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Quarentena do Bem Viver

Quarentena do Bem Viver
Garbo Nael
ago. 5 - 5 min de leitura
010

Vivenciar o atual imperioso estado de quarentena que faz do mundo refém de si mesmo evidencia-me, dentre tantas outras coisas, algo surpreendente: há muito tempo eu me acostumei a viver a ‘síndrome de Truman’. Até o mundo parar eu não havia percebido o quanto de vida eu desperdiçava todos os dias numa rotina miserável, de escravidão, de infelicidade, de pura mesmice. De falsa satisfação, de uma perfeição imperfeita, falsa, criminosa. Os anos foram correndo, passando tão rapidamente que eu não pude perceber que ‘parecia’ viver bem, acumulando com louvor, ao final de cada dia, os resultados mais ou menos satisfatórios das tarefas às quais era submetido. Trabalho, creche, casa. Trabalho, creche, casa. Trabalho, creche, casa. A rotina automatizada da vida que experimentava era tão automática que eu não me permitia refletir, pensar, ler um bom livro, apreciar um bom vinho, escrever uma crônica interessante. E o pior: não me permitia perceber que as maiores alegrias estavam perto de mim. Minha família. O convívio com a minha esposa e filhos passou a ser tão automatizado quanto a minha vida fora de casa. Nem sei se eu era capaz de distinguir quando estava trabalhando ou de folga. Quando era dia útil ou final de semana. Eu era um só. Um tolo, alienado, aluado. Comecei a me dar conta de que o meu mundo tornara-se palco de uma representação inconsciente da minha vida e me certifiquei, então, de que tudo o que me basta está aqui, ao meu lado. O mundo precisou empacar para que eu percebesse que vivia uma vida cheia de atropelos, burburinho, informações desnecessárias, fast food, fake news e fake people. Passei a refletir sobre quem eu era, como era, porque era. Tantas questões assaltaram-me a mente, tantos processos foram desconstruídos, tantos castelos de areia desfeitos. Eu sequer tentava viver a essência da vida. Não sabia nem que a vida tinha isso... essência. E a minha essência? Onde estava? Todo dia era a mesma coisa. Truman, Truman, Truman. Sem show. A vida era tão cheia de vazios, tão carente, infecunda. Natureza morta. Morte. Morto-vivo. Até que, então, esta bendita quarentena avassaladora surpreendeu o mundo trazendo em seu bojo um desafio íntimo a ser vencido por cada um de seus reféns, cada um de nós. O isolamento social tão defendido e tão criticado passou a ocupar-me as ideias, fazendo-me concluir que é preciso encarar uma quarentena dessas todos os anos! É preciso parar para repensar a vida, os valores, para conhecer melhor a família, a pessoa com quem dividimos a cama. Nós mesmos, principalmente. Comecei a perceber que se não pararmos a nossa Seahaven, de vez em quando, não seremos capazes de nos tornarmos tudo aquilo que podemos. Estaremos condenados a ser mera representação, mera sombra, mera expectativa. Uma promessa impossível de ser cumprida. Coadjuvantes de nós mesmos numa película de cinema mudo em preto e branco. Foi preciso uma doença para nos obrigar a reformular a vida, a sentir o amor, a olhar para o próximo que está mais perto com os olhos do coração. Ouvir os marcantes sons da vida e enxergar as vívidas cores que ela nos apresenta todos os dias. Tolo, alienado e aluado será aquele que desperdiçar esta preciosa oportunidade de olhar para si mesmo e iniciar a promoção das mudanças imprescindíveis que possibilitarão alcançar um novo patamar de existência. Tanto mais cristalina quanto sincera possível. Eu certamente, não sairei desta quarentena da mesma forma que entrei. Aquele quarentão de antes não existe mais. Morreu. O ‘eu Truman’ morreu. Mesmo que nada mude no mundo, o meu mundo já mudou. O isolamento social significou empoderamento pessoal. Hoje, sigo meus dias mais fortalecido, conhecedor de mim mesmo, dos meus segredos e desejos, mais seguro, confiante, torcendo por um tempo em que não será preciso doença. Um tempo em que não será preciso ser parado, contido. Um tempo em que cada um de nós promoverá conscientemente a sua quarentena periódica, renovando-se, permitindo-se, evoluindo e amando mais. Um tempo, enfim, em que a felicidade e o amor estarão refletidos no semblante de cada ser onde o bem viver de um significará o bem viver de todos.


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