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Quarentena, a salvação do planeta?

Quarentena, a salvação do planeta?
Maria Teresa Portal
dez. 17 - 38 min de leitura
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“Fique em casa”, a frase que martelava o meu cérebro como se de um martelinho de S. João do Porto se tratasse, daqueles que não magoam mas irritam. E este ano nem S. João houve para evitar ajuntamentos.

“Eu Fico Em Casa”- sem dúvida uma situação claustrofóbica e irritante. A primeira porque, embora a minha casa seja grande e eu tenha quintal e jardim, não consigo evitar a sensação de prisão, de estar emparedada no verde. Graças ao tempo caprichoso, frio e chuva, calor e tempo seco, as árvores quer das traseiras quer do jardim, cresceram a um ritmo assustador e só não me abafaram porque havia paredes em granito e um terraço. Irritante, porque não gosto de estar parada, nomeadamente, quando isso resulta de uma imposição. Queremos fazer sempre o contrário do que nos impõem, certo?

Comecei imediatamente a pensar em que poderia ocupar o meu tempo para não ser mais uma a ter consultas online com uma psicóloga (acho uma certa piada a esse tipo de consultas, a que os da minha “espécie”- sou professora, funcionária pública- não têm direito a não ser com a consulta paga na totalidade). Incrível!

Quando era pequenita, a minha mãe dizia à boca cheia a quem a queria ouvir que eu tinha bichos-carpinteiros. Nunca parava quieta e os adultos, entenda-se a Maria (a empregada lá de casa, um misto de cozinheira e de mulher de limpeza, de governanta), os meus pais e a minha avó materna, que vivia connosco, também não paravam. Não precisavam de ginásios nem de “fitness”, porque cuidar de mim e, quatro anos depois do meu irmão, era suficiente para gastarem as calorias que pudessem ter ingerido a mais ao almoço ou ao jantar e chegavam ao fim do dia com as energias na reserva.

O tempo foi passando mas nada mudou. A mafarrico continuou a mexer-se e tornou-se maria-rapaz para grande desgosto da avó Mimi que queria uma netinha bem feminina que gostasse de bonecas (sempre detestei) e de andar com totós ou tranças (usava um corte curto, mesmo à rapaz) e vestidos cheios de folhos. O meu trajar horrorizava-a pois era à base da ganga, t-shirts, blusas e polos. Tudo muito prático e largueirão.

E assim continuei pela vida fora. Como gostava da minha independência, casei com um igual a mim e dávamo-nos muito bem, pois não invadíamos a privacidade um do outro e dividíamos as tarefas de casa e da educação dos filhos. Devo confessar que sendo engenheiro numa empresa, estava mais presente do que eu que optara por vocação o professorado, “adotando” uma série de filhos no decorrer da carreira, principalmente os mais problemáticos. E ambos cumprimos a tarefa de dar netos aos pais e bisnetos à avó Mimi. E a minha sobrinha e afilhada é a minha fotocópia. Tal e qual. Por isso, passa temporadas na minha casa, principalmente no verão.

Sempre me adaptei às situações com grande facilidade, a minha avó dizia que eu era uma espécie de camaleão que mudava de cor conforme o ambiente; assim, protestava, era a que falava mais alto, e, sendo professora e pertencendo à gestão da escola, muitas vezes falava demais, pois tinha de ser mais contida no que desabafava atendendo ao cargo que exercia. Com os anos, acabei por me habituar a calar ou a confessar-me ao papel, testemunha muda que não ia fazer coscuvilhice com o vizinho da esquina nem alardear para sítios escusos.

E comecei a escrever crónicas para os jornais e contos e poesias para mais tarde publicar, quando acabasse a carreira profissional nº1, a de professora. A escritora e poetisa ficariam na reserva para tempos futuros. E comecei a escrever crónicas que publicava nos jornais e histórias, muito viradas para o fantástico e para a imaginação criadora, “vício” alimentado pela minha mãe que me oferecia livros às carradas, já a avó achava que era perder tempo e que eu devia aprender a bordar, a fazer croché, a amar os tachos e as panelas e a ser doceira e cozinheira, a tocar piano… tudo atividades que, para ela, eram sinónimo de ser uma menina prendada. Acho que a minha avó era um amor mas ficou parada lá atrás, nos inícios do século XX. Estagnou. Devo confessar, no entanto, que, na cozinha, ninguém a batia. Era uma pasteleira de primeira...

