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Guerra Inglória (Textão de Facebook)

Guerra Inglória (Textão de Facebook)
Claudio Carvalho
jul. 19 - 76 min de leitura
010

De repente, tudo pode acabar numa vala comum. Morto por um inimigo invisível, minúsculo e quase nada, nenhum, como um resfriado. E você e eu podemos morrer afogados como peixes fora de seus aquários. Dois otários cada um lutando por seu respirador.

            E não será caçando um javali ou um mamute pela glória e sangue da tribo. Será comprando papel higiênico no mercado, cuspido por um atendente que veio pendurado num trem ou no ônibus lotado lá do meio da puta que o pariu e que de fato, em quem de fato, você nunca notou.

            Assim começo o meu romance, escrito no Facebook. Mas um de meus poemas que você nunca notou. Mas uma de minhas histórias que você, professor, resolveu ignorar, como se eu fosse seu inimigo e fosse roubar a sua, ou fosse roubar a sua possibilidade de contar também as suas histórias. Mas, essa história é minha, seu filha da puta. É minha porque pode não ser meu o seu respirador do hospital caro, que eu, ou os meus impostos, paguei, pagamos, porque a essa altura eu não tenho mais tempo de pensar no sujeito com o qual o verbo concorda. Concorda? Senhor professor doutor, concorda senhor amigo do editor ou do curador? Seu belíssimo filho de uma puta! Não se preocupe, eu também sou. E terei a dignidade, sempre tive, de não posar de vítima e nem de justiceiro financiado pelo Partido ou apartado pela tribo, pelo sindicato e pela identidade que me permite que eu seja o fela da puta a ser privilegiado e possa chorar minhas mágoas no lugar da sua. E muito menos o artista engajado, engasgado, fingindo culpa e chorando contra Mises e a favor de Marx em nome de um proletariado que eu nunca vi mais idealizado. Cagando Butter e outras margarinas e identidades em nome da conveniência como se caga Jesus em nome da arte ou do Templo. Eu, o filho de papai, criado a Toddynho, herói sozinho, não serei bombardeado pela matilha de aviões do Barão Vermelho, nem destroçado pelas tropas de Hitler e dos EUA e do Stálin. Nem a bomba atômica! Será um vírus que fugiu de um labirinto de um laboratório em busca de fazer mais fortuna.

            Será que continua? Será que continuo? Será que você irá ler? Pouco importa. Quando eu era criança, eu tive uma febre. Passou? Passaram a febre e a infância. Passaram? Pouco importa. Pouco importam. Dá cá o meu respirador, o meu emprego, o meu lugar na história...

            Dá cá, ao menos, a minha história ou meu direito de contar. E, se puder, pague um preço por lê-la. Eu tenho fome e preciso de um abraço, de transporte, de um respirador, de um quarto sem fedor de esgoto, sem a porra do tiro e do funk ou do hino desesperado do crente do meu lado. Eu precisei tanto trabalhar menos pra escrever e dizer, finalmente, o que estou dizendo. E você nem aí, enfiado em vida na vala comum em que talvez vá ser enfiado em morte.

            Quer saber, fiquei com vontade de dizer, enfia a sua curtida no mesmo lugar em que você guarda a fotografia que tira e que nem nem, a música romântica ou animada que você nem ouve - e que nem houve porque você nem viu.

            Isto não é um textão de Facebook. É um romance que nem tem esse título aí de cima. É uma coisa qualquer que vou continuar até a vala comum e que caiu por acaso nesta vala comum daqui.

            Vou fazer meu café. Eu amo café. “Enquanto a vida me conceder continuarei fumando...” E eu gosto um pouco mais de você se compreendeu a referência. Mas, continuo mandando enfiar o clique no rabo.

            Quando eu era criança, eu tive uma febre. Essa frase me emociona como uma estranha Gymnopédies, de Satie. Dá tristeza e alegria. A febre deve ter dado uma onda qualquer. Um pavor quase prazer. E uma perspectiva lenta das coisas. Amo essa sensação.

