"A vida começa verdadeiramente
com a memória". (Milton Hatoum)
Há
dias em que nos deparamos com “comemorações” (não deixa de ser, embora, de
luto) de casos emblemáticos de violações de direitos humanos, às vezes
ocorridas há muito tempo (será que tão distante?), como a Chacina da Candelária
(1993), ou recentemente, como a Chacina de Pau D’Arco (2017), sobressaindo-se, ou
“recortando-se”, as mais contundentes como representações das tantas outras;
afinal, sabemos que lembranças do tipo poderiam estar estampadas todos os dias
neste país das execuções, desaparecimentos e torturas. Da mesma forma, a
comemoração de datas, por ex., Dia Internacional do Combate à Tortura, da
Consciência Negra, da Visibilidade Trans, dentre outras.
A
lembrança se faz de várias formas: matérias jornalísticas, fotos, filmes,
documentários, espetáculos, depoimentos, relatos, monumentos, dentre outros,
além dos eventos (atos, marchas, encontros, seminários, palestras); uma dessas
formas pode ser a narrativa memorialista; no meu caso, busco um repertório na
forma de reconstruções de casos, descrevendo detalhada e cruamente as ações e
atentando para discursos significativos, afinal, o como se conta deve ter sua
importância. Qual o sentido de se contar o que passou? Por que relembrar?
Narrativas
como estas, resgates que incomodam, nos reporta ao papel da memória na sociedade,
sobretudo na luta contra as violações de direitos humanos. Memória entendida aqui
não no seu sentido médico-fisiológico, neurolinguístico etc., mas noutra
inscrição: a histórica, e sem a pretensão do debate teórico.
Pensemos
na memória em relação às violações cometidas no período da ditadura militar
(principalmente execuções, desaparecimentos e torturas); belo exemplo de força
memorialista, talvez o mais vigoroso em nossa sociedade no que tange às violações
de direitos humanos (creio que também na Argentina, Chile, Uruguai, Espanha, ao
menos), e seu amplo leque de recursos, desde os relatos, passando por filmes e
os tantos eventos, repetindo-se ano a ano, ressaltando-se as Comissões,
sobretudo da Verdade, e comitês. Lembra-se funestamente que a memória tem
sempre o outro lado, ela alimenta também os que defendem as violações, como “memórias
rivais”, no dizer de Elizabeth Jelin.
Como
contraponto poderíamos pensar: por que algo vigoroso desse tipo não acontece em
relação às pessoas que são executadas, desaparecidas e torturadas diariamente, e
sinistramente contabilizadas (números aterrorizantes), apesar das já
importantes iniciativas que existem e mesmo diante da continuidade da filosofia
utilizada pelas instituições policiais no pós-ditadura? E em relação àqueles
casos que ganham ritos memorialistas, por que são apenas alguns e não tantos
outros? Por que esses casos não ganham a mesma atenção, vigor e um movimento
unificado que consiga aglutinar todas as vítimas, parentes e outros atores
relevantes? Geralmente se trata de pessoas pobres, marginalizadas e moradoras
em regiões periféricas. Será que não é por isso mesmo que não ganham atenção?
Isso
nos leva a pensar no caminho da memória em cada caso. A eficácia memorialista,
se assim pudermos dizer, se dá pelo impacto do caso? Por que determinados casos
e não outros operam a representação? Em função do impressionamento (a violência
e covardia empregadas, as injustiças que em geral ocorrem em todo o processo)? Ou
das semelhanças? Ou pela singularidade? Será que não é pela forma como atuam os
atores relevantes (a ideia da construção da memória via organização,
estratégias etc., como os “empreendedores da memória”, de Elizabeth Jelin)? Ou
por quem são as vítimas e os seus algozes?
Muitos
dos que se debruçam sobre a memória nesse sentido que falamos (e, como
desdobramento, das narrativas) apontam a sua relação com o esquecimento (aliás,
inerente ao ser humano), como Paul Ricouer, sobre o dever de memória:
“(...)
este pode ser igualmente expresso como um dever de não esquecer”[1].
Nada
mais verdadeiro, porém, podemos indagar: como neste país das chacinas e
massacres vamos nos esquecer, se elas acontecem o tempo todo?
O
que me faz pensar na luta via memória noutra perspectiva. A repetição de
chacinas, massacres, tortura, a permanência do racismo, homotransfobia e
discriminações outras, imaginamos que deveriam incomodar (e levar à mudança)
muito mais. Mas não. Ao que parece a repetição, num tênue limiar entre passado
e presente, aqui, lembra, mas o faz naturalizando, anestesiando, numa sociedade
com os seus já tantos apelos alienantes. Assim, contraditoriamente, denunciando
algo que permanece ao longo do tempo, cada caso cotidiano se torna uma
engrenagem repetitiva a tal ponto que faz esquecer; porém, por outro lado, veja
que os recursos memorialistas (dentre eles, as narrativas) têm a função de
fazer lembrar sempre. Desse modo, justifica-se, sim, a repetição memorialista compensatória:
a “comemoração” de casos e mais casos, o quanto for possível, pois, como já se
disse, a memória é luta contra o esquecimento e, neste caso, contra a
naturalização anestesiante.