E os anos foram passando e as turmas foram-se multiplicando e os projetos foram-se construindo e elaborando e as greves foram-se fazendo, porque a Educação era a paixão dos governos à esquerda ou à direita, em fase eleitoral, e depois essa grande atração e desejo levavam sumiço quando subiam ao poleiro… até que o planeta se tornou o “centro” das preocupações da sociedade. A poluição generalizada do ar, da terra e das águas causada pelo homem com a industrialização maciça e o ataque generalizado e não contido ao ambiente trazia consequências visíveis a olho nu e sentidas cada vez com mais frequência. Não era por acaso que havia tsunamis, terramotos, cismos de grande intensidade, ciclones, maremotos… O buraco do ozono, o efeito de estufa, o aquecimento global, o índice de qualidade do ar, as marés negras, a cinza nuclear, as chuvas ácidas, a perda da biodiversidade, a desflorestação, a poluição sonora, a poluição luminosa… de repente, tornaram-se expressões que se impuseram negativamente e nos acompanhavam diariamente. Da mesma forma a pegada ecológica, os ecopontos (o plasticão, o vidrão, o papelão, o oleão, o pilhão…), a Regra dos 5 Rs, a utilização de materiais biodegradáveis, a guerra ao plástico, a diminuição da produção de lixo, a utilização de carros elétricos… tornaram-se nossos companheiros de batalha. Alguns termos ainda me perseguem! Agenda 21”, “Cúpula da Terra”, “Agenda 30”… E conferências, reuniões, tratados abundaram como vimos mas com poucos ou nenhuns resultados. Os países desenvolvidos olhavam para o umbigo, para a economia privada e não se preocupavam em saber se o vizinho estava a cumprir ou não as regras estipuladas porque ninguém as cumpria. Ficava tudo tão lindo no papel!

E andávamos todos entretidos a brincar a “salvar” o planeta, com projetos como a Bandeira Verde e o programa Eco-Escolas, já que quem devia assumir a liderança o não fazia, quando, insidiosamente, sub-repticiamente, um pequeno vírus surgiu lá no Oriente, muito longe de nós e contagiou uns milhares de pessoas. Era longe! Nunca cá chegaria…

O homem todo-poderoso não queria crer no que estava a acontecer e virou-lhe as costas. Seria mais uma daquelas doençazitas que aparecem num dia e desaparecem no outro sem deixar sequelas!

No Ocidente ninguém se preocupou. Para quê? Porquê? Era lá… do outro lado do mundo. Nada disso aconteceu. O bichinho, silenciosamente, começou por ser uma pequena ameaça, num outro continente, na Ásia. Só que, pouco tempo depois, devido às fronteiras abertas e à globalização, infiltrou-se em todos os países e, danado, correu o planeta. Esqueceram-se dos transportes aéreos, terrestres, marítimos… e dos infetados assintomáticos que transmitiam e transmitem o coronavírus.

Mais uma vez nos esquecíamos de que a globalização era uma das premissas atuais do planeta e que estávamos mais perto uns dos outros do que pensávamos ou gostaríamos de estar. E o longe se fez perto e, num ápice, todos os continentes estavam contagiados e a OMS teve de declarar um estado de pandemia.

Quem diria que um vírus minúsculo vinha para ficar e virar as nossas vidas do avesso?

A tudo isso se veio juntar a falta de tomada de medidas para a contenção do bicharoco a nível mundial, que causou o estado pandémico que atravessamos ninguém sabe por quanto mais tempo. Alguns doentes internados, algumas mortes …e depois foi como um incêndio completamente descontrolado que assolou o mundo todo, os cinco continentes, a que não se conseguia pôr cobro nem com todos os bombeiros existentes à face da terra.

Alertados para a situação, a nível mundial, uns países mais cedo, outros mais atrasados, impuseram medidas de quarentena e o “fiquem em casa”, “usem máscara”, “lavem as mãos”, “cuidem-se” tornaram-se as frases que comandavam o nosso quotidiano.

E o mundo paralisou. Muitas empresas encerraram, decretaram o layoff, fecharam as escolas, as universidades e todos os organismos oficiais, fecharam muitas fábricas, empresas, serviços, restaurantes, cabeleireiros, barbeiros, o turismo tornou-se inexistente, os aviões parados nas pistas, os países fechados sobre si mesmos.

E começou a prisão obrigatória, já que poucos o faziam voluntariamente, em casa, as ruas desertas, as lojas fechadas, a economia reduzida a quase zero, só funcionando os locais estritamente necessários para a sobrevivência: os supermercados, as bombas de gasolina, os hospitais, as lojas de informática…

E começou o teletrabalho, a trabalho a partir de casa para muita gente.