            Acho que é minha primeira lembrança da infância. Ao menos, a mais nítida delas. Eu-criança saindo de meu quarto (que eu dividia com meu ir, hoje morto), indo em direção ao banheiro. A febre me causando a alegre tristeza, delírio hiper-realista, que se parece muito com a sensação da poesia quando quer se aproximar. Lembro do medo que tive de cruzar corredor e sala escuras, iluminados apenas pela luzinha vermelha do Sagrado Coração de Jesus. E do sentimento ambíguo, de pavor reverente, que eu tinha diante daquele quadro. Lembro de chegar ao banheiro, acender a luz e do brilho mágico, lisérgico, dos azulejos muito brancos. Recordo-me do desfalecimento. E de ser amparado pelo abraço de meu pai. Será que eu iria cair? Ele me levou até o vaso. Levantou a tampa. Depois, me levou até a cama dele com a mamãe. E eu dormi entre eles. Além da onda lisérgica, essa é também uma lembrança de amor. Eu não sabia. Descobrimos isso agora juntos, leitor hipócrita (se pegou também essa referência, há uma grande chance de eu gostar de você, mas, não vá se assanhando...).

            Dizem que meu pai, na juventude, era bem brigão e violento. O homem que conheci era longe disso. Tive um pai, tivemos, eu e meus irmãos, muito amoroso. Nada daquele pai patrão do discurso identitário contra o patriarcado e nada do líder temido da horda que deveria ser morto, do Freud. Ele só temia demais por nós. Tinha medo. E como era místico, “espiritualista”, dizia, tinha uns medos estranhos de seres invisíveis.

            Bem, nós também, agora, né? Queiramos ou não, uns mais outros menos, todos estamos tomados por medos estranhos de seres invisíveis. Dos vírus até milhares de conspirações.

            Antes, a morte poderia vir da maldição dos deuses ou dos demônios, depois, viria talvez das legiões de inimigos além de nossas fronteiras e aquém de nossos deuses. Mais tarde, eram as bombas dos aviões dos inimigos.

            Antes, a morte poderia explodir espetacularmente atômica. Agora, pode nascer de um simples espirro ou de um abraço...

            E eis que hoje eu chutei o balde! Goodbye by Blue Sky! Mais uma referência aí. E não me venham com a live babaca do cantor bonzinho e do comediante sem graça, orquestras do Titanic. Você não vê que a coisa toda é mais que vírus, é mais que a besta do presidente, a porra da oposição, a merda da recessão?

            Não. Não vou comentar, não vou corrigir, não vou fingir no Zoom que está tudo bem. Não está! E não vou parar de escrever!

            Sobretudo porque é uma insanidade. Porque só a insanidade nos salvará da vala comum e da luta inglória pelo respirador. Porque só a insanidade nos salvará do rolo compressor e da tola ilusão iluminista de sermos sãos. Não somos sãos. Somos loucos e com todo direito a sê-lo. Só Deus e o amor, não é Riobaldo?, são um descanso NA loucura. Mas, Deus e o amor ou são fáceis ou impossíveis. Deus não está somente na reza e nem somente nas Igrejas. De fato, pode estar muito longe de tudo isso. E o amor não está nos objetos de amor. Estão talvez em tudo que perdemos. Mas o que estou fazendo? Eu não sei também não sei onde estão. E temos que procurar todo dia. Todo dia com bravura, silêncio e persistência. Não, não está tudo bem. Há sempre pouca luz e muita sombra. Há sempre muita morte e a luta pela melhor assistência médica. Há esmoreça vala comum do dia-a-dia. E é preciso procurar.

            Não, não me deixe agora! Como muita gente me deixou! Como eu deixei muita gente! Como você pode ir? Não vê o quanto eu preciso de você? E por isso, eu odeio!

            Não, não posso prometer que vou continuar. Sejamos francos, você muito menos. São tempos de fragilidades.

            De fato, eu não preciso tanto de você quanto eu disse antes. De fato, eu nem sei quem é você. Se você será justamente quem irá entrar na minha frente se eu precisar de um respirador ou um pedaço de pão. Se você roubou o futuro de alguém. Se você sequer ainda é humano ou deu o salto evolutivo previsto pelo Ionesco e se tornou um paquiderme de grossa epiderme, um verme de pança grande e muitas grades cercando seu condomínio, alguém que preteriu o amor e preferiu o controle e o domínio, um burocrata que administra esse cotidiano assassínio cínico dessa diária esculhambação e pandemônio, um gourmet literário de meu sofrimento fingido de escritor otário...

