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Retratos & Roteiros Sociais - Por Cassiano R. M. BovoVOLTAR

Luma

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Cassiano Ricardo Martines Bovo
fev. 28 - 7 min de leitura
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Tempos atrás, Luma veio morar comigo para realizar o processo de implante de próteses (seios) para, em seguida, voltar à sua terra natal.

Um dia, enquanto tomávamos o café da manhã, ouvimos um apresentador de um jornal da TV dar a notícia sobre o assassinato de uma mulher transexual. Ele disse algo do tipo: “o travesti (e não ‘a travesti’) com tal nome (o do registro civil), conhecido (e não ‘conhecida’) como (nome social), foi assassinado (e não ‘assassinada’)”. Em seguida, contou os detalhes do crime; este, com requintes de crueldade, como em geral acontece quando se trata de vítimas transgêneras. Eu e Luma nos olhamos; ela talvez se lembrando das várias situações sofridas com trocas ortográficas entre o masculino e o feminino; sucessão de violências simbólicas. E, também, a notícia possivelmente nela reverberou no sentido dos perigos e riscos a que está cotidianamente exposta.    

Pouco antes da operação, eu e Luma fomos ao cartório, pois ela precisava de explicações em relação a uma questão que tinha de resolver. Depois de longa espera, fomos atendidos diretamente por um homem e durante a conversa ele pediu o RG dela. Como à época ainda não vigorava a lei que permite a utilização do nome social nos documentos de identidade, ele leu o que lá constava: Gilberto Eustáquio de Aguiar (nome fictício). Mas o atendente tinha à sua frente uma pessoa que claramente pulsava o feminino; mesmo assim, no desenrolar do atendimento, em determinado momento, ele disse taxativamente: “não, senhor”. E nem mesmo retificou, como às vezes acontece, com afirmações do tipo: “desculpe, quis dizer senhora”.

Quanto à operação, sofrimentos outros. A maioria das clínicas (se assim pudermos chamá-las) que realizam as operações para a colocação de próteses de silicone, em geral, são clandestinas ou metidas com problemas judiciais e de fiscalização, atuando em precárias condições, atendimentos em série, anestesia local e sem o apoio necessário no pós-operatório, na base do “chegou, fez, fica um pouco e vai embora”.

Uma vez colocados os seios em Luma, dias depois um deles começou a expelir muitas secreções e se percebia que algo não estava indo bem. Voltamos lá e a examinaram. Fiquei esperando; tempos depois ela voltou chorando e dizendo que aquele seio teria que ser retirado, ela o fez em relação aos dois. A dor física do procedimento juntou-se ao sofrimento da quebra das expectativas, sobretudo, pelo que me parece, se considerarmos o significado dos seios para as mulheres trans.   

Nem bem Luma se refez da situação quando, no final de semana seguinte, começou a escorrer um líquido amarelo com sangue, da região onde um dos seios foi retirado. Eu a levei numa UBS (Unidade Básica de Saúde) no centro da cidade de São Paulo. Ao chegarmos, o atendente pediu o RG, ela mostrou e explicou o que estava acontecendo, ele abriu a ficha de atendimento. Naquele momento eu disse claramente: “o nome social dela é Luma” (sabia que a orientação, já à época, é o uso do nome social e, de qualquer forma, trata-se de uma questão de respeito). Depois de muito tempo de espera, fomos para uma fila em que um funcionário chamava as pessoas e dava os encaminhamentos. Ele não chamou “Luma”, mas Gilberto Eustáquio. Ela disse: “aqui”, mas o atendente veio em minha direção e me disse para eu ir em determinada sala, quando eu expliquei que não era isso, sob os olhares de todas as pessoas próximas. Depois de tudo, ela ainda passou por essa....

Pouco tempo depois, em 2018, finalmente o STF (Superior Tribunal Federal), por unanimidade, autorizou a mudança do nome e gênero no registro civil sem a necessidade de realizar a cirurgia de redesignação sexual ou processo judicial, possibilitando às pessoas transgênero portarem documentos (como o RG) compatíveis com a identidade de gênero à qual se identificam. Grande conquista, sobretudo se considerarmos a burocratização típica das sociedades em que vivemos (ditas modernas) onde a legitimação passa pelo registro formal, o estatuto, o documento (na linha da “dominação legal”, na tipologia de Max Weber).

Creio que tudo isso trata de uma das facetas da visibilidade, que passa, também, pelo documento, aliás, como sabemos, o direito ao nome social abre portas para a conquista de outros direitos e acessos. E, pouco depois, outras conquistas vieram, como a despatologização da transexualidade, a criminalização da LGBTfobia e a autorização para a doação de sangue, para ficarmos nos mais comentados.

Embora o número de pessoas que se identificam como travestis e transexuais tenha crescido consideravelmente no país, sobretudo a partir dos 1970 (impulsionado pela disseminação e utilização maciça do silicone industrial e das próteses), e outros direitos tenham sido conquistados (sobretudo na área da saúde), passou muito tempo para essa conquista, fortemente relacionada à identidade e visibilidade, se consumar, como se vê. Muita demora e resistência. Transfobia institucional?  

Fosse antes, muito já se teria evitado. No caso de Luma, que logo retificou seu documento de identidade, este sendo apresentado ao homem do cartório e ao atendente na UBS (que geraria diferente ficha de atendimento), a situação poderia ser outra. Na TV, a transexual assassinada talvez fosse apresentada de outra maneira, pois sua identidade formal estaria coerente com a identidade de gênero. Enfim, derrapagens transfóbicas seriam dificultadas; obviamente não eliminadas, numa sociedade em que a transfobia exala por todos os poros. O alarmante número de homicídios contra as pessoas transgênero, que teima em não cair, que o diga.   

A percepção de que há muito a se fazer, e da distância entre a lei (papel) e a prática, aflora imensamente quando vemos, em pleno 2020, uma delegada que atua numa Delegacia de Defesa da Mulher negar o atendimento às transexuais sob o argumento da ausência de genitália feminina, desconsiderando o que efetivamente vale: a identidade de gênero (reforçada, agora, pelo documento formal). E, pior, a delegada, vendo que sua argumentação não convenceu, alegou falta de estrutura e espaço, o que também foi desmentido pela própria Ouvidoria da Polícia e pelo Setor de Segurança Pública do Estado, pondo a nu o que muitos querem na sociedade: restringir os direitos adquiridos pelas pessoas trans

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