O PODER DA PALAVRA
Amélia
Luz
Nasci com o mundo no “front” e embora meus
pais e avós fossem proprietários de terras sofríamos economicamente as
consequências drásticas da Segunda Guerra Mundial.
Na
zona rural vivi minha infância e na minha casa não havia um livro sequer. Minha
irmã mais velha que eu fora para a cidade aprender as primeiras letras no grupo
escolar. Sozinha, ficava no meu mundo esperando que ela voltasse para
compartilhar com ela de seu material escolar. Encontrei-me com a sua primeira
cartilha, a Cartilha do Povo aquela que trazia na capa o desenho de uma mão e
em cada dedo uma das vogais.
Depois,
no segundo ano escolar ela ganhou um livro chamado Terra Querida, decorei até o
autor, Theobaldo Miranda Santos. Gostava dele e fingia ler todas as lições. Ficava
esperando ansiosa que ela chegasse da escola e trouxesse para mim um pão doce
salpicado de açúcar cristal, que eu chamava de pão-de-açúcar e o livro, causa
maior da minha ansiedade.
Quando
ela chegava ia ajudar minha mãe nos afazeres domésticos e eu me aproveitava
disso para viajar na imaginação, com seu livro, é claro.
Fingia ler todas as histórias mas, quando chegava na
última página, no compêndio do Ciências Naturais, havia o desenho do esqueleto
humano, que eu detestava, pois representava a “caveira”, que representava a
morte e me fazia tremer de medo de assombrações.
Então,
cada vez que folheava o livro levava um susto com a “caveira” e acabei achando,
ou julgando achar, uma solução para o caso. Fui escondida até o fogão à lenha
da mamãe e peguei um carvão e com ele rabisquei toda a caveira. Pensei aliviada
que agora eu poderia “ler” o livro à vontade, sem deparar com a apavorante
“caveira”. Minha alegria durou até a minha irmã descobrir o que eu havia feito
e depois disso ela e minha mãe me repreenderam muito dizendo.
- Olha, menina,
de hoje em diante você está proibida de por as mãos no meu livro. Vou deixa-lo
sempre em cima do guarda-roupa da mamãe onde você não o alcançará nunca! Foi
uma tragédia para mim. Entristeci e na minha solidão eu me sentava no degrau e
ficava desejando o livro tão sonhando, pensando:
- Ah!
Seria melhor tomar o susto com a “caveira” do que ficar sem o livro dela. Era
um caso complicado de paixão por letras, embora tão pequena.
O tempo passou e outro fato me aconteceu de
interessante. Meus primos moravam “na rua” e levaram pra mim um gibi em
quadrinhos com histórias do faroeste americano. Fiquei imensamente alegre e
voltei às minhas atividades de “leitura”. Fingia ler quadrinhos por quadrinhos
e de acordo com as figuras inventava “textos”, “diálogos” para as cenas.
Acontece porém, que naquele tempo criança não tinha vez, nem voz para ser
ouvida, ou consultada.
Meus
Pais estavam de mudança para a “rua” e minha mãe precisava embalar as louças dela
(presentes de casamento) de grande estimação. Sem nenhuma cerimônia pegou o meu
“livro” e foi tirando folha por folha para proteger as louças, colocando-as
embrulhadas num caixote. Perplexa, assisti à cena, com o coração apertado.
Pensava: - Quando chegarmos na
casa nova vou vigiar este caixote e fazer meu livro de novo. Assim, o fiz,
esperei chegar na nova casa e quando a mamãe desembalou as louças foi jogando
as folhas no chão e eu as apanhava alisando-as com as minhas frágeis mãozinhas
de criança. Esperei que a mamãe colocasse brasas no ferro de passar e depois e
depois que ela passou toda a roupa e peguei o ferro e passei todas as folhas do
meu “livro”.
Com
dificuldade, convencia a mamãe de me dar um pouquinho de farinha de trigo e
numa lata de massa de tomate usada eu fiz um grude que era a cola que eu tinha
na época. Colei então, folha por folha, e este foi o meu “livro” por muito
tempo.