Memória,
memória, memória, com todos os seus recursos, sensibilização que possa ser o
antídoto contra uma morte coletiva, porque a cada caso todos estamos morrendo. Repetição
como luta contra a sucessão avassaladora de casos (como a “Marcha da Chacina da
Baixada Fluminense”, que todo ano se repete). E para que não nos esqueçamos
nunca o quão violenta e injusta é nossa sociedade, e como se violam direitos
impunemente. Assim, memória como lembrança de algo do presente.
“O presente do passado é a memória; o presente do
presente é a intuição direta; o presente do futuro é a esperança”[2].
E
essas pessoas que sobreviveram ou assistiram às cenas? Testemunhas construtoras
da memória, cruciais para a reconstrução do passado através de suas lembranças.
E os parentes?
“Os
historiadores não devem esquecer que são os cidadãos que fazem realmente a
história – os historiadores apenas a dizem; mas eles são também cidadãos
responsáveis pelo que dizem, sobretudo quando o seu trabalho toca nas memórias
feridas”[3].
Pensemos
também na rica contribuição da História Oral, seguindo os rastros de Paul
Thompson.
As
lembranças pessoais não são importantes apenas na literatura, como na Ilídada
de Homero ou Em busca do tempo perdido,
de Marcel Proust. As lembranças das memórias individuais,
incrustradas nas mentes, entrelaçadas, são o ponto de partida para
reconstruirmos a memória coletiva e isso, por si só, já
deveria levar a dar mais atenção a essas pessoas pelos seus desdobramentos
subjetivos, o apoio psíquico, afetivo, para além do legal. E elas constroem uma
memória local, a da comunidade. Um exemplo: atualmente jovens de Vigário Geral
que, obviamente, não vivenciaram a famosa chacina de 1993, a conhecem e guardam
sentimentos, pois passa de pai para filho em cada lar, como “atos de
transferência”, no dizer de Paul Connerton.
Como um
feixe de memórias autobiográficas, atreladas aos locais em que se sucederam os
fatos, temos uma memória coletiva:
“(...) cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória
coletiva”[4].
E a
memória coletiva pode ter potência:
"Para
os navegantes com desejo de vento, a memória é um porto de partida"[5].
Maior exemplo de
sucesso na luta do tipo de violações em pauta, via memória, nos pós-ditadura, a
meu ver, e com status de movimento (com o grau de unificação necessário, sem
competição de casos), vem de atores muito especiais: as mães. O papel das
organizações de mães contra a violência policial sofrida pelos seus filhos e a
devida Justiça em relação aos responsáveis, espalhadas pelo país e articuladas
em redes, é potência de luta, seguindo o DNA da luta das mães contra as
ditaduras. Elas fazem valer a ideia de que “(...) a última palavra deve ser do conceito
moral de dever de memória, que se dirige, como se disse, à noção de justiça
devida às vítimas”[6].
Mais que isso: atuam para o fundamental reconhecimento, como discutiu Henri
Bergson.
Ainda: fazem
pairar na sociedade uma ética - outro papel da memória -, que espraia a empatia
a tantas e tantas vítimas de outras violações também, apontando para a Justiça,
numa sociedade terrivelmente injusta.
E temos
outros exemplos de luta memorialista em outras pautas (embora entrelaçadas de
forma interseccional). Por ex. o movimento LGBT+ em torno do caso Laura
Vermont, Luana Barbosa etc., o movimento feminista no caso Maria da Penha; o racismo
no de Rafael Braga, dentre outros.
Continuemos
então na luta que, dentre todos os instrumentos necessários, tem na memória um
deles, e aqui a memória como luta nos reporta a Edmund Burke:
“Um povo
que não conhece a sua história está condenado a repeti-la”
[1] Conferência “Memória,
história, esquecimento”, p. 6, proferida por Paul Ricoeur em Budapeste, 8 de
março de 2003, no âmbito de uma conferência internacional intitulada “Haunting Memories? History in Europe after
Authoritarianism”.
[2]
Santo Agostinho. Confissões. São Paulo: Canção Nova,
2007, digitação de Lucia Maria Csernik, p. 123.
[3]
Paul Ricoeur, op. cit., p. 6.
[4]
Halbwachs, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice,
p. 51.
[5]
https://listadelivros-doney.blogspot.com/2009/05/as-palavras-andantes-eduardo-galeano.html
[6]
Paul Ricoeur, op. cit, p. 6.