E começaram os despedimentos… empresas a desaparecerem apesar da promessa das ajudas governamentais…

E começou a fome…

Gerou-se o caos a nível mundial, muito bem explorado por todos quantos tinham muito ou nada a perder. E as redes sociais tornaram-se armas inexoráveis para difundir boatos, informações verídicas ou faccionadas, notícias reais ou fabricadas, vídeos alarmistas ou de doutrinação a favor desta situação ou daquela. Esse foi e é um grande problema: a informação e contrainformação transmitidas punham e põem as pessoas angustiadas e indecisas sobre que medidas adotar e contribuíram para muitos dos estados depressivos que por aí abundam e para que muita gente ignore as normas de segurança.

Passámos a estar dependentes do que nos diziam e a controlarem-nos as mentes com o que nos ocultavam. As verdades “proibidas” eram fechadas e, quando difundidas, rapidamente apagadas ou desacreditadas.

A pandemia pôs mais caos na confusão reinante. Esperava-se que durasse um mês, dois, que fosse uma espécie de gripe, que passasse… mas a hora não chega e já se fala em mutações do vírus, que alguns dizem ser bactéria e poder ser combatida com antibióticos… ninguém se entende…

“Os lóbis farmacêuticos pretendem isso mesmo” dizem; já estão a ser feitas vacinas… todos vão ser vacinados por etapas, já que não há hipótese de serem todos ao mesmo tempo. E há os que estão a favor e os que estão contra a vacina…

 

Entretanto, o SNS (Serviço Nacional de Saúde) está exaurido, porque há seis meses que estamos nisto, já se fala numa 3ª vaga e já se anuncia uma 4ª para breve.

E a economia ressentiu-se com os confinamentos, com as escolas fechadas e os pais a terem de estar com os filhos, com os que testam positivo e têm de ficar em casa dez dias (em teletrabalho ou não), com os outros que os contactaram “quarentenados” durante catorze dias… e o mal ainda está no início, dizem os “velhos do Restelo”, não, isto já está no fim, dizem os otimistas ou “inconscientes” como são insultados.

E quando podia sair era com máscara para as compras dos artigos frescos de primeira necessidade e, mais tarde, tornou-se complemento obrigatório de todos os dias. Deixámos de sorrir, de rir, de dar beijos e abraços… Sou mãe e não vi o meu filho mais velho durante três meses com o confinamento por concelhos. Sou mãe e sinto a falta de beijos e de abraços dos amigos, mas, sem dúvida, muito mais dos meus filhos e irmãos e sobrinhos… As reuniões pelo Whatsapp, pelo Zoom ou outro software tornaram-se os abraços e beijos do nosso dia a dia. Tão tácteis somos, nós, latinos e agora… impõem-nos o distanciamento social obrigatório para nosso bem e o dos demais. 

E os meses foram mesmo escorrendo na ampulheta do tempo e, quando me apercebi, mesmo aposentada e estando em casa, estava a coabitar com o bichinho paredes-meias, pois o meu filho mais novo, solteiro, testou positivo. Gerou-se o pânico familiar, pois pertenço a um grupo de alto risco… mas, felizmente não houve consequências.

Estar confinada quando queremos, é uma coisa. Ser obrigada é outra. Enfrentava um vazio difícil de superar até começar a criar uma rotina de todas as atividades que gostava de fazer e que nunca tinha tido tempo de concretizar. Uma delas escrever… E o vazio encheu-se e saí das escadinhas do desalento em que me sentava levada pelas mensagens alarmantes das redes sociais e pelos números dos infetados e dos mortos que ia crescendo de forma alarmante para me lançar no jardim florido e perfumado da imaginação. Não havia vírus que o contaminasse e podia escrever histórias risonhas ou poesias brincalhonas e otimistas que me faziam sorrir e me alegravam a alma.

Todos os dias me sentava à mesa e escrevia o que me apetecia. E para grande surpresa minha, dei comigo a escrever poesia, o que já não fazia, a não ser esporadicamente, desde os meus vinte anos. E a poesia começou a aparecer ao virar de cada esquina diária, às vezes de madrugada, quando me acordava a insónia, minha companheira noturna, outras vezes quando estava em baixo, mais depressiva pois o dia estava resmungão e o sol de mau humor ou quando estava em alta, alegre e satisfeita, por estar a ter um dia sem dores e sem crises…

Depois, surgiram contos (o que fiz ao longo dos anos e fui arquivando, tanto em língua portuguesa como na inglesa) e até pus um pezinho no romance.