            Mas, toda moeda tem dois lados. Eu também não ligo pra você o suficiente para odiar. Eu odeio e amo aqui em abstrato e só continuo escrevendo pelo prazer exato de fazer algo completamente inútil e perverso. Algo assim como aquele verso que ela nem quis ler. Querela inútil, aquarela borrada, merda arrogantemente mal cagada, loucura de romance de Facebook. O nome do refrão é perverso, é a mais pura e santa perversão. Só a santidade de um verso inútil é perfeitamente perversa e avessa a toda essa babaquice escolar, platônica-comunista, em torno da utilidade ou função da arte. A única função da arte é ser a mais pura e perfeita perversão. E, se esta for a regra derradeira, perverter também a perversão permitida. Não se perca. Porque eu já o fiz faz tempo. E tudo o que não quero é ser da companhia.
            Eu já quis agradar. Mãe, será que eles vão gostar? Mãe, é assim que se faz? Mãe, é pouco ou demais?

            Você, então, entende que não é só o sexo que eu fui buscar na mulher e no lar. Fui buscar um útero pra voltar. Porque um útero não é a vala comum em que arriscamos parar. Cada útero foi um porto único do qual nos arriscamos, contra a vontade é claro, a partir.

            Sempre que se iniciava a viagem, de fato, o
que buscamos é voltar. Voltar é a função de todo viajar. Mas, são tempos de fragilidades. Quem garante que você irá voltar?

            Salvar! Salvar alterações. Perdi um trecho imenso. Escrevi e corrigi, “imanso”. Adorei a palavra que inventei sem querer. Era mesmo um texto imanso. Porque imanso não é tenso. É imensamente não manso.

            Salvar alterações porque nem eu nem você podemos garantir em salvar a nós próprios e nem aos nossos. Desculpe a crueldade. Ela me aquece os ossos.

            Estranho esse negócio de andar de máscara. Na verdade, todo mundo sempre andou de máscara. Inclusive, você. Seja você quem for. Achei isso um clichê e um plágio do Descartes do caralho. E logo do Descartes! Mas vai ter que continuar porque eu prometi não fazer descartes. Que trocadilho merda do caralho, meu Deus! Mas pense, pelo que você está me pagando. Só quem lucra aqui é a banca: o Zuckerberg. É assim mesmo que se escreve?

            Claro que não, não é assim que se escreve. Se isso aqui é um romance, e é, deveria ter um roteiro, um plano de voo qualquer. Um público-alvo, perfil psicológico dos personagens planos e densos. Eu deveria ser um jornalista ou um filósofo, da USP, de preferência, e ter uma pauta à esquerda, de preferência, mas de direita, hoje em dia, até servia. Deveria falar coisas exóticas sobre a Sérvia ou a Turquia. Deveria ser filho de alguém, além de um filho da puta, nascido no cu do mundo e candidato à vala comum. Deveria frequentar o Parque Laje e convidar intelectuais promissores pra fumarem um back na minha varanda, deveria dançar ciranda revolucionária na Praça São Salvador ou morrer de amor por alguém de chinelos e vestido descolado da Vila Madalena. Deveria não ter estar escrevendo isso aqui no celular, às três da manhã, sem vontade de parar, mas, sem querer acordar.

            Sejamos claros: não há promessas ou esperanças entre nós e para nós. Somos nós provisórios atados pelo COVID-19 e temendo a ratoeira invisível de Deus ou do PC Chinês enquanto saímos pra comprar álcool em gel.

            E não tiraremos nossas máscaras. Nem
Mesmo esta que já ficou pregada à cara, meu caro, minha cara, que me lê de graça e que, se me visse na praça, nem me cumprimentaria.

            Caro carreirista dos bons contatos e da má poesia. Por favor, não me leia e nem me inveje. Não me odeie por eu escrever com tanta liberdade. Esse texto da vala comum se caracteriza por sua fiel e crua e cruel inutilidade.

            Professor universitário babaca, de Letras, meu Deus, de Letras, não vá aqui me cagar tradução intersemiótica, me falar em Foucault e Deleuze. Essa beleza é de um louco inútil que nasceu em um lugar onde a análise de discurso nunca se atreveu a frequentar. E digo isso sem mágoa nenhuma, só por causa da insônia provocada talvez pela imagem das covas rasas e dos caixões, como caixotes, exibidos pelos bravos jornalistas de tv.

