Em conversa com a cineasta curitibana Larissa Nepomuceno troquei sobre o movimento emergente de mulheres, abarcando as mais variadas identidades, que não se contentam mais com uma posição marginalizada na sociedade e buscam o protagonismo de suas narrativas. Larissa Nepomuceno é documentarista, roteirista, diretora cinematográfica e feminista. Dirigiu os documentários: Megg - A margem que migra para o centro (2018) que fala sobre a primeira travesti negra a receber o título de doutora no país; e Seremos ouvidas (2020) que lida com o feminismo surdo, uma pauta pungente e urgente ainda pouco ouvida pela sociedade.
Como você vê a relação das suas memórias de infância e o seu trabalho com cinema atualmente?
Tem uma coisa que sempre lembro, dos dez aos quatorze anos eu tinha umas amigas muito próximas e uma delas tinha uma dessas câmeras antigas grandonas. Teve uma época que a gente começou a pegar ela e fazer filmes. Só que a gente não pegava os roteiros do zero, lembro que na época fazia muito sucesso a série de filmes Pânico e a gente fazia mais umas outras continuações: tipo Pânico 4, Pânico na escola etc. Porque minha amiga tinha a máscara também, que ela costumava usar no halloween. Minha mãe me levava muito em locadora de vídeo, então estávamos sempre alugando ou assistindo algo que já tinha lá em casa. Cresci assistindo muito filme. Uma coisa curiosa é que eu não assistia filmes das princesas da Disney, como a maioria das meninas.
A minha primeira graduação é em artes visuais e lembro que ainda lá comecei uma pesquisa com produção de retratos. Então gostava muito de pintar retratos, foi nessa época que comecei a me interessar por pessoas e de olha-las. Não foi uma coisa consciente, mas é algo que reverbera muito no meu trabalho hoje. Me considero uma documentarista e nesse trabalho tem isso de olhar para as pessoas e suas histórias. Antes de interessar por documentário eu não me considerava cinéfila, apesar de ter assistido muito filme na infância e ter brincado de fazer cinema.
Me conta um pouco do sobre o filme Megg – a margem que migra para o centro (2019).
No último ano da graduação em artes visuais comecei a entender mais por questões de gênero e estudar sobre feminismo. Entendendo mais sobre a posição da mulher na sociedade e sexualidades. Fui numa palestra na UFPR de uma outra professora trans e ela mencionou a Megg em vários momentos. Na época ela estava no doutorado ainda. No curso de cinema já me interessava em documentário, mas não pensava em dirigir. Só sabia que queria participar da equipe de um. Nisso vi uma matéria que uma professora minha da graduação compartilhou no facebook, falando que a Megg tinha se formado no doutorado e agora era a primeira travesti negra com esse título no Brasil. Aí lembrei que já tinha ouvido falar dela e fiquei muito feliz por ela ter conseguido, mas logo depois me veio um incomodo muito grande. Comecei a lembrar tudo que já tinha ouvido sobre travestis, e eram sempre coisas muito negativas e estereotipadas. Me perguntei: onde vejo travestis ou pessoas transsexuais em geral? Eu nunca tive uma professora trans. Não é possível que todas as travestis queiram trabalhar na rua com prostituição, drogas e afins ou ir pro salão. Pra mim não fazia sentido, comecei e refletir e não fazia sentido só ter essas duas possibilidades. Com essas minhas reflexões e com esse exercício de documentário que poderia propor eu pensei: já que estou com muita vontade de conhecer a Megg, pra conhecer mais sua história, porque não proponho esse filme?
Lembro que levei o tema pra sala de aula, mas pensando que outra pessoa ia se propor a dirigir, porque eu estava meio desconfiante por nunca ter dirigido nada. Porém, ninguém se interessou a não ser a professora. Ela me incentivou a ir atrás da Megg e tentar fazer o filme que ela me daria um suporte. Escrevi um projeto e fui bem na cara e na coragem mesmo, entrei em contato com a Megg, expliquei minha ideia e ela felizmente aceitou! Acho que Megg gostou de mim de cara quando nos conhecemos pessoalmente. Fui honesta com ela dizendo que já a conhecia e queria conhecer e aprender mais com ela. Tanto de aprender a fazer filmes, como conhecer a trajetória dela. Megg foi muito receptiva, foi um processo muito bom!
