Uma característica fundamental para o funcionamento da democracia é a capacidade das pessoas aceitarem o direito de voz ser praticado por parte de seus oponentes políticos e que suas respectivas ideias sejam amplamente debatidas. Muito além das regras formais como a separação dos três poderes, a imprensa livre e o sufrágio universal; uma vivencia democrática se faz com práticas, atitudes.
E é nisso que se observa no processo democrático real, para além dos mecanismos formais/institucionais – o grau de capacidade que grupos políticos tem de tolerar opiniões e cidadãos que são contrários as suas intenções, o nível de respeitabilidade no campo político, no qual todos tenham o direito de expressar seus ideais. Como sintetiza Voltaire: eu discordo do que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo.
Apesar desses valores básicos, o que se observa é uma mentalidade coletiva antidemocrática no que concerne ao respeito de diferentes manifestações intelectuais e culturais. Para comprovar isso, leia as notícias abaixo (que falam por si só) sobre a forma que essa perspectiva de senso democrático é vivenciada no seio da sociedade brasileira.
1) Eu tenho que respeitar as opções políticas de outras pessoas e as suas origens geográficas? Colunista na época das eleições quer dividir o Brasil e se livrar de nordestinos que ele considera inadequados intelectualmente para exercer direitos políticos.
2) Eu devo aceitar uma irrestrita liberdade de expressão na qual todos podem exercer esse direito constitucional? Parlamentar quer aprovar lei que proíbe protesto contra a forma que Temer chegou a presidência do país.
3) O que devo fazer quando discordo de grupos que defendem pautas sociais que me oponho? Deputado apresenta projeto para classificar MST e MTST como grupos terroristas.
4) E quando discordo de uma ideologia política, qual postura democrática devo adotar? Projeto de lei propõe a criminalização do comunismo.
5) Ainda sobre a liberdade de expressão, como tratar as pessoas que politicamente pensam diferente de mim? Professor da UFBA é intimado a depor por “disciplina acadêmica” sobre o “golpe”.6) E quando existem manifestações culturais que considero vulgares, como devo proceder? Senado Federal vota sobre projeto que criminaliza o funk.
7) E quando sou religioso e não concordo com a própria Constituição Federal acerca do Estado laico, como devo agir? Deputado de Goiás quer Bíblia nas escolas para uso científico.
8) O processo eleitoral deve ser de fato democrático? Deputada federal quer que apenas cidadãos com ensino superior possam se candidatar a cargos políticos.
9) E como eu devo agir quando me deparo com comportamentos sexuais diferentes dos meus subjetivos e imprecisos padrões morais de comportamento? Justiça permite tratar homossexualidade como doença.
10) E quando não concordo com as agremiações partidárias que assumiram através de eleições o poder político, o que posso fazer? Setores da classe média pedem uma intervenção militar constitucional para restabelecimento da ordem.
A essência da democracia é a pressuposição de uma natureza social de igualdade, mas percebe-se que por aqui isso é mera formalidade, instante em que poucas vozes valem mais do que de outras no exercício de suas ideias e predileções sócio-políticas. O que vivemos é um grande ódio a prática concreta de democracia, pois nossas atitudes a transformou num Estado de exceção no sentido de estruturar os interesses de uma elite segregacionista. Grupo social este o qual subjuga todos os grupos minoritários a uma situação de precariedade econômica e que impede (manipulando as estruturas do poder) que suas demandas sociais sejam resolvidas politicamente.
A democracia é muito mais que apenas o funcionamento de certas instituições - se dá na possibilidade de discussão de forma igualitária entre todos os membros que compõem a sociedade. Nós vivemos apenas uma democracia formal, letras fantasiadas no vocábulo jurídico. No mundo real, na concretude do dia a dia, somos seletivos quanto aos temas tratados publicamente, impomos restrições a certos grupos sociais para se expressarem e dizemos que há “democracia demais” quando as demandas dos excluídos vem à tona. Quando o povo ousa exercer de fato sua soberania, os donos (antidemocráticos) do poder se incomodam e desenvolvem barreiras para manter os membros da neo-senzala em seus “devidos espaços”.
Nós odiamos a democracia porque o pensamento do autoritário coronel ainda existe em nossa psique coletiva. Passaram séculos, revoltas, ditaduras, constituições, remodelagens econômicas, mas o espírito de segregar os mais humildes ainda nos molda como senhores de engenho ou capitães do mato (a única diferença entre os dois está apenas na situação econômica que cada um apresenta). Ainda continuamos criando barreiras para impedir que pretos, pardos, gays, sem-terra, mulheres e outros grupos minoritários exerçam a plenitude de uma vida democrática. A mentalidade escravocrata foi apenas suavizada por uma capa de humanismo e cidadania, mas ela permanece entre nós.
14.03.2018