No ano seguinte, fui matriculada na escola primária já quase alfabetizada
pela minha irmã e minha mãe. Ganhei então o meu primeiro livro que foi uma
Cartilha do Povo, como a de minha irmã que eu dominei rapidamente os códigos de
leitura e então, a professora, deu-me outros livros da Biblioteca Escolar que
foram um encantadores para mim. “O Bonequinho Doce”. Contava a de um bonequinho
de açúcar (as ilustrações eram bonitas e coloridas) que fazia viagens e passava
por peripécias nessas viagens e um dia tinha que atravessar um rio pressionado
por muitos perigos. Nesse gesto heroico ele se jogava no rio para fugir do
inimigo mas derrete-se nas águas só restando na superfície o lencinho vermelho
do seu pescoço. Chorava muito, com pena do meu Bonequinho Doce, toda vez que
lia e relia aquela história.
Então,
minha professora percebeu minha sensibilidade e deu-me outros livros: Lalau,
Lili e o Lobo, Bonequinha Preta, O Livro de Lili, O Livro de Maria Lúcia e
Minhas Lições. Assim eu fui crescendo e me tornando muito “leitora” como eu me
sentia.
Mudando
para a cidade, já alfabetizada, conheci vizinhos, em melhores situações
econômicas. Então, na casa de um deles eu mergulhava numa dispensa entulhada de
livros e registros. Enfim, encontrei espaço, liberdade para o meu pensamento
que crescia. Eu estava descobrindo-me como leitora e letrada, viajava no meu
silêncio dos Alpes ao Saara, das Montanhas Rochosas ao Caparaó, do Mississipe
ao Amazonas e conheci gente famosa como de Cleópatra, Júlio César, Platão,
Aristóteles e até Asterix, o gaulês. Lia revistas Grande Hotel com histórias
românticas em desenhos e em quadrinhos que eram passadas na Europa e eu
encantava com os dados, locais e modo das pessoas dos outros países, destacando
ainda na lembrança a cidade de Milão, a Itália, as consequências da guerra. O
mundo distante estava ali, nas minhas pequenas mãos.
Encontrei
então o caminho, descobri amigos que tinham gibis e eu os pegava emprestado e
devorava Gene Autry, Roy Rogers, Cavaleiro Negro, Zorro, Fantasma, Mandrake,
Hortelino Trova-Letras e até a conhecida Luluzinha já, naquela época brigando
com o Bolinha por causas “feministas” dividindo territórios.
Daí, meu mundo ampliou, das encrencas dos mocinhos do
velho oeste, das histórias dos pioneiros da colonização americana eu passei a
ler o correio da manhã, um jornal dos Diários Associados que minha mãe, morando
na “rua”, costurando para fora, já podia comprar por também gostar de ler, ser
inteligente e me passar este exemplo. Convivi no Correio da Manhã com Raquel de
Queiroz. Carlos Lacerda, Jânio Quadros, Juscelino Kubistchek, Marechal Lott,
Ademar de Barros e o inesquecível Diário de um Repórter, de David Nasser, para
mim um gênio das letras. Admirava, na minha pouca idade tudo o que publicava.
Descobri
também a revista O Cruzeiro que me informava sobre muitas coisas e eu fui
tornando uma pequena – cidadã, consciente do meu país, do mundo e dos meus
problemas e limitações.
Cresci,
estudei e com o passar do tempo com grandes dificuldades chegando a me formar:
Curso Normal, Pedagogia – Administração e Magistério em Sociologia, História da
Educação, Psicologia e Didática, Pós – graduada em Planejamento Educacional, Psicologia
na Escola e Psicopedagogia. Fiz curso de Comunicação e Expressão e as letras,
as ideias, os textos, os autores, as emoções, neste mundo global em que vivemos
são na verdade partes da minha vida tão cheia de bloqueios e altos muros.
Hoje
tenho premiações literárias em vários países e textos publicados em francês,
italiano, português, inglês, espanhol e grego. Medalhas, troféus, certificados
fazem parte do meu acervo que conservo como relíquia. Premiada e publicada em
vários estados do Brasil e no exterior. Escritora, tenho livros publicados em
verso e prosa.
Concluindo,
quero dizer que palavras, livros e textos não são coisas tão distantes se nos
lançarmos com sensibilidade aos caminhos que nos levam a eles. Eles não são
ligados a sobrenomes importantes nem a contas bancárias volumosas. Basta ter
amor à leitura e imaginação. Escrever para mim, é fazer esculturas de palavras
e de pensamentos – é como atirar mensagens ao vento.
Quem
sabe, alguém as encontra um dia e descobre, como eu, os valores imensos que
então dentro das páginas de um livro. O livro é insubstituível, o livre é
eterno.
EU SOU TUDO AQUILO QUE LI.