No 8 de março,
não nos deem flores, estejam ao nosso lado nas lutas!
Na data 8 de março é
comemorado o Dia Internacional das Mulheres. Reconhecida na década de 1970 pela
Organização das Nações Unidas (ONU), a escolha da data possui diferentes
versões históricas, mas com um consenso: 8 de março é um dia de lutas por um
mundo mais justo e igualitário. Rememorar isso é sempre imprescindível, já que
vivemos no sistema capitalista, em que quase tudo é transformado em mercadoria,
e na época das redes sociais, que vorazmente se apropriam de conteúdos e
práticas, deturpando e/ou esvaziando os seus sentidos políticos.
A propaganda com Michelle
Bolsonaro, do Partido Liberal (PL)[3],
no dia da conquista do voto feminino, 24/02, é bastante ilustrativa. Vestida
com uma camisa que tem uma imagem da bandeira brasileira com a frase “ore pelo Brasil”, Michelle aparece
sorridente em destaque, tendo como imagem de fundo duas fotografias: a primeira
de uma manifestação ocorrida em 1968, com diversas atrizes protestando contra a
ditadura militar, e a segunda de uma mulher votando no ano de 1955[4]. Apropriações e deturpações oportunistas é
o que percebemos, mas isso não ocorre sem nenhum propósito – a ex-primeira-dama está pavimentando seus caminhos
políticos com seu “Deus” que é
completamente oposto aos direitos de meninas e mulheres conquistados
arduamente.
Diferentes ações foram
realizadas no ex-governo de seu marido – aquele que tem uma “mania” de repetir a expressão “pintou um clima”[5]
– como, por exemplo, a portaria no 2.561/2020, que dificultava
ainda mais o acesso ao aborto legal. Propostas relacionadas à violência contra
as mulheres, que além de serem fragmentadas, também não foram executadas pela
ministra do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, sua amiga que
veste rosa e não azul[6].
O fato de sermos reconhecidas
socialmente como mulheres não nos implica, automaticamente, nas lutas por uma
sociedade mais justa e igualitária. Isso ficou mais do que evidenciado nesses
últimos anos. Além das Michelles, Damares, temos profissionais de saúde e do
judiciário, dentre outros segmentos, que tentam convencer meninas e mulheres
estupradas a não abortarem, que divulgam dados sigilosos de mulheres famosas
sobre situações de violência sexual, que justificam as diferentes violências
cometidas por parceiros íntimos etc. Difícil tornar-se mulher dentro de um
sistema misógino e não o reproduzir. Alienadas de nós mesmas e da nossa
diversidade, muitas vezes nem sabemos que se eu estou aqui escrevendo,
assinando um texto com o meu nome, e você está aí lendo, isso decorreu do
processo de luta histórica em que milhares de mulheres estiveram/estão
engajadas.
Os valores sociais
patriarcais, misóginos e machistas, acrescidos do racismo, classismo, etarismo,
dentre outros sistemas opressores, ainda são os dominantes em nossa sociedade.
A quarta pesquisa “Visível e Invisível –
a Vitimização de Mulheres no Brasil”[7],
realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pelo Datafolha, divulgou
números assustadores. No ano de 2022, 28,9% (18,6 milhões) de mulheres foram
vítimas de algum tipo de violência, o que representa que 35 mulheres sofreram
agressões físicas ou verbais por minuto no Brasil. Houve um aumento expressivo
de casos, 4,5% em relação ao ano de 2021, e das situações mais graves de
violência, incluindo o feminicídio. As mulheres negras, jovens e com baixa
escolaridade foram as principais vítimas.
Os/as pesquisadores/as
analisam que a situação é complexa e que diferentes motivos podem explicar esse
aumento, mas destacam três: o baixo financiamento das políticas públicas
voltadas para a problemática no último governo; a pandemia da COVID-19, que
dificultou o funcionamento dos serviços que compõem a rede de enfrentamento a
violência contra as mulheres, e o aumento/fortalecimento, nos últimos anos, de
movimentos políticos ultraconservadores que são contrários às discussões de
gênero.
Segundo o relatório da Transgender Europe (TGEU), publicado em 2022, o Brasil é o país que
mais mata pessoas trans e travestis no mundo. Mesmo com a invisibilidade e as
subnotificações, os números são estarrecedores: “o relatório mostra que o Brasil teve 125 mortes. Por outro lado, só no
ano de 2020, Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) reportou
175 transfeminicídios e mapeou 80 mortes no primeiro semestre de 2021[8]”.
Ainda neste período, a Antra registrou 9 suicídios, 33 tentativas de
assassinato e 27 violações de direitos humanos. São as mulheres trans ou
pessoas transfeminadas as que foram mais assassinadas, sendo a maior parte
negra, migrante, jovem e profissional do sexo.
Dados divulgados recentemente
pela ONU também apresentam outra realidade bem difícil, a de que uma mulher
morre a cada dois minutos, no mundo, por causa de complicações relacionadas à
gravidez ou ao parto. Situação que é pior nos países mais pobres ou que estão
em zonas de conflitos[9].
