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Intervenções com TEA antes e durante a Pandemia: desafios e impactos na formação profissional e humana

Intervenções com TEA antes e durante a Pandemia: desafios e impactos na formação profissional e humana
Joice Luciana Ventura Marques
dez. 31 - 10 min de leitura
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Muito se discute que a educação é um direito de todos, e realmente é, está previsto na Constituição de 1988. Porém, faltam debates sobre o quanto é difícil o acesso a esse direito por algumas pessoas, quando por exemplo, a necessidade de batalhar para garantir a alimentação e uma moradia falam mais alto, realidade de muitas famílias brasileiras. Falo isso por experiência própria, tive que começar a trabalhar aos 12 anos de idade, limpando a casa de uma família e tomando conta de uma criança com metade da minha idade, pois tinha que ajudar mais a minha própria família.  

Apesar de ter que dedicar horas trabalhando desde a infância, por questões de sobrevivência, eu sempre mantive o pensamento de que não largaria a escola, mesmo porque, lá eu tinha momentos de alegria e comia bem. Ao longo dos anos, trabalhei em vários lugares e cheguei ao Ensino médio. Após essa etapa, finalizada em 2006, minha preocupação era arrumar um emprego formal, porque os anteriores eram “bicos”, e fazer a vida melhorar, enquanto meus colegas pensavam em fazer faculdade, um sonho que também era meu, mas que era uma realidade muito distante. 

 Consegui um emprego formal como planejado e passei a realizar o Enem todos os anos, mas por fazer, não chegava nem a me inscrever na faculdade, achava coisa de outro mundo. Porém, ao mesmo tempo, continuava sonhando com meu ingresso em uma, então, para aumentar minhas perspectivas no Enem, fui fazendo diversos cursos profissionalizantes pela prefeitura e um curso técnico pelo governo de Minas.  

Aos 20 anos fui morar sozinha, aos 21 conheci o pai do meu filho e decidi que queria ter um filho, aos 22 anos fiquei grávida e nós fomos morar juntos. E mesmo diante desse novo contexto, não desisti da faculdade!  

Ao final do curso técnico em 2014, comentei com minhas colegas que queria entrar na faculdade, portanto, no ano seguinte fiz o Enem mais uma vez, me inscrevi no Prouni e tentei algumas faculdades e Universidades, dentre elas a PUC Minas. Consegui uma bolsa de 100%, sem acreditar, e em 2015, após 9 anos de tentativa, cheguei na tão esperada graduação em Educação Física, curso que escolhi pensando em trabalhar com a dança.  

Durante o curso, além do conteúdo das novas disciplinas, tive que ir (re)aprendendo coisas que não ficaram tão claras na educação básica, devido às dificuldades do período. À medida que fui adquirindo conhecimento, fui ampliando também a visão e as perspectivas, descobrindo outras áreas de atuação que a Educação Física possui além da dança, que eu poderia atuar. Uma dessas áreas foi a possibilidade de trabalhar com pessoas com deficiência (PCD).  

Descobri essa possibilidade no 6º período do curso, no qual eu tive a disciplina “Educação Física e Pessoas com Deficiência” e tive que cumprir um estágio obrigatório na área. Nesse momento, veio a insegurança e a ansiedade, fiquei me questionando se era capaz de oferecer aulas e intervenções para esse público, porque não tinha contato direto com ele, somente indireto em ônibus e nas ruas. Tinha muito medo de falhar e prejudicar um aluno.  

Para cumprir o estágio, aprender e tentar minimizar minhas dúvidas e inseguranças, em 2019 ingressei no Projeto Qualidade de Vida para Todos (PQVT), que acontece no Complexo Esportivo da PUC Minas, unidade do Coração Eucarístico, cujo objetivo é promover mais qualidade de vida à PCD (física, visual, intelectual, auditiva e/ou múltiplas e transtornos), através da realização de atividades aquáticas.   