Foi precisa muita coragem para me abster do que se passava lá fora e me recusar a ver as ruas vazias, com a população obrigatoriamente fechada em casa, e muita força de vontade; porém, consegui. E também fui obrigada a esconder a revolta que a inconsciência das pessoas me provocava quando se recusavam a usar máscara ou quando, contaminadas, saíam à rua para passearem o vírus e o ofereciam a mais uns tantos. E apercebi-me de que o bicho-homem, quando quer, é muito estúpido e imbecil.

Senti-me particularmente satisfeita porque acabara de concretizar as tarefas que todo o homem tem de concretizar – plantar uma árvore (plantei dezenas no Dia da Árvore), escrever um livro (agora já era mais do que um!) e ter um filho (tenho dois). E tive muitos outros, que não sendo biológicos, encontraram junto de mim o carinho da mãe que já não tinham ou que tinham mas se abstinha das suas funções com a desculpa de estar ocupada ou de não ter tempo ou algumas que, infelizmente, não mereciam o título de mães pois não se preocupavam minimamente com o bem-estar das crianças.

Ficar em casa, usar máscara, os grandes conselhos que uns cumpriram e outros não. E de novo constatei que grassava a idiotice neste nosso mundo da Covid-19.

Como consciencializar as mentes de que é necessário ficar em casa, principalmente se a pessoa possui alguma doença imunossupressora, asma ou problemas respiratórios, diabetes, hipertensão, cancro, doenças cardiovasculares, doenças crónicas… tão divulgados pela comunicação social e pelas entidades de saúde comunitária?

Mudar mentalidades é o pior papão que se pode enfrentar e não é fácil. Houve quem achasse que podia ir para a praia, já que não ia para o trabalho. Houve muita gente irresponsável e continua a haver. Há pessoas que consideram que tudo isto é ridículo e que foram tomadas medidas extremas apenas para assustar a humanidade sem motivo. “Tanto alarmismo para nada!” – dizem.

Essa incógnita anda a pôr toda a gente louca pois andamos nisto há uns meses largos e as famílias e os hábitos familiares e a proximidade tornaram-se uma ameaça e uma proibição. Ninguém sabe a quantas anda…

Há uns tempos, recebi um telefonema da minha afilhada logo de manhãzinha. Apesar dos seus trinta anos, não quer saber de homens, porque me diz sempre que tem muito tempo e o tempo inexoravelmente passa.

Falámos durante um bocado das respetivas profissões, eu utilizando o que relatavam os meus ex-colegas ainda no ativo e ela desabafando sobre as consultas que fazia online, pois era psicóloga, mas recusava-se a “consultar-me” porque, dizia, a consultada acabava por ser ela e não eu. Verdade pura! Sempre adorei psicologia e, para se ser uma boa professora era preciso ter alguns conhecimentos nesse campo para se conseguir levar o barco a bom porto. E, no Gabinete de Apoio ao Aluno, o que eu fazia era precisamente ajudá-los e quantas vezes resolver-lhes os problemas que os “psicólogos” não resolviam. Era tão mais fácil enchê-los de drogas do que ouvi-los ou ouvir as famílias na busca do que afetava o aluno e o fazia ter uma atitude disruptiva, por exemplo, ou o punha como uma múmia sem intervir nem viver, literalmente!

-Ainda bem que já não és professora no ativo, madrinha! – disse-me pelo Whatsapp, a tal aplicação que me permite vê-la enquanto conversamos, com a qual embirro – Estou mesmo a ver-te a olhares para um ecrã vazio e a ter uma das tuas fúrias. E esse teu colega aguenta?

Tinha-lhe contado que um colega dava aulas para um ecrã preto já que os alunos se recusavam a mostrar a cara, coadjuvados pelos pais que adoram meter o bedelho onde não devem (alguns!), desculpem o desabafo.

Na verdade, sou muito calma, aparentemente, e raramente me zango; porém, quando isso acontece, saiam da frente. Diz quem já me viu fora de mim que fico de tal forma que meto medo ao susto. Isso já não sei, porque nunca me olhei ao espelho numa ocasião dessas. Sei que evito perder as estribeiras porque depois passo mal. Fico mesmo enfraquecida fisicamente, com dores nas pernas, sem forças e com dificuldades respiratórias, como se não bastasse a asma.

Na escola diziam que já sabiam quando eu estava com a “trovoada”, porque anunciava à entrada que ninguém me aborrecesse naquele dia, porque estava capaz de esganar alguém. Tinha acordado para o lado esquerdo da cama. Escusado será dizer que escolhia esses dias para dar as reprimendas e pregar os “sermões” a alunos e não só. Como o “filtro” não funcionava muito bem, saía o que tinha a dizer de forma direta e frontal. Era uma forma de ser dura, porque no meu normal fazia jus ao ditado “cão que ladra não morde” e, efetivamente, ladrava muito mais do que mordia.

