“O
morro não tem vez
Mas
se derem vez ao morro
Toda cidade vai cantar”[1]
Encravada em
meio a prédios de luxo, a Rocinha choca pelas imagens que expressam o contraste
da convivência dos extremos da pobreza e riqueza, neste país de um apartheid disfarçado que é o Brasil. Em
2012 foi instalada uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na Rocinha. E é de
lá que começaram a ecoar os gritos “Onde
está o Amarildo?” país afora e no exterior. Mas, antes, outros gritos se
ouviram: os da tortura, em mais um corpo negro massacrado e desaparecido,
dentre outros tantos. Falamos muito disso no regime militar, e continua a acontecer....
Tudo começou com a “Operação
Paz Armada”[2], que envolveu por volta de
300 policiais na Rocinha, em conjunto com a 15ª DP (Gávea), nos dias 13 e 14 de
julho de 2013, objetivando reprimir o tráfico, intenção geralmente usada para
justificar as barbaridades sofridas pela população a ser controlada em regiões
ditas periféricas.
Por volta das 19h20min
do dia 14 de julho de 2013, oito policiais militares da UPP da Rocinha
abordaram o pedreiro Amarildo Dias de Souza, conhecido como Boi, quando saia do
Bar do Júlio, próximo à Rua Dois, vindo de uma pescaria. Ele mostrou seus
documentos, mas quatro policiais o colocaram dentro de uma viatura e o levaram
para o posto da UPP na parte baixa da Rocinha. Lá chegando, Amarildo saiu da
viatura, sem camisa, mãos algemadas para trás; Elizabete Gomes da Silva,
conhecida como Bete, sua esposa, o avista e corre em direção a ele, mas a
viatura vai embora e depois de passar por vários pontos da cidade do Rio de
Janeiro, chega à sede da UPP, no Parque Ecológico, parte alta da
Rocinha, local onde ela o viu pela última vez:
“Ele
me olhou e disse que o policial estava com os documentos dele. Então eles
disseram que já, já ele retornaria para casa e que não era para a gente esperar
lá. Fomos para casa e esperamos a noite inteira”[3].
Amarildo foi levado para um dos contêineres, próximo à sede
da UPP, local utilizado para consertos de automóveis. Policiais dos contêineres
administrativos foram proibidos de sair, mas ouviram os 40 minutos de tortura a
que Amarildo foi submetido, diretamente por quatro policiais.
A
partir daí não se sabe exatamente o que aconteceu. Quem levou e o que fizeram
com o corpo de Amarildo. Se sabe, sim, de mais um luto que não se consegue
completar.
Como Amarildo demorou
para voltar, sua irmã dirigiu-se à sede da UPP e o comandante disse que
Amarildo já tinha sido liberado. Essa informação foi usada no processo judicial
para compor uma das hipóteses, descartada nas investigações: a de que Amarildo
teria sido morto por traficantes na volta para casa[4]. Se
Amarildo tivesse saído de lá andando, pelo único caminho possível, duas câmeras
que funcionavam o teriam filmado, mas sua imagem não aparece, de acordo com as
investigações realizadas.
“O advogado João Tancredo explicou
que se Amarildo tivesse ido para casa, pelo caminho apontado pelos militares,
que leva à localidade conhecida como Dioneia, a câmera instalada 10 metros à
frente teria registrado a presença do ajudante de pedreiro descendo as
escadarias em direção à casa onde morava, e, de acordo com o advogado, não há
imagens da vítima deixando a UPP. ‘Outras duas câmeras de segurança estavam
desligadas ou queimadas, mas essa de acesso à Dioneia e a outra instalada no
portão vermelho estavam funcionando e não mostram Amarildo deixando a unidade’,
disse”[5].
Por que
Amarildo foi levado pelos policiais? “Nós
comprovamos o motivo pelo qual que ele [Amarildo] seria levado à sede da UPP.
Seria para fornecer informações sobre drogas e armas, principalmente armas, já
que a informação de que ele teria a chave do paiol de armas, explicou a
delegada Ellen Souto, presidente do inquérito”[6].
Se
Amarildo tivesse ligações com o tráfico, justificaria o que foi feito?
Nos dias seguintes, o calvário típico dos desaparecimentos,
na busca pelo corpo. Bete e seus filhos peregrinaram por pronto socorros,
hospitais e no Instituto Médico Legal. Começou ela a fazer a pergunta que faz
até hoje: “Cadê os restos mortais do meu marido?”[7] No final de julho os
familiares chegaram a se animar, encontraram um corpo num valão da Rocinha. Mas
era de uma mulher....