O Brasil possui uma alta taxa de mortalidade materna, em 2018 foi de 59,1,
quando a meta fixada pela ONU foi de 35 até 2015. As mulheres negras também são
as que mais morrem[10].
Na pandemia, o país ocupou por um tempo o primeiro lugar de mortes maternas
relacionadas à COVID-19[11].
A maior parte dos casos de mortes maternas são evitáveis e quando refletimos
sobre as mortes por feminicídio e transfeminícidio consideramos que todas são
evitáveis, o que falta mesmo é compromisso e vontade política para o real
enfrentamento dessas problemáticas.
É verdade que ganhamos um
fôlego com a eleição de Lula em 2022, que logo nos primeiros meses revogou
portarias contrárias aos direitos de meninas e mulheres e retirou o Brasil do
Consenso de Genebra, espaço composto por países ultraconservadores que
objetivam impor retrocessos aos direitos sexuais e direitos reprodutivos, e ao
conceito de família. No entanto, sabemos que os caminhos são árduos e
tortuosos, entre fluxos de idas e vindas, com diferentes tipos de negociações e
de responsabilidades, que incluem o Estado, suas políticas públicas, e a
sociedade civil.
Em uma breve pesquisa informal
com profissionais que ocupam cargos de liderança em empresas, perguntei se
achavam importante ações voltadas para o Dia Internacional das Mulheres. Houve
uma unanimidade entre as mulheres e os homens, em geral, cis, brancas/os e
heterossexuais, de que sim, mas no momento em que foram perguntados sobre os
tipos de ações, muitas/os não souberam responder e outras/os trouxeram a ideia
de dar bonificações ou algum presente. Dar apenas presentes, flores e/ou
parabenizar as mulheres são ações que favorecem mais o esvaziamento do sentido
político do nosso dia e não nos provocam a refletir sobre a importância dele, e
de seu objetivo principal de luta por um mundo mais justo e igualitário. É
urgente pensarmos/praticarmos outras estratégias, engajando os diversos setores
da sociedade civil para resgatar esse objetivo.
Assim, neste 8 de março de
2023, convido vocês a pensarem junto comigo nessas outras ações, que podem ser
desenvolvidas ao longo do ano, de variadas formas e em diferentes lugares:
familiares, entre amigas/os/es, profissionais etc. O que não pode variar é esse
compromisso de resgaste histórico do 8 de março. Para isso, as ações devem
trazer as pautas de lutas dos movimentos de mulheres e feministas como, por
exemplo, a violência contra as meninas e mulheres, a descriminalização e
legalização do aborto, a diversidade sexual, dentre outras. A construção desses
espaços em um momento bastante nebuloso como o atual pode ser uma utopia, pode,
mas são elas que nos movem e movem o mundo. Um mundo melhor para as meninas e
mulheres, cis e trans, é um mundo melhor para todas as pessoas.
[1] Mulher
cis, heterossexual, reconhecida socialmente como branca, professora, psicóloga
e às vezes artista. Mestra em Psicologia pela UFPE e Doutora em Saúde Coletiva
pelo ISC/UFBA.
[2] Agradecimentos especiais às pessoas que participaram
voluntariamente da breve pesquisa informal e a Aninha, pela leitura atenta e
colaborativa.
[3] Ver na página do facebook do partido: https://www.facebook.com/plnacional22
[4] Ver análise realizada por Lilian Schwarcz em sua página do
Instagram.
[5]As
expressões entre aspas são trechos de fala de Michelle Bolsonaro: https://g1.globo.com/se/sergipe/eleicoes/2022/noticia/2022/10/16/ele-tem-mania-de-falar-se-pintar-um-clima-diz-michelle-bolsonaro.ghtml
[6]
Referência à fala da ex-ministra: https://www.uol.com.br/eleicoes/2022/03/28/damares-alves-diz-que-no-republicanos-menino-veste-azul-e-menina-veste-rosa.htm
[7] Acayaba,
Cíntia; Honório, Gustavo. 35 mulheres foram agredidas física ou verbalmente por
minuto no Brasil em 2022, diz pesquisa. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/03/02/35-mulheres-foram-agredidas-fisica-ou-verbalmente-por-minuto-no-brasil-em-2022-diz-pesquisa.ghtml
[8] Pinheiro,
Ester. Há 13 anos no topo da lista, Brasil continua sendo o país que mais mata
pessoas trans no mundo. 2022. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2022/01/23/ha-13-anos-no-topo-da-lista-brasil-continua-sendo-o-pais-que-mais-mata-pessoas-trans-no-mundo
[9]Ver
a matéria completa em: https://cee.fiocruz.br/?q=Relatorio-de-agencias-da-ONU-aponta-que-uma-mulher-morre-a-cada-dois-minutos-devido-a-gravidez-ou-parto
[10]
Fernandes, Marcella. Números oficiais sobre grávidas com covid-19 estão longe
da realidade, dizem pesquisadores. 2020. Disponível em: https://rehuna.org.br/2020/06/24/numeros-oficiais-sobre-gravidas-com-covid-19-estao-longe-da-realidade-dizem-pesquisadores/
[11] Para
acessar o estudo: https://obgyn.onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/ijgo.13300