-Madrinha? Já viajaste?

Olhei-a e vi que me estudava o rosto. Por isso mesmo detestava aquela aplicação. Quantas vezes me sucedia “viajar” e dava comigo a abstrair-me na ocasião errada, principalmente quando estava muito cansada ou preocupada.

-Ainda aqui estou. Podes crer que havia de resolver de alguma maneira. – respondi-lhe dando uma das minhas famosas gargalhadas, desafiando-a… - Podes ter a certeza de que não faziam de mim palhaça. Há muitos pais a precisarem de levar um valente puxão de orelhas. Estão aflitos pelos filhos aparecerem no ecrã em aulas? E as fotos que publicam no Facebook e agora no Instagram não os preocupa? Cambada de imbecis!

-És terrível, madrinha. Se todos fossem como tu, acho que a escola estaria muito melhor, principalmente agora com esta Covid-19 em que o nosso futuro é uma incógnita. Acho que tens toda a razão. Pai ou mãe que se preze não proíbe uma coisa dessas… É brincar com coisas sérias. Sabes que o João, aquele filho dos meus amigos, que está em vias de reprovar, só não faz os trabalhos como conseguiu convencer os pais de que precisava de computador, de telemóvel e de tablete para as aulas online. E os parvos acreditaram e deram-lhe tudo. Depois convenceu-os de que não fazia sentido ter a cara online durante as aulas e os pais proibiram. Sabes o que ele faz quando estão em aulas? Joga no telemóvel… Isso contou-me a Francisca que é da turma dele e minha paciente.

-Havia de ser comigo. Ainda bem que estou aposentada. Mas podes ter a certeza de que já estavam a assistir às aulas, nem que tivesse de recorrer às altas instâncias, de ir a casa de cada um ou de ir para os jornais. Os pais têm muito respeitinho à comunicação social, porque, quando menos esperam, pode-lhes cair em cima algum comentário, mais ou menos bem colocado, que os faz andar assim como que a navegar por águas desconhecidas e rasas e logo, logo procuram porto onde atracar.

Uma gargalhada acolheu as minhas palavras. O diabo da rapariga era bem uma cópia minha, desde a boa disposição que nunca a abandonava até à maneira de ser- outra maria-rapaz. O meu irmão costumava resmungar “Benzeste-a bem!” e eu só respondia para o pôr ainda mais zangado “Quem sai aos seus não é de Genebra (degenera)”!

Mas podia ver que estava cansada. Pudera! Dava consultas no consultório e outras online e eu sabia que a percentagem de stressados subira exponencialmente com o confinamento.

-Ó madrinha, isso és tu que escreves para o jornal. As tuas crónicas são lidas por mais gente do que pensas… E tens uma língua afiada e o respeitinho é muito bonito…

-Também tens Facebook. Sabes que passo lá algum tempo, porque há pessoas com uma criatividade fora de série e conseguem tornar as coisas mais assustadoras em simples anedotas. Também há os “velhos do Restelo” que aproveitam as redes sociais para transmitirem a sua doutrina derrotista de que vem aí o fim do mundo... Aí até têm uma certa razão. Espero bem que não fiquemos iguais e que haja modificações e não só a nível da recuperação do planeta, cujo nível de poluição regrediu 15 anos, ou seja, estamos em 2005.

-Disso sabes tu, madrinha, sempre envolvida em projetos, doutrinaste os teus alunos melhor do que ninguém. Essa realmente é uma benesse do raio da Covid-19.

-Mas há outras, minha querida. A partir de agora, os professores vão ser vistos com outros olhos, porque os pais viram o que é aturar os filhos 24 horas por dia. Olha, eu até postei uma gravação áudio em que o pai estava tão desesperado que propunha que triplicassem o ordenado dos professores, porque ele tinha dois filhos e estava a dar em doido, quanto mais aturar vinte e muitos de cada vez.

Nova gargalhada do outro lado e eu a ver-me nos trejeitos que fazia.

-Eu sei, madrinha, sabes que os meus pacientes transmitem muito do que tu dizes e, sem fugir ao sigilo profissional, sempre te digo que tenho uma mãe que só me consulta para eu lhe dar conselhos sobre como educar os filhos que agora estão com ela e a escola pela plataforma está a pô-la doida… Acho que lhe vou dar o teu número. És capaz de a aconselhar melhor do que eu.

E nova gargalhada, nitidamente de gozo.