Além dos receios já citados, tive que encarar mais um desafio: desenvolver atividades dentro da piscina, um medo que existia pelo fato de eu não dominar o nado.  Logo, mais uma vez vinha o pensamento, “será que vai dar certo?” Mas fui dando oportunidade, poderia ir adiante ou desistir, a escolha foi por seguir em frente. 

Na minha permanência no projeto, comecei a realizar intervenções com beneficiários com deficiências diversas, como: Transtorno do Espectro Autista (TEA), Síndrome de Down, Deficiência Visual, Deficiência Física e Paralisia Cerebral. Nesse relato, falarei especificamente sobre a intervenção com um aluno com autismo, pois dentre todas as deficiências, essa é a que me apresentava mais dúvidas. Resolvi fazê-lo, por acreditar que ele pode contribuir para a compreensão da importância das abordagens remotas para alunos com deficiências que não têm condição de participar das aulas presenciais, devido ao novo contexto que a pandemia nos colocou. Também, por talvez colaborar para os profissionais de Educação Física perceberem essa perspectiva de ministrar intervenções de modo remoto, já que a forma trabalhada até então na área era predominantemente presencial, reconhecendo que ela é possível, apesar das inseguranças que possam existir.  

O beneficiário do projeto que eu atuei, receberá o pseudônimo de Juan, ele tem 13 anos e o diagnóstico encontrado em seu laudo é: Transtorno do Espectro Autista. Apresenta um histórico de portador de sequelas da encefalopatia hipóxico-isquemica perinatal com atraso do desenvolvimento neuropsicomotor, epilepsia refratária e distúrbio de comportamento com características do espectro autista. Das Percebeu-se no contato com ele, que apresenta um comprometimento no comportamento social, um retardo da aquisição da linguagem e alguns padrões repetitivos de comportamento, sendo extremamente dependente dos pais. Fora do PQVT, Juan fez natação por alguns anos, faz atendimento com Neurologista e estuda em uma escola estadual de ensino regular.   

Quando o mesmo chegou ao projeto, em fevereiro de 2020, apresentou-se  insociável   e aparentou ser uma criança muito complexa de lidar, uma vez que, no primeiro momento, quando tentávamos (eu e os outros extensionistas, inclusive de outras áreas como fisioterapia, fonoaudiologia e psicologia) estabelecer um contato, ele esperneava e sempre queria o pai. A princípio eu pensava que não seria capaz, mas com auxílio dos demais estagiários/extensionistas, da coordenadora do Projeto e do diálogo com os pais, Juan e eu fomos nos adaptando.  

Durante os atendimentos presenciais, algumas ações foram sendo tomadas para promover nossa aproximação e fazer as aulas fluírem de uma forma melhor. Passamos a tentar identificar os interesses do aluno, ou seja, o que poderia o motivar, usando sempre a ludicidade. Descobrimos a importância de se estabelecer uma rotina quando falamos em atendimentos a pessoas com TEA e de sempre manter diálogo com a família.  

Na piscina, algumas atividades realizadas eram: mergulhos com objetos, como argolas - dávamos algumas argolas para Juan e ele tinha que arremessar no fundo da piscina, depois buscá-las, e também com bambolês - dois estagiários seguravam no fundo da piscina e Juan tinha que passar por dentro dos bambolês. Outro exercício, era com uma trave de gol e uma bola de futebol - colocávamos a trave a uma distância de aproximadamente um metro e meio do Juan, ele tinha que jogar a bola e fazer um gol, depois ir buscá-la nadando Crawl. Deixávamos também que ele nadasse de forma livre em um período da aula, visto que, percebemos que ele não gostava de muito contato físico e seria motivante dar esse momento de autonomia na piscina a ele.  

Esses atendimentos presenciais foram por pouco tempo, pois chegou a quarentena, devido a pandemia Covid 19 e a partir do dia 16 de março de 2020, as atividades no projeto foram interrompidas. No dia 21 de abril de 2020, foi informado que o projeto voltaria a funcionar, porém de maneira remota. Nesse momento, dúvidas e inseguranças apareceram, como: como continuar? O projeto é na piscina, como fazê-lo agora? Mas as memórias de quando estávamos in loco no projeto, vieram, pois, quando os alunos não podiam entrar na piscina por motivos diversos, fazíamos atividades fora da piscina.  

