“(...) os
mais nobres gestos de amizade, companheirismo e solidariedade que já
testemunhei no convívio com a população de rua também foram protagonizados
pelas travestis. A rivalidade entre os homens e entre as mulheres no universo
da rua obviamente existe. A rivalidade entre travestis de rua, contudo, parece
mais efêmera à medida que as
diferenças se superam e a coesão se
restabelece no momento em que
uma travesti observe outra travesti sendo subjugada ou
vitimizada pelas diversas formas de
injustiça e violência que as acometem nas ruas”[1].
Em
meio a ruas e avenidas, pontes, viadutos e becos das grandes cidades sobrevive
vasta multidão de pessoas em situação de rua, em vertiginoso crescimento;
cracôlandias emergem e se expandem nas fendas do dinamismo econômico de nosso
capitalismo selvagem.
No
meio fio de uma avenida vemos uma mulher sentada junto a outras pessoas, olhar
perdido, alheia aos carros e ônibus que freneticamente passam à sua direita e
esquerda. Se nos aproximarmos mais, percebemos que se trata de uma mulher
transexual. Não acontece com Brenda o apagamento dos registros corporais femininos
que a condição de rua acaba impondo a algumas trans, embora elas usem todas suas
forças para que isso não aconteça.
Brenda
faz parte de trágica estatística, de difícil mensuração, nacional e localmente.
Marco Antonio Carvalho Natalino embasado em metodologia consistente estima em
101.854 o número de pessoas nessas condições para o Brasil, no ano de 2015[2]. Considerando-se a queda
no nível da atividade econômica e o desemprego, de lá para cá, muito
possivelmente esse número está hoje em torno de 150 mil pessoas. Embora sob
contestação e suspeitas de subnotificação[3], o Censo da Prefeitura de
São Paulo para 2019, por ex., aponta 24.344 pessoas nessa situação, com
crescimento de 53% em relação ao Censo de 2015.
Nossa
personagem já vivenciou a euforia e o glamour do dinheiro que a prostituição
permite (não a todas) e passou pelo clássico itinerário trilhado pela maioria
das mulheres transexuais do país. Foi expulsa de casa (talvez a mais cruel
violência, porque é o início de tudo), a escola lhe negou o término do ensino
formal, caiu em casa de cafetina, paulatinamente – com todas as dores – foi
transformando seu corpo, sofreu toda a conhecida sucessão de violências (simbólica
e física, espancamentos, estupros) por parte de diferentes pessoas, agentes e
instituições, inclusive no sistema de saúde.
Também
aconteceu com ela uma desgraça cada vez mais comum: passou a usar cocaína nos programas,
sob exigência dos clientes, que, por isso, costumam pagar bem. O vício foi decorrência
e, junto, a sucessão de consequências conhecidas, afetando seu trabalho.
Dinheiro escasseando e cada vez mais vontade da droga. Começou a traficar para
sustentar o vício e caiu na prisão, roteiro que é a causa da maioria das que lá
estão. Não posso me deter aqui para a vivência sofrida por Brenda na prisão,
porque contar o que é esse ambiente para uma mulher trans demandaria páginas e
páginas; a comoção também talvez não me deixasse terminar. Saiu ela do cárcere,
mas o vício não saiu dela. Próxima etapa: a rua.
Nos
primeiros dias de rua se não aprende como as coisas funcionam, a morte é certa.
Já na primeira noite, dormindo só, acordou sendo chutada por um homem que disse
que ela teria que dar para ele. Como ela não aceitou, levou um soco na cara e
caiu desmaiada. Na segunda noite teve que fugir de um homem com uma faca na
mão. Na fila da sopa (fornecida por instituições religiosas) sofreu zombaria,
retrucou, veio um policial e lhe deu um tapa na cara.
Percebeu
também o quanto é duro para uma mulher transexual pedir cigarro, dinheiro,
comida, ajuda. Entrar em lugares públicos, mais complicado. O já conhecido preconceito
e a discriminação da sua condição de gênero se junta às da situação de rua.
Brenda
assustou-se com a grande quantidade de transexuais vagando pelas ruas. De fato,
os relatos para as grandes cidades do país, sobretudo vindos de profissionais
de equipamentos de assistência social em vários bairros, impressionam. Captar o
fenômeno estatisticamente é um desafio; seguramente a subnotificação é
realidade, e é dupla: pela própria dificuldade de registrar o total de pessoas
em situação de rua, como já disse, e de identificar as pessoas transgênero,
tanto visualmente (devido os apagamentos corporais e estéticos) como pela autoidentificação.
Nacionalmente não temos a informação, já o Censo da Cidade de São Paulo de 2019
registrou 386 pessoas como “transexuais, transgêneros e travestis”. Não temos a
mesma base de comparação classificatória no Censo de 2015, porém, consta lá 106
pessoas que se declararam não heterossexuais. Por baixo, isso significa um
crescimento de mais que o triplo, em quatro anos, muito superior, portanto, ao
crescimento de 53% da população total em situação de rua no mesmo período.
Voltando
à nossa personagem, percebeu ela que nas ruas a “união faz a força” e o “juntos
somos mais fortes” é tudo. Se tornou amiga de Suzy e Diana, transexuais como
ela, Rebeca, uma lésbica, e Bruno, um gay. Assim, cotidianamente, reforçando
seus laços de afeto e amizade, o grupo passou a vagar pelas ruas. Na hora de
dormir revezavam-se, alguém do grupo sempre acordado.