E como foi a recepção do público com o filme?
Foi bem surpreendente porque eu tinha muito orgulho do filme, mas acho que nunca esperávamos que outras pessoas iriam gostar tanto. Acho que ele entrou para uns setenta festivais dentro e fora do país até agora. Foi incrível, porque foi a primeira vez que viajei com filme, não sabia que existia essa possibilidade. Foi assim que comecei a conhecer o meio do cinema mesmo, conhecendo outros documentaristas e outros trabalhos. Então comecei a ver no cinema uma possibilidade de trabalho. Teve uma recepção muito boa mesmo, fiquei bem satisfeita.
Depois que ele ficou um ano e meio circulando decidi colocar ele no youtube porque para mim é isso: não faz sentido fazer um filme se as pessoas não podem ver. Entendo que apesar de ter circulado muito em festival, ele acaba sendo visto sempre pelo mesmo público. No youtube ele teve uma boa recepção também. Até hoje não tive nenhum hate vindo do filme. Só um dia desses um conhecido meu falou que exibiu o filme para uma turma e um dos alunos se sentiu ofendido e saiu da sala e não quis ver o filme. Mas enfim, é uma coisa que eu já imaginava que poderia acontecer. Para além de tudo isso a Megg gostou bastante do filme, o que era uma coisa muito importante pra mim. Sempre que ela palestra ela comenta do filme.
E o Seremos ouvidas (2020), como foi a experiência de realizar esse filme?
Na época eu fazia aula de libras com um professor surdo, estávamos próximos do Dia da Mulher e conversávamos sobre feminismo e ele contou que existia uma diferença entre o feminismo de mulheres surdas e mulheres ouvintes. Foi uma coisa que me impressionou muito.
Sou feminista, me interesso pelo assunto, tenho acesso a internet de qualidade, a livros, filmes, estou fazendo aula de libras tem quase um ano e nunca tinha ouvido falar sobre isso. Aí fui procurar mais sobre o assunto. O professor me indicou a conversar com a Gabriela, que é uma das mulheres que está no filme, mas fui procurar no google outros filmes sobre a temática e não encontrei. É possível que alguém já tenha feito um filme sobre isso, mas eu não encontrei. Isso me deixou mais surpresa ainda e por não ter encontrado decidi que faria o filme. Foi um trabalho mais complicado do que o da Megg, por mais que eu não faça parte do universo da transexualidade e travestilidade é muito fácil fazer pesquisa e encontrar informações para serem inseridas no filme. Na questão das pessoas surdas é mais difícil, ainda mais há uns anos atrás. Então foi um processo de conversar com as três mulheres e pensar possibilidades de como eu poderia resolver um documentário todo em libras. Porque tradicionalmente temos a pessoa falando enquanto entram uma imagem de cobertura e continuamos a ouvir aquela voz. Com libras isso não é possível e eu não queria usar dublagem. Já tinha visto uns filmes que as pessoas dublavam as pessoas surdas, eu não queria isso, queria assumir a língua de sinais como linguagem do filme mesmo. Uma das mulheres presentes documentário me inseriu nas comunidades surdas nas redes sociais e pude ter esse contato cotidiano com elas, tirando dúvidas e validando ou não as coisas que eu achava que poderia colocar no curta. Eu tinha muito medo de fazer um filme que soasse capacitista ou que estereotipasse essas mulheres de alguma forma e elas me ajudaram muito. No processo de pós sempre que finalizava um corte mostrava para uma pessoa ouvinte e pra uma mulher surda e elas iam me orientando. Percebo que fez total diferença no processo final do filme.
