"- Não se iluda
moço, eu só acredito em Deus. Eles
precisavam acreditar que tinham Deus ao lado deles, pensou Negro Alírio.
Ele cria em Deus, mas acreditava na força, na ação do homem"[1].
Violações
mais violações de direitos no cotidiano de um país onde sabidamente essa é a
norma, não a exceção. Realidade que exige estratégias, instrumentos, enfim
ações, para dar conta dessa realidade. Nesse contexto, temos os tantos
observatórios, mais uma arma nessa luta, mais árdua em tempos de um governo que
estimula e pratica inédita política de desmonte de direitos.
O que
é um observatório de direitos humanos é difícil precisar; é organismo que se
faz na prática e não no nome. Alguns, levando o nome, não agem como tal, às
vezes tratando-se mais de programas de pesquisa e estudos, veículos de mídia e
de publicações (revistas, boletins), projetos e eventos, dentre outras
possibilidades, embora um observatório possa fazê-los, mas dentre tantas outras
iniciativas. Inversamente, há outros que embora não levando o nome, agem como tal.
Os observatórios
não só observam, fazem muito mais. Nem os seus precursores, os geofísicos, os
astronômicos, os astrofísicos (na linha do seminal Observatório Nacional, do
Rio de Janeiro, fundado em 1827), ficam só na observação. Todos transformam o
que veem, monitoram, acompanham, verificam, coletam, estudam, em algo mais, implicando
sempre algum nível de processamento e análise.
A
vastidão dos observatórios que nos interessam não é a planetária, dos
astronômicos, mas a dos temas, pautas, tipos, objetos, objetivos e formas de
atuação, imersos que estão em ampla, diversa e complexa rede de práticas,
compondo multifacetado conjunto de atores.
Institucionalmente,
muitas são as possíveis configurações. Predominam como entidades da chamada
sociedade civil sem fins lucrativos, constituintes do chamado terceiro setor, mas
há casos em que estão incrustrados nas malhas governamentais, de todos os
níveis de poder, fazendo parte de secretarias, ministérios etc. (como o Observatório
de Saúde Ambiental do Governo do Estado de São Paulo); há, também, os que
firmam parcerias ou são subsidiados/financiados por entes governamentais. Às
vezes estão sob o guarda-chuva de um instituto, fundação, organismo
intergovernamental (ONU, FAO) ou uma universidade. Comumente interligam-se para
juntar forças, com vistas a temas e objetivos comuns, como a Rede de Observatórios
de Segurança.
No
Brasil, embalados pelas tantas possibilidades abertas pela internet e novas
tecnologias, o número de observatórios cresce avassaladoramente atingindo os
mais variados liames da sociedade. Há observatórios que, eles próprios, abarcam
extenso leque de campos, como aqueles que levam o nome “Observatório de
Direitos Humanos” (como o da Unicamp ou o da América Latina).
Muitos
especializam-se em pautas específicas: LGBTI+, racismo, segurança, violência,
feminismo, meio ambiente, saúde, educação, dentre tantas outras. Em geral, os
recortes e intercâmbios entre pautas: um observatório pode se especializar em travestis
e transexuais, outro na floresta amazônica, ou saúde de idosos. Vejam, quanto à
segurança, muitas as possibilidades: violência policial, ou ainda violência
policial contra LGBTI+, sistema penitenciário e assim por diante. E, recorte do
recorte, o olhar pode ser local (uma cidade, um bairro, comunidade), estadual, regional,
nacional ou mundial.
Outros
atuam em relação a um campo inteiro. Observatórios de favelas, governos
(federal, governamentais, municipais, como os observatórios sociais), imprensa,
mídia, terceiro setor, lixões; nesse caso, trabalham com várias pautas,
simultaneamente. Há os que focam em determinados problemas, situações ou metas
específicas, levando-os, inclusive, no nome: pobreza, desenvolvimento/subdesenvolvimento,
desigualdade, intolerância, corrupção, discriminação, manifestações, transparência.
Ou trabalham com eventos ou ações delimitadas no tempo: intervenção militar no
Rio de Janeiro, eleições. Nessa miríade de possibilidades não caberia definições
e subdivisões estanques, o que também seria de pouca relevância, mas, fato é
que, misturando temas, pautas, olhares, estratégias, enfoques, metodologias, os
observatórios vão preenchendo os quadros do tabuleiro dos direitos humanos no
Brasil.
E o
que o que fazem os observatórios de direitos humanos? Também, aí, muitas
possibilidades e experiências diversas. O ponto de partida: acompanhar aquilo a
que se propõem, publicar materiais da mídia (jornais, vídeos, áudios,
geralmente em espaço específico onde se acompanha cotidianamente os
acontecimentos); a partir daí, coletar e processar dados e informações,
disponibilizar em tabelas, gráficos, dashboards
(quadros que criam indicadores por períodos, características, tipos etc., de
forma cumulativa), utilizando-se de diferentes metodologias. Tem-se, então,
matéria-prima para analisar e interpretar, vislumbrar padrões, elaborar
relatórios, dossiês, ações típicas de um observatório. Também, disponibilizar documentos,
pesquisas e publicações. Às vezes, organizar livros. Dessa forma, relevante
será a contribuição para tomada de decisões por parte dos atores sociais.
Sinal
de consistência de um observatório é a criação de plataforma de denúncias e, sobretudo,
preparação de documentação fundamentada para embasar processos judiciais e
criminais, subsidiando inquéritos e processos investigatórios. Ao fazê-lo,
esses organismos atuam de forma contundente na luta pelos direitos de vítimas
de violações e punição aos responsáveis.
Muitos
vão além, oferecendo produtos que se desdobram desses processos básicos,
dependendo muitas vezes se tratar de um observatório de cunho mais voltado para
o acadêmico ou de atuação direta no campo (às vezes, os dois). Podem
desenvolver projetos, inclusive de pesquisa, fazer parcerias, até para
facilitar a captação de recursos. Alguns criam publicações regulares (revistas,
periódicos, boletins, blogs), grupos de trabalho e núcleos de pesquisa, fóruns
de discussão, qualificam e formam ativistas, realizam oficinas, participam ou
organizam eventos, dentre outros. Com isso, costumam estimular debates e gerar
visibilidade para seus temas.
Dependendo
da estrutura montada os observatórios podem fiscalizar e pressionar governos,
órgãos e empresas, inclusive acompanhando o cumprimento de compromissos, metas
e ações firmadas em tratados internacionais assim como em relação à legislação
interna. De alguma maneira os observatórios contribuem para o conjunto de
práticas associadas ao advocacy, que
pode fazer com que uma demanda se torne um “problema” de política pública e
entre na chamada “pauta” que pode levar a avanços.
Seja
lá, então, qual for o formato dos observatórios, seu campo de atuação, sua
maneira de trabalhar, constituem-se em forças indispensáveis na luta contra as
violações de direitos humanos na sociedade.
* Publicado originalmente no Justificando, dia 24 de janeiro de 2020.
[1]
Evaristo, Conceição. Becos da memória.
3. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017, p. 153 (itálico no original).