            Não é assim que se escreve, eu sei, romance de Facebook, escrito no celular, direto como um bom jab, sem jabá ou esperança, direto nos seus cornos ou na sua pança, querida linda criança. Imansa ignorância de quem não tem sono e nem fastio. Sacou, tio? Sou eu que sempre cozinhei sua comida, falando aqui. Eu dos quais vocês escolhem um ou dois, no máximo, pra justificarem as boas intenções do Partido. Eu que me esqueci como se escreve, mas, toco bem de ouvido. Eu que li no banco de trás do ônibus quando dava pra sentar.

            Não, bobo. Não sou eu exatamente. É que eu posso ser qualquer um e dizer qualquer merda nesse texto demente. Não, não é assim que se escreve, Zuckerberg. Mas, um grande sábio me ensinou, há muito tempo, a palavra mágica: foda-se. Versão romântica da Mother Mary: Let It Be.

            Mas, não espere que eu vá dar a todos as mãozinhas e dançar. Eu já disse: pode ser você o corno ou a corna que irá roubar de mim o respirador. E faz tempo que já roubou de mim, do menino que fui, o ar.

            Você não pensa que o único problema é essa nova CORONA de espinhos em nossas cabeças de santinhos, né?

            Vem cá, pra que você tira tanta foto que sequer vê? Pra que tanto livro que não lê? E tanto que lê e não se entende? E tanto entende que não me explica e nem me convence? É tanta canção de amor no seu rádio e tão pouco amor na estação do trem ou do BRT? Diga-me, então, quem é você e o que quer? Mas, sem, por favor, tirar a máscara. Algum de nós aguentaria o pavor?

            Aonde isto vai dar? Vai ficar onde está e, mais cedo ou mais tarde, na precariedade, no vazio, no arrepio dos ossos, na vala comum. Tomara que eu não esteja no jornal da Globo News! Tomara, meu Deus, tomara!


            No meio do caos, sem barco, mar e sem cais, o mundo político do país vive uma turbulência inimaginável. Estamos sem governo e sob o risco de ações que ferem a nossa frágil democracia. Mas, eu não vou falar de política, não vou falar de política. Não aqui, em meu texto de fértil insanidade. Vou falar muito desse nosso fétido lixo. Mas não aqui. Não aqui! É sim vala comum, mas preserva um pouco certa dignidade. Aqui, minha vida é outra, oceano, abismo, de minha, de nossa, Minha Nossa, fértil e santa absurdidade. Toda convicção cessa. E tudo o que avança se cansa diante de outra urgência que não seja, não a morte, mas a nossa fugacidade. Entendeu? Encontre aí fora o que eu acho disso tudo. Aqui, eu só me perco e não acho nada.

            Feche os olhos. Respire fundo. A morte sempre caiu do azul, como a canção do Lulu que entra pela sua janela vinda do apartamento do apartado vizinho. Entra como um vírus. Mas respire. Feche os olhos. Não pire. Respire. Que eu já pirei. Mas faz tempo. O que tenho agora é liberdade de ser.

            Respire. Você é louco? Por que você é louco? Eu sou. Esse é um pedaço de uma peça de teatro de um amigo: O Candelabro. Nada mais belo e mais inútil que um candelabro. Eu sou louco e nunca fui tão livre para sê-lo. Feche os olhos. Respire fundo. O que eu digo aqui é superficial ou profundo? Pouco importa. É humano. É humanamente contaminado, imansamente imundo. É pouco importa se foram os modernos que inventaram os exércitos, a humanidade, a história universal e os ternos: exatamente nessa ordem.

            A gente fazia teatro com tanto amor. De fato, eu nem sei como tudo começou. Respire. Eu não posso, de fato, os burocratas sempre inventam milhões de regras para cagar, e vivem fingindo, para não encararem os próprios (ou impróprios) abismos das próprias (ou perdidas) almas, não se perca, vivem os burocratas fingindo que estão a trabalhar. Então, eu não posso, se calhar, como dizem os lusitanos, ficar aqui livre escrevendo essas insanidades por anos. Respire. Aproveite esse privilégio enquanto pode. O inimigo, mas, também o ar estão lutando entre si em seu cotidiano e simplório ato respiratório.
Eu nem sei como começou... Teatro. Lembro que jogava futebol. Sempre amei esporte coletivo...

