, mas isso não vai importar para nosso exercício mental. Imaginemos que cada uma possua um governo municipal com certa autonomia para decidir o que deve ou não ser feito dentro de cada uma; não sei dizer se também é assim fora do Brasil, mas vai nos servir.

Certo dia, o imprevisível acontece: um terremoto atinge as duas! Caos, destruição, perdas, sofrimento. O prejuízo, de bens e de vidas, é imenso para ambas. O governo de Amarela, com nervos de aço, se esforça para analisar a realidade da situação: o asfalto das ruas rachou ao meio, postes elétricos e árvores caíram sobre elas, até a velha represa se rompeu e inundou vários bairros. A administração pública consulta seus melhores geólogos e engenheiros, e a conclusão é clara: a antiga vida pacata de Amarela vai deixar de existir por algum tempo, é hora de manter a maioria da população segura dentro de suas casas enquanto as autoridades lidam com o problema. Uma máquina tão danificada não pode ser consertada enquanto anda.

Mas imaginemos nós que a visão que o governo de Amarela tem do problema não seja universal. Digamos que o governo de Azul pense diferente. Os danos em Azul são semelhantes, a cidade parece intransitável, mas os governantes então declaram ao povo que em momentos difíceis como estes é necessária a união de todos e a solidariedade para que cada um faça sua parte - e aqueles que dizem que é hora de abandonar tudo aos porcos são inimigos do povo, incapazes de compreender a realidade do pequeno trabalhador do alto de seus diplomas. A pequena Azul tem bocas para alimentar, tem escolas e hospitais para sustentar com sua modesta arrecadação, e parar a máquina seria se render ao terremoto, seria admitir a vitória da natureza bruta sobre o gênio indomável do homem, algo que nunca fizemos e continuaremos sem fazer. As ruas alagadas não são intransitáveis para aqueles que desbravaram outros continentes, as fábricas desmoronadas não são problemas insolúveis para a espécie que dividiu o átomo. Não podemos deixar o luto das perdas nos impedir de viver!

É de se supôr que, a partir daí, cada cidade procederia de acordo com a filosofia de seus governantes. Amarela vive várias semanas daquilo que alguns sentem como um encarceramento em massa da população, com as crianças vendo o sol e a lua apenas pelas janelas e os adultos percebendo que não conheciam direito as pessoas em suas próprias casas, com as quais eles precisam lidar vinte e quatro horas por dia agora. Enquanto isso, alguns bravos guerreiros se aventuram no mundo externo, protegidos por uniformes grossos e pesados, serrando árvores caídas, instalando bombas para desviar cursos de água para longe da região, erguendo novamente os edifícios que desabaram. Todos os dias, a televisão mostra que alguns se afogaram, outros foram eletrocutados pela inundação, mas que o batalhão segue trabalhando incansavelmente para trazer a normalidade de volta. Desenhos de crianças começam a aparecer na internet. Os bombeiros são vistos como super heróis.

Mas o que dizer da pequena Azul, com uma população inteira de heróis? Por toda a cidade, pais e mães entendem que a fome de seus filhos não vai passar por causa de um terremoto. Eles forram suas botas, discutem atalhos com seus vizinhos, constroem canoas improvisadas, fazem as gambiarras que podem em seus carros, e vão à luta. As crianças e os idosos ficam protegidos em casa, enquanto seus provedores desbravam uma terra pós-apocalíptica. Os mais másculos e corajosos empreendedores promovem até festas para arrecadar fundos para a continuidade da vida na cidade. Os tempos são difíceis, e os noticiários não param de contar grupos inteiros que morrem eletrocutados ao passar por determinadas ruas com postes submersos, dezenas de trabalhadores que encontram seu fim trabalhando sob tetos de fábricas que foram avariados pelo terremoto e finalmente caem com a vibração da primeira máquina que for ligada. As homenagens a eles são inumeráveis, as vítimas de uma tragédia continuada são choradas todos os dias. O luto é estendido, mas é feito de trabalho duro ao invés de silêncio.

