Nesses meus dias de confinamento, sentado em meu sofá, creio que, por imposição da idade, meus olhos costumam fechar-se, em breves vinte ou trinta minutos, acontecem capítulos da minha vida.
Estou em frente ao grande portão de ferro, é como um enorme dragão preste a lançar através de sua bocarra, jatos certeiros de fogo sobre meu pequenino corpo.
Estava começando, a maior quarentena da minha vida, o colégio interno que por meses deixava-me longe daqueles a quem eu mais amava, confirmava minha sentença, foram os mais longos seis anos que enfrentei, por mais estranho que pareça, não havia vírus.
Acordo em sobressalto, vou ao banheiro, lavo o rosto uma, duas, três, quatro vezes, tudo para combater a apatia.
Vejo a rua através da grade do muro, meninos em um jogo ultrapassado (Bola de gude) a menina solitária cuidando dos cabelos e da roupa de sua boneca, fez-me entender que eles estavam alijados da modernidade. As horas, os dias, as semanas, os meses, são como um massacre, superar é preciso, fazer algo até que o grande dia chegue, por enquanto, tenho que contentar-me em saber que, um dia a onda irá dissipar-se.
Felizmente, nesses nossos loucos tempos, a internet vem em meu socorro, filme, música, aprender trabalhos manuais, servem para colocar ordem na mente, a culinária também aparece como terapia, estou quase tornando-me um chef, afinal, a cozinha a muito deixou de ser reduto feminino.
Evito o relógio, releio meus romance, contos e crônicas, escrevo com mais voracidade, volto ao muro, uma outra família ocupa o lugar, acho que não mais verei as crianças das brincadeiras antigas. Mesmo preso em meu Bunker, avisto um amigo, sem máscara, trata-se de um velho tal qual este que vos escreve, Aparício é o seu nome, eu diria tratar-se de um conservador moderado, quem não o conhece, e ao velo esbravejar pensará tratar-se de um troglodita. Meu amigo tem um jeito peculiar de ser, não tem celular, notbook ou TV por assinatura, ainda está no tempo do jornal impresso, e gosta de falar dos famosos amassos no portão, estudou pouco mas diz ser aluno da melhor faculdade do mundo: "A vida"
arrisco-me a fazer-lhe uma pergunta:
-----Como vai Aparício?
-----Assim, assim!
-----Gostaria de lhe fazer uma pergunta?
-----Fala com a boca, que eu escuto com os ouvidos!
-----Como você acha que será a vida, assim que a pandemia acabar?
-----Como amnésia, ou se quiser, como um pesadelo, pela manhã não lembramos de nada.
-----Espera aí Aparício, você deu um nó na minha cabeça!
-----Bem feito, ficou em frente a televisão só ouvindo notícias fúnebres, perdeu alguns neurônios
-----Vamos lá Aparício, deixa de ser enigmático!
-----Tá certo, vê aquelas pessoas em frenético vai e vem?
-----Sim!
-----O que você acha que elas estão pensando?
-----Decididamente não sei!
-----Vou explicar: Estão preocupados, usam máscaras, álcool gel, mas, assim que tudo isso terminar, imaginarão que outro que outro vírus jamais surgirá, um terrível engano, aí está a grande amnésia
-----Então, o que fazer?
-----Aprender a lição e mudar o rumo, dar vez a tolerância, preservar o espírito de família, fortalecer o amor, sorrir um pouco mais, quer saber, essa situação me fez lembrar um filme que assisti quando os cinemas ainda eram nos bairros: "DO MUNDO NADA SE LEVA"
-----Meu amigo Aparício, o papo tá muito bom mas tenho que entrar, voltarei para o Word, preciso criar um mundo melhor, essa é minha melhor arma pra enfrentar a quarentena.
-----Tá certo, eu vou no Shopping!
-----O que!!!Eu ouvi bem, o que vai fazer lá?
-----Vou comprar dois smartfone!
-----Pra que dois, basta um!
-----Um é meu, o outro, vou dar para umas crianças que são meus novos vizinhos.