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Imbróglio

Imbróglio
Evandro Gomes Meneses Filho
set. 29 - 7 min de leitura
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Não sei se foi por causa do intrépido Dom Quixote, ou se foi porque Cide Benengeli reivindicou os seus feitos, mas, juntando a coragem, a loucura e a esperteza também fui atraído para uma curiosa cruzada. Bom que saibam o quanto um escriba razoável vale nesses tempos! Posso assegurar que do a ao z muitas coisas acontecem: o gás acaba, o dente doí e até o lápis parece não querer deslizar direito sobre a folha em branco. É sempre um baita sufoco e um vizinho barulhento! No entanto, se você pudesse perguntar a Bram Stoker qual era a sua maior compulsão na vida, garanto que ele diria não poder evitar o trabalho dos correios e os telegramas meio confusos do Dr. Van Helsing. Quem sabe nunca tivéssemos conhecido o Drácula numa época com tantos celulares! Também, graças à eletricidade pôde-se ressuscitar Mary Shelley, e hoje ela vive numa boa e é uma grande fã de heavy metal e dos filmes de George Romero. Então, por isso escrevinhadores escrevem e é desse jeito que são relatados e, noutras vezes, circunstâncias miraculosas são criadas. Não dá para saber direito em qual ponto da vida de alguém a literatura meteu o bedelho. Aliás, é provável que o nome daquele ou daquela criança tenha vindo das páginas de algum romance cafona demais. Na minha casa, houve um fato interessante: havia poucos livros disponíveis, na verdade só existia um sobre ervas medicinais e outro – pasmem – chamado: “Tio Silas e as regras da etiqueta”. Nunca soubemos bem como um compêndio da mais alta educação fora parar na nossa caverna de ogros. Arrotávamos após o almoço e na janta conseguíamos a proeza duma escuta atenta tomando chá como autênticos arautos da realeza suburbana. Na época, minha mãe não deixava nada a dever a nenhuma bruxa quanto a emplastros ou remédios para cólica. Apesar dos esforços, passei mais tempo do que gostaria assistindo tv e ouvindo o trítono do diabo. Na verdade, ainda não percebia o que sei agora: histórias que mudam a sua vida, às vezes, estão sendo contadas na fila do pão. E os imortais, nalgumas situações, são pessoas tão comuns quanto eu e você. Estão por aí coçando a bunda ou tirando catota do nariz. Literatura é coisa séria! – é o que dizem, mas não sei não. Talvez, nunca tenham lido “Suflê de Chuchu” ou não tenham topado com Rimbaud numa roda punk. É divertidíssimo! Se nas canções da Terra-média houvessem “Ooh, baby!” suficientes, talvez Tolkien entrasse para o Led Zeppelin... Claro, coisas medonhas permeiam histórias desde sempre. Num quarto qualquer um homem se metamorfoseia num inseto monstruoso e, em algum recôncavo poeirento, a gênesis é tão tresloucada quanto na misteriosa Macondo. Desse jeito, a literatura é capaz de nos fazer jurar que é possível logo aquilo que não é provável. Pensando direito, foi em tal e tal ocasião que comecei a ilustrar quadrinhos nas folhas do caderno. Para pouco nem foi preciso tanto, e duma vez relacionei Asimov ao funcionamento histriônico do aspirador de pó e ao liquidificador ululante. Do mesmo jeito havia outros eletrodomésticos muito suspeitos... Estava contrariado, tinha a cara mais enjoada que a da Clarice Lispector, mas não é disso que trata a leitura quando nos abalroa? Fui tomado por vários círculos e fui servo obstinado de todos, se é possível. Conheci Machado de Assis (o bruxo) e me embasbaquei com um grande poeta russo. Pichava muros e andava por aí tão tranquilo quanto um velho-moço beatnik. Escondia Kerouac no maço e Burroughs no fundo do copo. Enfim, eram essas coisas que eu pensava, enquanto esquentava a janta do meu avô. Daí, deram-me uma bofetada que não conseguiu surtir o efeito desejado. Uma fatia generosa de Nietzsche bem empelotado veio parar na minha mesa. Para o mau signo com tristes ascendentes, infelizmente peguei-me rindo pensando naquele bigode tingido de acaju. Aliás, se tivessem apresentado uma boa tintura a Nietzsche, e ele tivesse pintado duma vez os pelos do buço, tudo estaria resolvido. Ninguém ia matar Deus ou ficar enciumado com o super-homem. Sem catástrofes, nem crises. Não é que ele não tenha coração! Por debaixo daquele bigode áspero e carrancudo, o sujeito sorria encantado com lábios de Mona Lisa. Já eu, como um monstro de escuridão e rutilância, feito o monólogo de uma sombra, puxei contas e não tive outra escolha senão entre o feijão e o sonho. Fui lubridiado pelo sonho e tornei-me quase que pedinte de feijão. Contudo, deve ser um tal masoquismo besta. A literatura, os livros, as crônicas, contos e poesias vêm e vão e parecem mania de doido varrido falando a sós coisas que vai escrever para todo mundo ler. É como pintar um autorretrato do joelho!  Eu já disse, ninguém chegou até aqui enganado por mim: essa coisa não tem rumo, nem fim nem começo – cabeça ou rabo – e agora, pensando direito, para que façam a mínima ideia, imaginem um cachorro coiceando o próprio o focinho. Pronto! Num resumo estabanado, ouvir o que alguém escreve muda a gente ainda na barriga da mãe, antes mesmo de saber ler, de soletrar e escrever com a letra torta. Antes ainda muda os pensamentos, os sonhos, as expectativas, os enleios, as bulas. Quase na falta do tempo e do espaço, muda alguma coisa que não conseguimos colocar nos livros. Se você chegou até aqui meio por acaso, pense bem. Houve uns tropeços, quem sabe estivesse reclamando e coçando-se um bocado nervoso... Finalmente, você chegou firme e forte, derrubou os moinhos de vento e de algum jeito parece mais iluminado do que antes. Há quem diga que é o seu lado mais fotogênico, mas não importa. Agora, lembre-se da primeira vez que virou uma página e quando veio a seguinte e a seguinte e mais outra. Foi aí, em que lançara o tal olhar 43... Quero dizer..., o tal olhar inteligente sobre si mesmo após 4.796 caracteres, 992 palavras e 76 linhas que continuam mudando tudo.


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