-Ó menina, o respeitinho é muito bonito, como disseste. Nem te atrevas, Já aturei as mães que tinha de aturar e olha que houve algumas que me fizeram subir a serra…

-E obrigaste-as a descê-la ou atiraste-as de lá de cima, madrinha?

Antes que pudesse sair o meu comentário mais afiado e contundente, e porque os meus olhos falam, como sempre me disseram, ouvi do outro lado:

-Desculpa, mas às vezes gosto de te irritar só um bocadinho. Ganho forças para as próximas consultas. É cada destrambelhado/a! Bem, beijinhos. Amanhã volto a ligar.

Depois do telefonema da minha afilhada (o confinamento não permitia novamente deslocações entre concelhos, parecia o baile mandado, ora agora viras tu, ora agora viro eu, ora agora viras tu mais eu), sentei-me à secretária, olhei pela janela onde um dia cinzento fazia caretas e tornava a prisão ainda mais difícil e pus-me a refletir.

O exercício da reflexão tornara-se numa atividade diária que me dava gozo, principalmente se acompanhada de música relaxante de sons da natureza, da água do mar, de música clássica e cheguei à conclusão de que não devia ter tomado uma ou outra atitude ao longo da vida, que me tinha sido prejudicial e, outras ocasiões, surgiam flaches de comportamentos muito bem tomados relacionados com a minha vida pessoal ou profissional.

Naquele dia foi o chilrear da passarada ao vivo que me deu a mão e pus-me a relembrar alguns ex-alunos. Uns porque me tinham enchido as medidas, como eu costumava dizer; outros, porque me tinham dado cabo do juízo e exigiram de mim muito mais, embora haja muitos encarregados de educação que acham que não. Estão muito enganados! Os alunos maus dão o dobro do trabalho, às vezes o triplo, porque, professor que se preze não deixa nenhum aluno para trás. Eu nunca deixei. Sempre vesti a camisola por todos eles, talvez porque tive uma professora que me fez detestar a disciplina que lecionava apenas porque não a podia ver na frente…

Respirei fundo e saí daquele estado de dormir acordada de que gostava tanto e me acalmava. Quem não relaxa a ouvir “Le cygne” de Saint Säens pelo violoncelista Hauser que, entretanto, pusera a tocar no Youtube?

Depois, não sei porquê, como habitualmente acontecia, quando algo me aborrecia ou gostava particularmente, agarrei no papel e na esferográfica e comecei a escrever e saiu poesia.

 

CORONAVÍRUS

 

Era manhã!

O sol levantou-se e ficou admirado

Não havia nenhum movimento

Nem sequer soprava vento

O mundo estava pasmado

E tudo parecia parado.

Não via ninguém nas estradas

Nem carros, bicicletas, motorizadas…

Não havia vivalma,

As fábricas não funcionavam

As escolas não ensinavam

Tudo estava fechado

Como se fosse a cadeado.

Para onde fora a gente

Assim tão de repente?

Em confinamento

Nas suas casas

Não podiam sair

Nem um momento

Não fosse a guarda surgir

E dar-lhes ordem de prisão

Por não cumprirem a legislação

Olhar para o outro antes de olhar para si

A base da proteção social

Para se poder matar o mal

Infelizmente tal não aconteceu

E a mundo padeceu

E o vírus foi ganhando

E novos países conquistando

E todas as medidas ultrapassando

E havia mortos aos milhares

E o confinamento fez-se só com militares

Havia os inconscientes

Que não queriam saber dos doentes

Nem se eram portadores da doença

Consideravam isso uma ofensa

E as redes sociais

Ainda eram mais mortais

Com toda a informação

E contrainformação que difundiam

E que todos ouviam ou liam

E houve muitos heróis

Nesta maldita pandemia

Os médicos e os enfermeiros

Os guardas e os bombeiros

E todos o pessoal anónimo

Que criou associações

Que ajudavam as multidões

E não só com refeições

E esses foram o sinónimo

De que havia solidariedade

De que a humanidade

Se unia quando de algum mal sofria

E o planeta rejuvenesceu

E a poluição desapareceu

Em grandes proporções

O ar melhorou e beneficiou

Do confinamento de tantos meses

O grande acontecimento

Que foi um alerta ao planeta

Deu-lhe mais quinze anos de vida

Regrediu o tempo na ampulheta

A poluição tornou-se mais fluida

E o poeta farto de escrever resolveu reler

O que com o papel desabafara

Como sempre fizera e anotara

As palavras que surgiam

Não sabia de onde

E queriam para a folha saltar

Ganhando lugar nas linhas

Não ficando em monte

Acabaram por formar

Um texto poético, uma poesia

Para fugir a tanta porcaria…

E assim aconteceu

Eis o que o poeta escreveu.