Infelizmente
outra companheira de Brenda era a droga, sobretudo cocaína e, quando não dava,
o crack, o que leva muitas pessoas para a situação de rua e as mantém lá. É a
“drogadição”, no dizer de Elizabeth Marques, profissional de um Centro de
Referência LGBT de Belo Horizonte[4].
O
grupo decidiu conhecer um albergue. De cara perceberam o funcionamento na lógica
do binarismo heteronormativo, homem x mulher. Rebeca ficou na ala feminina, os
demais na masculina. Brenda se deparou com a seguinte dificuldade: poderia
ficar também na ala feminina, mas outras trans já a tinham alertado para futuras
dificuldades; seria maltratada por muitas mulheres que as veriam como homem.
Não tem um lugar apropriado para mim?, pensou ela.
Ao tomar
banho, já na longa fila de espera, fora assediada, ouviu chacotas, a coisa mais
rotineira ali dentro. Quando chegou sua vez, o incômodo: portas abertas, homens
parando vendo-a tomar banho. Um deles indignado disse: uma bicha aqui? Disseram
para ela que albergues com portas fechadas também é um saco, porque ficam
batendo e dizem: “tem uma bicha aqui!”. Assediada novamente à noite, logo ela
percebeu que ali não é lugar para mulheres transexuais, como quase tudo na
sociedade, a família, a escola, a prisão, o posto de saúde etc. Da qualidade do
café da manhã é melhor nem falar...e não é só de abrigo e alimentação que ela
precisa. Como Brenda não é uma imaginação, ela existe, e a população trans de
rua aumenta, não adianta adiar, uma hora tem de enfrentar.
A
partir de certa noite, no hostil ambiente do albergue, na hora de dormir seu
grupo chamou outras trans e gays, tomaram um cômodo inteiro. Chegou um homem
que quis entrar para dormir; disseram “não, aqui é nosso espaço”. Ele não
gostou e quase apanhou. A partir daí ali se tornou a ala de trans e gays do
albergue: “nos respeitem!”.
Ficou
Brenda sabendo de um abrigo, uma casa de acolhida para trans, gerida pela Prefeitura.
Dizem que lá não há esses problemas, que é um ambiente mais apropriado para
ela, além disso passam o dia, estudam, trabalham, têm apoio psicológico e de
saúde. Pleiteou, mas a fila de espera é enorme. Por que não abrem mais vagas?
Não constroem mais? Pergunta-se.
Nossa
personagem acabou apaixonando-se por um homem chamado Gabriel, o que é visto,
em geral, como uma proteção nas ruas. No início muito amor e carinho, ele a
tratava muito bem, estavam sempre juntos e se sentia, de fato, protegida. Pouco
depois Gabriel começa a mudar, ele pede para ela vender e transportar droga.
Coloca na cabeça que ela tem que fazer programas para eles terem dinheiro e foi
ficando violento. Como a maioria das mulheres (inclusive trans) nas ruas,
começou a ser usada e maltratada pelos ditos companheiros. Voltou aos seus
amigos Suzy, Diana, Rebeca e Bruno, e os laços fortaleceram-se mais ainda.
Um dia,
sob efeito da droga, o grupo andava no meio fio de uma avenida, titubeante e
zonza Suzy sai da calçada e entra na via. Um ônibus passa por cima dela. Ver a
amiga daquela maneira, sentir o calafrio da morte (poderia ser ela também) a
fez desmaiar. Depois que acordou, sem a melhor amiga, foram dias terríveis.
Brenda
se vai logo depois, mas cara leitora e leitor não fui eu que inventei sua
morte. Ela começou a ser assassinada a partir do dia que resolveu encarar o voo
do masculino em direção ao feminino, rumo ao desejo. Invisibilizada, sua agonia
será apenas mais uma dentre as tantas trans assassinadas, assim como
provavelmente não se saberá quem foi que, na calada da noite e num momento de
descuido (talvez embalada pela tristeza da perda de sua melhor amiga), lhe deu
tantas facadas. A ânsia em arquivar e não investigar provavelmente falará mais
alto, sobretudo em se tratando de uma mulher trans numa sociedade hipócrita e
transfóbica.
Artigo publicado originalmente no Justificando em 09 de abril de 2020.
[1] GIORGETTI, Cassio. Vida que segue, rua que muda. São Paulo: Ed. Clube de Autores,
2017, p. 93-94.
[2] NATALINO, Marco Antonio Carvalho. Estimativa da população em situação de rua
no Brasil. Brasília: IPEA, Texto para discussão 2246, 2016.
[3] “Estão divulgando uma
mentira. São mais de 32 mil pessoas em situação de rua em São Paulo”, disse
Anderson Miranda, que afirmou ter feito parte da pesquisa como recenseador,
segundo o jornal Folha de S. Paulo. Ao lado de outros integrantes do Movimento
Pop Rua, ele acusou recenseadores de terem excluído entrevistados da pesquisa
(....) O padre Julio Lancellotti, representante da Pastoral do Povo de Rua,
afirmou também que a pesquisa de 2019 usou o mesmo itinerário do censo
anterior, desconsiderando as mudanças espaciais da população de rua entre 2015
e 2019, segundo o jornal O Estado de S. Paulo”. https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/02/03/O-perfil-da
popula%C3%A7%C3%A3o-de-rua-de-S%C3%A3o-Paulo-em-5-pontos
[4]
http://transite.fafich.ufmg.br/transito-das-ruas/