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Um Cântico Novo

Mauro Bartolomeu
dez. 31 - 4 min de leitura
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Quem, como eu, se visse forçado a ir até o centro da cidade, não veria aquele mero “aglomerado de cubos maciços e inertes”, como descreveu Camus a cidade argelina de Oran. Não, pois embora os cubos lá estivessem, nos seus mesmos lugares, protegidos por grades ou por muros encimados de concertinas, já que a lógica do capital implica acumular o máximo possível para depois ficar com medo daqueles que nunca tiveram nada para acumular, ainda havia gente andando despreocupadamente pelas ruas. Não tanta gente, é certo, a ponto de seu movimento merecer o nome de “trânsito”, palavra que fomos acostumados a associar com desordem e tumulto, ainda que não deixassem de transitar, mas gente bastante para impedir que algum desavisado pudesse, em qualquer canto, sentir sua privacidade ser invadida exclusivamente pelas câmeras de segurança. Transitavam, pois, é certo, mas quase que apenas no seu andar a pé, que raros eram os veículos automotivos, o que fazia o ar sensivelmente mais respirável: já não causava aquela coceira na garganta que sempre atacava quando se tinha de atravessar aquelas paragens. Estávamos no centro comercial de um município do interior do Estado de São Paulo, um dos redutos do conservadorismo, ou, por que não dizer, do regressismo do país. Eram os primeiros dias da quarentena, antes do seu desgaste natural e da moda dos “soberanistas”, o primeiro caso documentado na História de revoltados a favor do governo, que teimavam em romper o isolamento, devidamente embasados na premissa de que a pandemia não passava de propaganda comunista para derrubar seu messias. Se, em um dia comum, já não seria difícil topar por aqui, ao cruzar uma rua pouco movimentada, com um ou outro antivacinacionista, que dirá num dia como aquele, em que a maioria, pela cara de espanto ao olhar para minha máscara, devia ser no mínimo criacionista. O mais próximo que conseguiriam chegar do evolucionismo era talvez o caso daquele dono de caminhão de entulho que, em tempos pretéritos, mas não muito distantes, teimava que rato vira morcego quando fica velho.

 

O que me espantou, porém, foi uma metamorfose bem diferente: a do canto dos pássaros, que irrompia agora em mares de silêncio por ele nunca dantes navegados. E apenas nisso consistia a metamorfose, objetivamente falando: no inusitado da sua locação, pois os assovios, chilros, trilos e gorjeios pareciam ser os mesmos que sempre foram, pelo menos para os nossos ouvidos grosseiros, pouco acessíveis aos seus improvisos mais virtuosos, e que malemá distinguem meia dúzia de espécies, das quais nem sequer saberemos mencionar os nomes: sabiá, tejo, sanhaço, bem-te-vi, caga-sebo… Quer dizer então que ainda existem passarinhos no centro da cidade? Ou será que eles, aproveitando da ausência humana, tomaram conta de tudo de repente, como num filme de Hitchcock? Eu, homem racional, entendi que eles sempre tinham estado por ali, nos mesmos lugares, apenas não eram ouvidos, abafados que eram pelos motores da cidade em seu funcionamento normal. Mas o outro cara, esse eu lírico, aluado, delirante, não conseguia parar de ouvir esse novo canto como uma grande festa, uma puta comemoração, uma folia do caralho, como se exclamassem: viva o novo coronavírus! E todos respondessem ao mesmo tempo: viva! Viva! Viva!


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