 

A manhã continuava cinzenta, mas a minha disposição era ótima, o que sempre acontecia quando a Maria me ligava (ela era uma lufada de ar fresco) ou quando escrevia. Tinha uma relação física com o papel. Tudo quanto escrevi ao longo do tempo tinha surgido dessa forma, pois gostava de riscar, de corrigir, de fazer chamadas e, às vezes, era tal a confusão que me via grega quando queria passar o texto para o Word.

Quando menos se esperava e nada fazia prever, a temperatura subiu em flecha durante o dia. Era um verão demasiado precoce ou uma primavera que se empolgara com as temperaturas quentes e o rebentar das folhas e das flores e resolvera invadir o terreno da próxima estação.

Fosse como fosse, a noite instalou-se demasiado quente e eu não conseguia conciliar o sono e pensava no que não queria e revivia o que me desagradava recordar. Era tão bom que pudéssemos desligar-nos de tudo quando fôssemos para a cama! Muitos dos nossos problemas estariam certamente resolvidos e nós poderíamos seguir o nosso caminho em paz, relativa, claro, mas paz. Olhei os ponteiros do relógio digital - eram quatro horas da madrugada; provavelmente, já dormira o primeiro sono.

Não sei como nem porquê, talvez porque tivesse adiado uma consulta no hospital, porque tinha medo de apanhar o maldito do vírus, pensei na enorme quantidade de “vidas adiadas” a que a doença obrigara. Quantos casamentos desmarcados, quantas gravidezes proteladas à espera de melhores tempos, quantas iniciativas goradas, porque desmarcadas… sine die… E a cultura (coitados dos artistas!) que se vira marginalizada… A ópera, o teatro, o balé, os concertos, os circos não eram artigos de primeira necessidade e os artistas estavam a passar mal. O mesmo acontecia com o desporto… e os atletas…

Foi ao pensar em “passar mal” que recordei o sonho que tinha tido e que me acordara. Era uma espécie de sonho recorrente que se repetia sistematicamente desde criança. Nele, uma mulher fugia por um bosque labiríntico até chegar a um edifício envolto numa bruma espessa que o tapava. Custava-lhe imenso a respirar e, pela minha experiência, ia ter um ataque de asma. Embora não quisesse, reconhecia-me naquela mulher.

Ainda pequena, com seis anos talvez, costumava sentar-me na cama a gritar e a chorar e dizia que não queria perder-me no labirinto A minha mãe procurava acalmar-me e dizia-me que eu tinha uma imaginação fértil. Mais tarde, aconselhou-me a escrever, a relatar os meus sonhos, a inventar histórias. Não resultou e acabei por me habituar àquela presença regular que, para mim, revestia um caráter angustiante de que não conseguia abstrair-me.

Acontecia sempre em ocasiões de grande stresse, testes, exames, qualquer tipo de provas que tivesse de prestar ou quando receasse qualquer coisa. Esse era o botão de ligação da bobine sonhadora que começava a rodar e que, subitamente, encravava, sempre no mesmo sítio, como se o resto estivesse estragado.

Tinha consultado o psicólogo, mais do que um, há muitos anos, que me disseram que buscava o meu caminho. Então ainda não tinha encontrado o raio do caminho? Toda a minha vida andara à procura do tal caminho?

E os labirintos tornaram-se meus companheiros e, agora confinada, a situação agravara-se. Não era de admirar. Agora era a pandemia, de certeza, que ficava a trabalhar no inconsciente.

Nesse dia, acordei com uma disposição negra e nem o sol primaveril nem a temperatura elevada foram capazes de a colorir. O filme riscado estava muito presente na minha cabeça e estava mais do que farta.

Não tinha traumas de infância, não tinha situações mal resolvidas e todo o palavreado psicológico nada significava. Levava os psicólogos comigo para o labirinto e isso fazia-me dar as minhas gargalhadas que os punha completamente desarmados, porque gostavam ou desejavam que eu estivesse depressiva quando, para cúmulo, era professora.

Uma psiquiatra, que eu consultara porque não conseguia dormir, problema que me acompanhava desde sempre, ficou a olhar para mim e disse muito admirada:

-Ah! Não está depressiva!

-Porquê? – perguntei-lhe. – Tinha de estar?

-Não, mas atendendo…

E não acrescentou mais nada nem necessitou. Interpretei corretamente as reticências- atendendo a que era professora tinha de estar. Era a doença da classe e também não é de admirar, com o que temos de aturar. Devia haver muitos mais a encherem os gabinetes de psicólogos e psiquiatras. Muito resilientes somos nós!