Após reuniões e planejamentos entre os extensionistas, a coordenação do projeto e os pais, no dia 05 de maio de 2020, aconteceu a primeira conferência com Juan e, após essa, outras nos dias 12/05, 19/05, 26/05, 28/05, 02/06 e 09/06. 

As intervenções nesse período foram mais difíceis, pois, as alterações na rotina do Juan, devido à Pandemia, o deixaram muito agitado e nervoso, inclusive em vários dias de atendimento, o aluno não queria aparecer na videoconferência. O estado emocional do filho, desencadeou também mais estresse nos pais, que relataram mais de uma vez que não estava sendo um momento fácil.  

Além disso, no projeto de forma presencial contávamos com uma estrutura física e material diversa, já nas aulas virtuais, existia a limitação do espaço e instrumentos disponíveis para os atendimentos. Outro importuno, era quando a conexão com a internet estava instável.  

Diante desse contexto, desenvolvemos a nossa empatia e tivemos que exercitar nossa criatividade, para conseguirmos atrair e prender a atenção de Juan nos atendimentos. Pensando nisso, uma ferramenta importante foi a música, identificamos as que ele mais gostava - “Estátua”, “5 patinhos”, “Pai Francisco”, “Soco, soco”, dentre outras - e sempre as usávamos quando necessário, para ajudar na motivação. 

Além de cantar e dançar com Juan, outras atividades realizadas de forma remota foram: batata quente, “Cócegas do personagem favorito” (o pai vestiu de pirata e a mãe de bruxa, fizeram cócegas no Juan e iam estimulando que ele falasse a palavra “Cócegas” e indicasse em qual parte do corpo ele queria), produção do brinquedo “jogo da velha”, “Adivinha o som” (o aluno tinha que identificar o som de coisas, animais e outros), dentre outras atividades.  

No dia 09/06/2020, aconteceu a festa Junina com todos os alunos e Juan ficou bastante empolgado. A festa foi muito boa, mesmo com as dificuldades de conexão com o aplicativo, que nesse momento foi o Google Meet, e assim, finalizamos o primeiro semestre de 2020. 

Atualmente, recém formada, percebo a importância do PQVT na minha vida. A partir dessa experiência de oferecer atendimento as PCD de forma presencial e remota e no meu contato com o Juan, os aprendizados foram diversos. Primeiramente, refleti que é muito importante que saibamos que existe uma legislação que ampara as PCD e institui o direito à inclusão e a atendimentos de qualidade em diferentes âmbitos, como educação, saúde e lazer.  

Foi possível também, entender mais sobre o autismo e suas manifestações, (re)construir conceitos sobre esse transtorno e minimizar minha insegurança para atuar com esse público. Percebi que, para isso, além da busca de conhecimento na literatura científica, é muito importante o diálogo com a família e com o próprio aluno quando possível, na tentativa de identificar os gostos, especificidades, demandas, estado emocional e rotina desse aluno. E é indispensável reconhecermos que os processos de adaptação são individuais, e cabe a nós profissionais, respeitarmos o de cada pessoa, agindo sempre com empatia.  

Reafirmei a importância de planejamentos bem elaborados, percebi que o uso da ludicidade e da música podem ser uma excelente ferramenta para auxiliar na motivação do aluno, e que é fundamental em um profissional, a criatividade e capacidade de reinvenção de suas práticas.  

Percebi a satisfação das famílias dos beneficiários, mesmo com as dificuldades que ocorreram em realizar as aulas remotas, verificando a importância do projeto para os participantes e, consequentemente, a necessidade de profissionais envolvidos para atuarem nele. 

(Para conhecer mais sobre o Projeto Qualidade de Vida para Todos, acesse: Instagram > pqvt_pucminas , Facebook > @ProjetoQualidadeDeVidaParaTodos) 
 

 


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