Inicialmente o caso foi investigado pelo 15º DP (Gávea),
passando posteriormente para a Divisão de Homicídios da Polícia Civil do Rio de
Janeiro, com a abertura do inquérito. Nesse processo se descobriu que duas
câmeras instaladas perto do local onde Amarildo morreu não estavam funcionando,
as demais 78 instaladas na comunidade estavam. Os equipamentos de GPS das
viaturas estavam desligados. 22 pessoas foram ouvidas, relatando as torturas
sofridas por policiais da UPP na Rocinha, na tentativa de se obter informações
sobre drogas e armas. Os procedimentos investigatórios de praxe foram
realizados: coleta de amostras de sangue e comparação com DNA de familiares,
reconstituições etc.
Também, pediu-se a declaração de morte presumida de Amarildo,
o que foi aceito pela Justiça, para, em seguida, entrar com uma ação de
responsabilização civil contra o Estado, envolvendo assistência financeira e
psicológica aos familiares. Alguns deles, passaram a fazer parte do programa de
proteção a testemunhas; a maioria não, uma vez que teriam que sair da Rocinha
caso aceitassem.
Alguns dias depois do incidente, na esteira das ondas de
indignação, alguns eventos aconteceram; por ex., o da ONG Rio de Paz na Praia
de Copacabana, usando manequins que expressavam os casos de desaparecimentos
até então não solucionados; o protesto que saiu da Rocinha e terminou na
residência do então governador Sérgio Cabral, no Leblon. Vários outros se
espalharam país afora. O clima de efervescência das jornadas de junho daquele
ano incorporou Amarildo, não só em manifestações específicas para o caso, mas também
naquelas de pautas diversas, quando começamos a ouvir palavras de ordem que se
tornaram tão familiares: “Onde está o Amarildo?”, “Cadê Amarildo?”. Pudemos ler
também em faixas, cartazes, camisetas, muros etc. Nas
redes sociais foi criado o grupo "Cadê o Amarildo?" e a hashtag #OndeEstáOAmarildo, várias
organizações inseriram na sua imagem de capa a foto de Amarildo e frases a
respeito[8].
Amarildo capitalizou a insatisfação e virou um símbolo contra
o modus operandi de muitos policiais no
país, pois as violações de direitos apenas desse caso engloba o que acontece em
muitos outros (prisões arbitrárias, torturas, execuções extrajudiciais e
desaparecimentos).
Ainda em 2013 o
Ministério Público do RJ recebeu da Divisão de Homicídios o inquérito do caso, denunciando
e pedindo a prisão preventiva de dez policiais militares da UPP da Rocinha,
inclusive seu ex-comandante. Dias depois, mais 15 policiais militares foram
denunciados. O julgamento iniciou-se em fevereiro de 2014, na 35ª Vara Criminal do
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
Em fevereiro de 2016, o resultado:
12 policiais foram condenados por tortura, morte, sequestro e ocultação do
cadáver de Amarildo, com penas que variam de 9 anos e quatro meses a 13 anos e
sete meses de prisão, com perda da função pública, sendo que nove deles já
estavam presos desde 2013; 12 foram absolvidos, inclusive três policiais presos
desde 2014; outro morreu antes do veredito. Em
2019, a 8ª Câmara Criminal da Justiça do Rio de Janeiro absolveu quatro
condenados. Dez soldados foram expulsos da corporação.
A juíza Daniella Alvarez Prado, da
35ª Vara Criminal da Capital, afirmou:
"Amarildo
morreu. Não resistiu à tortura que lhe empregaram. Foi assassinado. Vítima de
uma cadeia de enganos. Uma operação policial sem resultados expressivos. Uma informação
falsa. Um grupo sedento por apreensões. Um nacional vulnerável à ação policial.
Negro. Pobre. Dentro de uma comunidade à margem da sociedade. Cuja esperança de
cidadania cedeu espaço para as arbitrariedades. Quem se insurgiria contra
policiais fortemente armados? Quem defenderia Amarildo? Quem impediria que o
desfecho trágico ocorresse? Naquelas condições, a pergunta não encontra
resposta e nos deparamos com a covardia, a ilegalidade, o desvio de finalidade
e abuso de poder exercidos pelos réus"[9].