Preguicei até cerca do meio-dia, o que nunca acontecia a quem tinha bichos-carpinteiros (por onde andariam agora?) e como a minha vontade para fazer fosse o que fosse andava por paragens desconhecidas, tornou-se mais difícil dar a volta por cima, por baixo ou fosse por que lado fosse. Comecei a fazer exercícios de respiração: respirar fundo e fechar os olhos, relaxar e deixar que as ideias começassem a fluir.

Como não resultou, fui até ao jardim e andei no meio das roseiras e das japoneiras. Tomar contacto com a natureza, respirar o odor da terra molhada (tinha chovido durante a noite), da relva acabada de cortar (o jardineiro dizia que a relva não tinha Covid-19 e tinha aparecido de máscara para fazer o seu trabalho), ouvir o chilrear da passarada… levaram-me nas suas asas para o passado e ouvi as vozes e os risos da catraiada que sempre tiveram o efeito mágico de me levar ao País do Faz-de-Conta e do Era Uma Vez muito de mansinho, quase sem dar por ela.

E a história impunha-se, pé ante pé, hesitante, tímida, sem coragem para avançar, sem bem saber quem era o quê, qual o local e o tempo de ocorrência. Depois, as palavras começavam a avançar, as frases exigiam ser escritas e tudo parecia ordenado por uma vontade superior. E ei-la que surgia singela e infantil, inconsciente e adolescente, severa e adulta de acordo com o autor que a escrevia e o público a quem se destinava.

Por vezes, aparecia um texto sem qualquer tipologia específica, capaz de servir um ou outro senhor: a crónica sarcástica e escarninha, um relato pessoal e intimista, uma carta para um amigo imaginário, um artigo de opinião…

Uns utilizavam uma linguagem que permitia o seu acesso a todo o leitor, o que não significava uma escrita menor, sem valor; outros viam a luz com uma forma tão intrincada e obscura que poucos eram os felizardos que tinham permissão para aceder ao seu significado.

À conta deste facto ressurgia incessantemente a discussão sobre o que era e não era literatura. Quem podia ou não dar esse estatuto? Muitos dos nossos escritores só tiveram valor depois de mortos, recusando-se-lhes a maestria em vida. Veja-se Camilo Castelo Branco!

Não consigo esquecer aquela reunião de professores, onde um dos nossos grandes teorizadores e investigadores portugueses (professor universitário, poeta e escritor) afirmou perentoriamente que, na literatura portuguesa, só tinha havido um grande poeta (Camões) e que todos os outros não passavam de poetastros. Bem, só teve desculpa por se estar a definir a ele próprio também.

Um best-seller que vende milhares de exemplares (às vezes milhões!), que é traduzido numa série de línguas, que é adaptado ao cinema… não é uma obra de arte? Não foi o leitor que lhe deu o valor? Em que é que um crítico literário é superior ao comum dos mortais? Na cultura? Que tipo de cultura?

Talvez por ter pensado em livros, naquela tarde, em que finalmente fora decretada a libertação controlada do confinamento, adormeci e sonhei.

“Era uma Escola “velhinha” …”

Acordei e lembrava-me do sonho ao pormenor. Quando ia para escrever a história, vi-a escrita no bloco que tinha à minha frente. Era a minha caligrafia, disso tinha a certeza. Não me lembrava era de a ter escrito.

Consequências da pandemia? Estaria a ficar louca?

Mais abaixo, um post scriptum, numa caligrafia que reconheci, mas não sabia de onde, e dizia:

«Nunca mais vais andar perdida em labirintos. O edifício é a escola e a sua história era o labirinto que percorrias e não a escreveste antes, porque só agora podia ser escrita! A pandemia vai acabar e as escolas vão abrir novamente. Este é o exorcismo de que a humanidade precisa, pois simboliza as escolas de todo o mundo, os seus jovens, que são o futuro da humanidade e a sua salvação. Fica em paz.»

Depois de ler isto, fiquei muito calma. Foi como se me tivessem tirado o peso do mundo de cima dos ombros.

Subitamente, como se algo me empurrasse ou me puxasse, não sei bem, fui ao armário onde tinha algumas recordações do passado que tinham um significado muito especial para mim. Retirei o caderno da minha 1ª Comunhão, onde tinha escrito algumas das primeiras orações que tinha aprendido.

A caligrafia era igual à do texto final. Fora eu que o escrevera, mas o eu infantil de quando tinham começado os pesadelos.

Uma regressão no tempo?


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