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Um rastro de encantamento

Um rastro de encantamento
Saul Gomes
dez. 11 - 6 min de leitura
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Sérgio é um professor inesquecível!

Embora Sérgio Antônio Takemura tenha partido, o Professor Sérgio “é”, está presente, vívido na memória dos que tiveram o privilégio de participar das suas aulas.

Fui seu aluno no curso de Letras. Nunca esquecerei suas aulas apaixonadas e apaixonantes: os saltos da mesa, os versos declamados, as interações individuais com os estudantes. Era incrível como aquele pequeno homem se agigantava na sala de aula!

Ensinava, com a mesma didática prodigiosa, Literatura e Gramática; jamais conheci outra personalidade na qual se harmonizassem, com tamanha perfeição, sensibilidade e raciocínio lógico. Nas aulas de Literatura Brasileira, relacionava obras literárias e vida cotidiana; falava de música, pintura, cinema (o pequeno nissei nos apresentou Akira Kurosawa). Sérgio não dava aulas sobre poesia; ele dava aulas com poesia! Além de dissecar apaixonadamente poemas de vários autores, ele improvisava alguns versos próprios. Fazia poesia falando...

Nas aulas de Língua Portuguesa, ele trazia a leveza das canções para explicar questões gramaticais; trazia clareza para os obscuros mundos da morfologia e da sintaxe. Sabemos o quanto é difícil tornar atrativas as aulas de Gramática, mas o Professor Sérgio, com sua capacidade de fascinar, conseguia essa proeza. Conseguia porque, além de um dom genial para o ensino da Linguagem, tinha alma de estudante, uma alma jovem, um espírito dinâmico que atraía os alunos para suas aulas. Sérgio era assim: um eterno coração de estudante pulsando no peito de um grande MESTRE!

Anos depois, tornei-me professor do curso de Letras. Reencontrei Sérgio: a mesma disposição para ensinar; a mesma paixão pela vida brotando de suas palavras. No convívio profissional com meu mestre-amigo, aos meus olhos, fez-se nítido seu grande legado para a Educação: ensinar com o CORAÇÃO!  Certo dia, na sala dos professores, ele me disse, com o olhar repleto de Gratidão: "Até hoje, lembro dos versos que você dedicou pra mim, na sua formatura – 'Quando o sol do Tempo dissolve as asas de Ícaro, tudo que resta é a silhueta amiga do mestre que não se foi”. Sérgio era assim: colecionava palavras; estampava emoções. Na colação de grau da minha turma, ele foi o Professor-Homenageado; eu fui o orador. Escrevi aqueles versos para demonstrar sua importância na nossa formação, para expressar a saudade que já sentíamos das suas aulas. Ele trazia a Literatura para a vida e enchia a vida de Poesia!

Fiquei sabendo, no mês passado, que os braços pandêmicos da Peste abraçaram fatalmente meu mestre-amigo. Nesta quarentena, tenho me alimentado das lições de Sérgio, lições assimiladas em sala de aula e disseminadas em minha vida. Algumas das suas ideias reluzem e se reconstituem na minha lembrança, como se tivessem sido expressas ontem:

 

"Não nascemos para fazer ninguém sofrer. Nascemos para fazer as outras pessoas sorrirem, para lhes mostrar o melhor que há em nós.

Não aceito esse discurso niilista de que sempre haverá alguém disposto a magoar, a ferir. Não é verdade.

Não existem seres pérfidos, prontos a nos magoar. O que existe são seres tão imperfeitos quanto qualquer um de nós, os quais deixam gestos inacabados e palavras mal ditas, que são perfeitamente solucionáveis por meio do diálogo. 

Não somos perfeitos. Possuímos uma pequena fração mesquinha; é ela que faz de nós humanos. No entanto, essa parte ínfima da nossa alma não é nada quando comparada à nossa ENORME capacidade de fazer as outras pessoas felizes. Para isso nascemos, porque só assim também nós conseguiremos ser felizes."

 

 

 

Sérgio tinha uma inabalável esperança no ser humano; buscava sempre uma face positiva nas outras pessoas. Dizia que o Amor é a maior construção humana; colocava-o acima, inclusive, do conhecimento, que ele tanto acumulou e difundiu.

 

"O conhecimento é fundamental; mas, acima de tudo, o Amor.

Adoro os livros. Graças a eles, conheci a Pasárgada imaginada por Bandeira, a Itabira reinventada por Drummond, a Itapuã imortalizada por Vinicius.

Não quero negar a essencialidade do conhecimento. Se eu fizesse isso, estaria renegando a minha própria natureza, que é a de um homem ávido por livros. Quero apenas dizer que existe algo que excede o conhecimento em importância: o Amor. É ele que aproxima e eleva os seres humanos."

 

Meu mestre-amigo cultivou o Amor, em todas as suas manifestações: o Amor pela família (esposa e filhos), pela profissão, pela humanidade (principalmente, pelas crianças), pelos cães (especialmente, pelo seu shitzu Ulisses, que faleceu uma semana depois da partida de Sérgio), pela vida.

Guimarães Rosa escreveu: “As pessoas não morrem. Elas ficam encantadas”. Sérgio permaneceu encantado a vida inteira e, ao morrer, deixou um rastro de encantamento. As suas palavras, os seus gestos desentranharam as flores do bem no jardim do infortúnio. Neste contexto de pandemia, o rastro de meu eterno mestre nos aponta os caminhos da resiliência.

Seguindo o rastro deixado por Sérgio, passei a aprender com a suprema inteligência emocional dos cães; conduzido por seu rastro de encantamento, passei a enxergar a vida superior que emana dos olhos infantis.

Entre pulos e gargalhadas, entre versos e sintagmas, Sérgio construiu uma trajetória duradoura; um tempo que não se esvai, que fica na memória dos que ficam; uma Vida pulsante no ventre da noite covidiária.

O sorriso luminoso de Sérgio se uniu a outros sorrisos, compondo uma constelação que brilha na noite oceânica. O luto por Sérgio se mescla a todos os outros lutos pandêmicos, para desembocarem numa só catarse, para desaguarem num pungente memorial a céu aberto.

O luto por Sérgio não é sombrio. A partida de meu mestre-amigo nos deixou saudosos, mas não desesperançosos. Ele deixou uma canção no ar; sua canção preferida: “Quero falar de uma coisa / Adivinha onde ela anda / Deve estar dentro do peito / Ou caminha pelo ar” (Milton Nascimento / Wagner Tiso).

 

  

 

 

 

 


 


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