Em abril de
2019 o Tribunal de Justiça arquivou investigação (a cargo do Grupo de Combate ao Crime Organizado do Ministério Público Estadual do
Rio de Janeiro) para averiguar se 13 policiais do Batalhão de Operações Policiais
(BOPE) estariam envolvidos no transporte e
sumiço do corpo de Amarildo. De acordo com imagens exibidas pelo Jornal Nacional em 2015 suspeitou-se que um volume na caçamba de
uma camionete do BOPE seria o corpo. Após a utilização de tecnologia apropriada
não se chegou a uma resposta conclusiva e as manchas de sangue encontradas no
veículo não foram compatíveis com o de Amarildo, o que levou o Ministério
Público do Rio de Janeiro a pedir o arquivamento.
Desde 2014 Bete e seus seis filhos recebem uma pensão de um salário
mínimo, cada (os filhos, até completarem 25 anos). Enquanto isso, indenizações concedidas a Bete,
seus filhos e irmãos de Amarildo, pela Justiça, ainda dependem de julgamento de
recursos, por parte do Governo do RJ.
Então,
“Pede-se a
quem avistar
Amarildo de
Souza, de 42 anos,
que nunca
ultrapassou a linha da pobreza,
vivendo num
lugar chamado Pocinho,
área dominada
pelo tráfico
com esgoto a
céu aberto
e muitos casos
de tuberculose,
pede-se que dê
notícias
– porque um
homem desaparecido
é pior do que
um homem morto”[10].
[1]
Tom Jobim. O Morro não tem vez.
[2] “Segundo
Ellen, a operação tinha o objetivo de cumprir 58 mandados de prisão expedidos
pela Justiça. Não foi expedido mandado de busca e apreensão de armas. No
domingo, dia 14, às 18h, o resultado da operação era de 28 prisões cumpridas no
contexto de 58 pedidas. Até então, nenhuma arma ou droga havia sido apreendida”
(http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2013/10/perdeu-chegou-sua-hora-teria-dito-pm-amarildo-segundo-delegado.html). Ellen, é a delegada Ellen
Souto, que presidiu o inquérito da Polícia Civil.
[3]https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/08/14/protesto-marca-um-mes-do-desaparecimento-de-amarildo-no-rio-relembre-o-caso.htm?cmpid=copiaecola
[4]
Essa tentativa, frustrada, contou
com uma simulação feita por um policial que se passou pelo traficante Catatau,
num celular que previamente se sabia monitorado, onde ele teria afirmado que
matou Amarildo. Posteriormente, duas testemunhas, uma considerada desaparecida,
foram subornadas para defenderem essa versão durante os julgamentos, que foram
prejudicados pelas suas ausências.
[6]https://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/pms-envolvidos-no-desaparecimento-de-amarildo-torturaram-22/
[7]https://www.otempo.com.br/brasil/amarildo-era-a-coluna-da-casa-diz-viúva-2-anos-após-o-desaparecimento-1.1069692
[8]
Amarildo foi um dos casos
mais emblemáticos da Anistia Internacional, que fez notas públicas e ainda duas
ações urgentes, com cartas para as autoridades, vindas do mundo inteiro. Também
foi criada a campanha “Onde está o Amarildo?”. Veja, por ex., em 2013: “A
Anistia Internacional, a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa
e o grupo Fazer o Certo realizam neste domingo (dia 11 de agosto), Dia dos
Pais, às 10 horas da manhã, um ato na Rocinha, no Rio de Janeiro. O objetivo é
prestar solidariedade aos seis filhos de Amarildo, que passarão este dia sem
qualquer notícia sobre o paradeiro de seu pai, e cobrar explicações das
autoridades sobre o pedreiro – cujo desaparecimento está prestes a completar um
mês. O ato contará com a presença de artistas, organizações de direitos humanos
e familiares de Amarildo” (https://anistia.org.br/imprensa/press-release/no-dia-dos-pais-somos-todos-filhos-de-amarildo/).
[9]
http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/02/caso-amarildo-entenda-o-que-cada-pm-condenado-fez-segundo-justica.html
[10] Brandão, José
Carlos. Desaparecimento de Amarildo sem porto, In De metamorfoses de Ofídio – paráfrase e paródias extemporâneas (https://poesiacronica.blogspot.com/2013/09/desaparecimento-de-amarildo-sem-porto.html). Obs: 43 anos é a
idade correta de Amarildo, na ocasião de sua morte, e não 42.