Quando eu assisti eu lembro que senti algo, agora que você falou dessa questão da voz e as imagens adicionais, percebi que o filme teve um trabalho diferenciado com essa questão do som. Tem alguns momentos que o filme é silencioso praticamente, só se escuta os sons que as mulheres fazem, alguns cliques da própria oralização delas. Foi intencional trabalhar o filme nessa questão da ausência do som?
Sim, lembro muito da primeira vez que tentei conversar com uma pessoa surda nas minhas aulas e foi um incomodo muito grande. Quando a gente está tentando aprender qualquer língua, alemão, francês, sei lá, é muito fácil ter contato e encontrar material no cotidiano. Do tipo de estar lavando louça ouvindo uma música, assistindo um filme pra ir se acostumando com o som etc. Com a libras é muito mais complicado. No começo então me senti muito incomodada com aquele silêncio. Tem alguns sinais que são muito fáceis de entender, tipo o “você” que é apontar o dedo indicador, mas “mãe” é um sinal muito mais difícil de se entender. De alguma forma eu queria trazer esse incomodo pra tela, queria fazer de alguma forma que as pessoas entrassem naquele silêncio e realmente ficassem submersas no filme. Achei que se colocasse trilha sonora, ou se narrasse as mulheres meio que esse lugar da magia do filme ia se perder e dissipar.
A primeira entrevista que a gente fez que foi com a Gabriela nós chegamos a colocar microfone dela, porque eu queria mesmo esses sons, tanto os que ela faz com a boca quanto de bater no corpo e fazer os sinais, queria que isso fizesse parte do filme. Nas outras duas entrevistas a gente acabou não usando porque percebi que a Klicia e a Celma não faziam muitos sons mesmo então não ia fazer muita diferença. Na pós produção disse que queria que as pessoas assistissem e percebessem que o áudio da câmera não está desligado, tem um som ali. Porque tem muita gente acha que libras é só sinal, mas na verdade é todo corpo e até a emissão de som porque as pessoas surdas normalmente são oralizadas desde de crianças, então elas usam o som também. Condensei isso tudo no filme para que as pessoas conhecessem mais não só sobre o feminismo surdo mas também sobre a língua de sinais.
E fez muito bem por sinal, parabéns! Legal que você fez um contraste com aqueles tambores das manifestações, acho que isso dá uma tonificada toda nesse jogo com o silêncio e a ausência.
O cinema negro cresce cada vez pelo Brasil nos últimos anos. Acha que podemos falar de um cenário dessas produções audiovisuais pelo sul?
Vou falar mais de Curitiba que é o lugar que conheço. Faço parte da APAN do sul e percebo que há uma movimentação, é um grupo pequeno, mas que tem se fortalecido. No ano passado tivemos o Griot - Festival de Cinema Negro Contemporâneo que e tive a oportunidade de conhecer ainda mais realizadores negras e negros. Mas eu vejo o pessoal de Curitiba fazendo parceria com pessoas negras de fora do estado ainda. Não porque não há pessoas negras fazendo cinema aqui, porque têm, mas percebo que isso ainda está começando e tem ganhado cada vez mais força.
Venho pesquisando como cineastas e professores se encontram na função ancestral dos griots, os contadores de história tradicionais de África. O que você acha que estes precisam para trabalharem como os anciões griots?
Acho que todas as pessoas que trabalham de alguma forma com transmissão de conhecimento e contação de histórias podem atuar como griots. Eu penso no movimento de professores e cineastas que vão em direção a essa transmissão de conhecimentos trazendo a ancestralidade à tona a partir de suas vivências. Existem as histórias que estão na superfície e as histórias que estão na profundidade. As que estão na superfície são as que mais estamos acostumados de ouvir que são as histórias eurocentradas contadas por e para homens brancos. São as histórias que são aceitas. E eu vejo muito contadores de histórias e transmissores de conhecimento, tanto na área do cinema quanto na educação, de trazer à tona essas histórias que estão submersas e em segundo plano. Vejo nisso uma potência muito grande. Não que uma pessoa não possa se tornar um griot contando uma história que está na superfície, mas acho que agora é o momento de trazermos à tona o que foi subjugado trazendo pra margem.