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O SEGUNDO NASCIMENTO (Conto selecionado para compor a antologia Procurados V1 2019- Editora Illuminare)

O SEGUNDO NASCIMENTO (Conto selecionado para compor a antologia Procurados V1 2019- Editora Illuminare)
Jorge Pontes
jul. 29 - 8 min de leitura
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            Eu nasci duas vezes. E fui batizado duas vezes. Meu primeiro nascimento aconteceu no meio de um tiroteio enquanto meu pai metia bala nos malucos que tentavam tomar sua boca. Minha mãe disse que quando me teve ela mesma passou a faca no cordão umbilical, me enrolou numa manta vermelha e voltou a carregar as armas do meu pai. O velho dizia que a gente era jagunço, cangaceiro. Só que do morro em vez do sertão. Antes de mim já tinha meu irmão. Com doze anos o moleque já era gerente da boca e, não sei se mentia, já tinha passado uns dois vacilões... Sei não, duvido não. Meu mano era vida loca! Meu pai morreu na cadeia e minha velha decidiu voltar pra terra da família dela. Dizia que queria morrer com a minha vó, que eu nunca conheci. Quando meu irmão morreu na mão dos canas tudo que era nosso ficou comigo. Eu só tinha dezessete anos e muito gavião achou que podia me passar a perna. E passaram! Só que vaso ruim não quebra fácil. Eu ainda sinto o sufoco da terra por cima do meu corpo...

                                                                              ***

            Eu andarei vestido e armado com as armas de São Jorge...  Para que meus inimigos, tendo pés não me alcancem... Tendo mãos não me peguem, tendo olhos não me vejam, e nem em pensamentos eles possam me fazer mal... Haaaa! Armas de fogo o meu corpo não alcançarão... FACAS E LANÇAS SE QUEBREM SEM MEU CORPO TOCAR... Cordas e correntes... Se arreBENTEM SEM MEU CORPO AMARRAAARRR!!! Filhos da puta! Cova rasa é pra enterrar cachorro porra!        Preciso sair desse saco caralho! Minha cabeça tá furada. Raspão. Vacilão! Pensou que tinha me matado. Matado fiquei, matado sou! Muito mais vou matar agora! Otários, me trouxeram pra minha desova pra me desovar, tomar o que é meu. Mas deixe estar! Agora é a vez do caçador.

                                                                              ***

            E aê Bené. Lembra dos primos? “Que porra é essa caralho?! Tu tava num buraco?! Mermão tua cabeça tá sangrando Mazin. Entra ai, vou fechar a borracharia”. Seguinte Bené, não posso perder tempo. Pega uma camisa velha ai porra. Rasga e enfaixa minha cabeça. Hoje eu num morro mais, mas vou matar muita gente. Dedé, Salvino e Natan me levaram pro cheiro do queijo. Salvino e Natan me disseram que a gente ia passar o Dedé. Disseram que ele tava roubando da boca da praia. Eu nem desconfiei! No mangue Salvino me pegou por trás. Me deu um tiro na cabeça, mas como tu vê, o tiro foi de raspão. Me fingi de morto. Me ensacaram e me enterraram numa cova rasa. Se não fosse a fé que eu tenho em São Jorge eu tinha morrido. Agora presta atenção! Tu vai procurar o cabo. O cabo que vai lá na boca do morro hoje. Tu vai parar ele antes que ele suba o morro. Manda ele vir aqui. “Mas Mazin e se ele tiver com os traíra nesse cruzeta?” Bené, faz o que eu digo vai! Cadê teu 38?

                                                                            ***

             “E aê Mazin, abre aqui a borracharia Irmão. A gente trouxe o Bené, só que eu acho que ele tá meio grogue. É que o Santos aqui tem a mão pesada. Mazin? Mazin? Vamos embora avisar o Salvino que o filho da puta não morreu. Bem que eu disse que o serviço devia ser com a gente.” “E o Bené?” “Dispensa esse merda por ai.” “Oxi, cadê a chave da viatu...” POU! E aê cabo pilantra. Teu amiguinho Santos num bate mais em ninguém a partir de hoje. Tá sentindo o cano quente na nuca? Dirige! “Peraê Mazin vai com calma e mesmo assim dirigir pra onde porra?!” Vai pra estrada do mangue... E vai rezando.

                                                                                ***

            “Três e quarenta! Puta merda cadê esse cabo fodido com esses cano caralho! Amanhã mermo e gente tem que tocar o terror na favela em quem não gostar da nova gestão! Só que tá ficando tarde. Daqui a pouco amanhece. Diz aê Salvino?” “Tem calma mano. O cara vem. Dedé dá uma esticada alí na pista vai. Vê se tu enxerga a viatura chegando.” “Tá vindo lá.” “Olha aê num falei? Vamo lá.” “Baixa esse vidro aê cab...” E aê Dedé? Hó o cabo aqui hó... POU, POU, POU, POU. “Qualé Mazin, não me mata não brou! A gente é quase ir...“ POU, POU, POU. Esse merdinha desse Natan não vale nem a bala que leva. Agora é tu Salvino. “Porra, Mazin eu te dei um tiro na nuca de raspão pra vê se tu escapava mano, me libera aê caralho!” Eu até podia te liberar mano, mas malandro que é malandro num vacila nunca e eu já vacilei contigo uma vez. Já era mano... POU.

                                                                              ***

            Quando eu subi o morro a primeira luz da manhã invadia os barracos. Os pais e mães de família saiam pra trabalhar e ao me verem muitos faziam o sinal da cruz. Diziam que eu parecia um morto vivo. Eu carregava numa mão o saco dos canos que o cabo ia negociar com os pilantras que tentaram me matar. Na outra mão segurava o escapulário de São Jorge. Minha cabeça enfaixada ainda sangrava um sangue grosso que começava a fechar o ferimento. Havia terra e sangue em minha roupa. E foi assim que mudaram meu nome de Mazim pra Zumbi fazendo meu segundo batismo após meu segundo nascimento. Eu era mesmo um zumbi, pois saí da cova onde me enterraram com um tiro na cabeça, voltei na boca que me roubaram e enterrei, naquela mesma cova de onde saí, os cinco otários que tentaram me passar a perna. Só que diferente deles a cova que eu cavei era muito, muito funda!


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