Com o tempo, acredito que você concorde comigo, as consequências chegam. Após dois meses de trabalho pesado, o fim da prisão domiciliar generalizada em Amarela finalmente chega, mesmo depois de parecer que duraria para sempre. A cidade está reconstruída! Mas a vida em Amarela nunca mais será exatamente a mesma depois do aprendizado que aquele terremoto trouxe. Os edifícios agora são mais resistentes, os cabos elétricos são enterrados e muito melhor isolados, a rede de bueiros foi redesenhada, as crianças aprendem na escola como se virar em terremotos. As pessoas não saem para a mesma Amarela, mas para uma cidade muito mais segura. O dia do retorno é marcado por festas por toda a cidade, e até aqueles que pensaram que nunca diriam isso ficam felizes de voltar ao trabalho. A procura por psicólogos bate recordes, pois as pessoas percebem que não se conheciam de verdade.

Mas o leitor há de concordar que melhor do que comemorar a cura é nunca ter ficado doente. Ou será que não? Enquanto Amarela faz farra, Azul tem as mais sérias preocupações econômicas. Enquanto o pai de família salta por cima de fendas no chão para ganhar seu sustento na fábrica de rádios, o patrão percebe que a maioria da população não está muito afim de arriscar a própria vida para ir na loja comprar um rádio. O time de futebol da cidade, grande orgulho da população de Azul, se vê assombrado pelo prejuízo depois que seus dois melhores centroavantes caíram num bueiro para nunca mais serem vistos. O governo municipal corta o leite das crianças na escola para meia xícara e então para um terço, pois a arrecadação caiu como um poste atingido por um solavanco de terra. Os engenheiros da cidade se unem e publicam no jornal seu plano de reconstrução de Azul, pedindo para parar a cidade por cinco semanas para reparar a tragédia agora prolongada. A coisa ficou mais difícil, mas nunca é tarde para fazer o certo, eles dizem. Em entrevista no dia seguinte, os governantes declaram que, sendo homens atarefados como são, não leem o tal jornal.

O longo prazo acaba por ser o juiz, imparcial e inexorável, daquilo que poderia ter sido previsto a muito tempo. A economia de Amarela cresce duas casas percentuais por ano, pois as famílias sabem que o dinheiro investido na construção de sua nova residência vai lhes render uma fortaleza segura e confiável. Os governantes de Amarela montam uma chapa para a eleição nacional, e disparam nas pesquisas prévias de um país que já se cansou de uma administração despreparada. Os geólogos amarelenses são convidados para congressos no mundo inteiro, onde explicam como o poder público e a ciência podem ser aliados na busca do bem maior. As pessoas respiram o ar da rua com gosto, pois passaram a valorizar aquilo que elas perceberam que podem perder.

Enquanto isso, em Azul, o leitor há de me desculpar, pois nem eu, que sou autor da analogia, sei explicar exatamente como Azul anda por estes dias. Ninguém sabe, o caos é indecifrável. As tentativas do governo de mascarar os números de mortos em acidentes foram rapidamente desbaratadas por jornalistas dedicados que… divergiram em seus números também, porque todo mundo perdeu a conta. O país vizinho, que antigamente tinha planos ambiciosos de abrir filiais de suas farmácias em Azul, agora coloca seus geólogos para xingar a gestão da crise todos os dias na televisão; abri-las em Amarela vai ser o jeito. O pai de família, que se negava a ficar em casa pois precisava alimentar os filhos, agora não tem muito para onde ir, porque a velha fábrica de rádios fechou. O patrão, que tanto se gabava de não ter medo de nada, morreu fazendo o que gostava, quando a vibração das grandes caixas de som fez a casa de festas danificada cair de vez. O juiz se vê às voltas com processos de herança cada vez mais confusos, porque aparentemente o patriarca da família morreu mas todos os herdeiros também. Mas isso foi antes do juiz morrer, no caso. Falando em morte, o governo de Azul abdicou. Ninguém sabe bem o que aconteceu com eles depois disso.

E acredito que seja isto o que eu tinha a contribuir para o aprendizado coletivo da humanidade durante este momento de pandemia: que pessoas morrem quando você acha que sabe mais que a ciência; lição mais real não há, que se faz verdade até no mundo da imaginação. Que tragédias são mil vezes ampliadas quando você coloca sua autoconfiança acima da dedicação daqueles que estão tentando te alertar. Porque quem avisa amigo é, e não deve ser confundido por opositor de forma alguma. E mais amigo ainda é quem te puxa a orelha para avisar que você está errando, enquanto ainda há tempo para corrigir a rota.


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