            Respire. Não se perca. Nas consciências e nos discursos e nos fios dos tecidos, há sempre pontas a amarrar: essa é uma coisa que me ensinou o escrever. Então, pois, os burocratas inventam mil reuniões no Zoom, em outras redes, instrumentos que usamos para afogar os peixes, não soltam nunca seus feixes fétidos de deveres, e tome correções de teses que ninguém vai ler...

            Não. Eu não tenho direito pleno à vida, a não ser talvez na semana da solidão extrema do respirador, se eu vencer com que me disputar o ar... Mas, selvagem, eu roubo o tempo que sempre roubei dos burocratas, de esquerda e de direita, e vou escrever inutilidades e lembrar do teatro que fazia. Acho que amarrei algumas pontas. Não se perca. Respire. Aproveite enquanto pode. Eu posso... Eu posso lembrar. Gostava de jogar futebol...

            Como eu era, na juventude de escola? Bom aluno. Mas meio ausente. Meio autista. Nunca gostei, de fato, muito de gente estranha.

            Uns achavam que eu era metido. Outros que eu era tímido. Minha mãe tinha um diagnóstico mais próximo: eu era “sonso”. É uma leitura possível. Mas, não exata. Sonso é aquele que se faz de palerma, que finge de inocente, que é dissimulado. Em linguajar mineiro: santo do pau oco. Mas, eu sei que pareço ser muito inteligente para assuntos, digamos, abstratos/estudantis/argumentativos. E tenho até uma surpreendente leitura das situações e das pessoas. Mas, indeed (não é mero anglicismo ou uso babaca do inglês, no qual nem sou tão bom, mas, a algo na entonação de indeed, talvez, somente a lembrança de um filme, que é mais do que “de fato), indeed, eu posso ser realmente simplório, palerma e não é mera dissimulação. Posso ser tímido, muito tímido, também, sobretudo porque eu não gosto de gente estranha. E todo mundo pode ser estranho: seu amor, seu pai, seu filho, sua mãe... A coisa que mais me causa estranheza no fim de um relacionamento é como, de repente, não mais que de repente (vai, essa referência é facílima, procure, você não vai querer que eu o/a ache um imbecil, né?), aquela pessoa ao lado da qual você dormiu sem medo de ser apunhalado pelas costas, depois que do riso fez-se o pranto, se torna uma completa desconhecida. Sempre estranhei reencontrar e não mais os mesmos olhos, o fundo, os mesmos gestos, as mesmas metáforas. Por exemplo, um dia, eu tinha que ir à cidade de Campinas, e esse meu amigo, autor de O Candelabro, morava lá. Nos afastamos com uns certos desentendimentos. Mas, nenhuma briga. Eu cogitei em visita-lo. E percebi que houve da parte dele uma resistência. Estranhei. Mas, vida que segue. Pouco depois, recebo pelo WhatsApp, uma mensagem toda paranoica relativa ao segundo turno da eleição de 2018, que, para mim, prenunciava o desastre que se confirmou. Mas, no meu modo de ver, o desastre estava dado, fosse qual fosse o resultado. Pode ser que, no fim do filme, Deus escreva um genial plot twist e levantemos voo com o impulso da ladeira que estamos descendo a 300 km/h. Mas, não quero falar de política. Não há saída política para o que nos tornamos culturalmente e espiritualmente. Não quero falar de política. Também não sei qual a saída e nem se há, indeed , uma saída. Eu “só sei que não vou por aí”. Alerta de referência! Mas, o que me doeu, mais do que o país, foi a mensagem de conscientização política que recebi do autor de O Candelabro. É estranho, entende? Se fosse uma mensagem do outo lado, eu estranharia do mesmo jeito. Como a política, no sentido medíocre e espetacularizado que a vivemos, é um lixo. Adeus, mundo cruel. Só a crueldade de um texto, como a ação corrosiva de um ácido, pode romper as pregas desse tecido necrosado. Ei, você, escondido atrás de seu muro e de suas ideias, você pode me tocar? Eu, viajando, estou apenas tentando voltar para casa. Talvez, eu esteja tentando voltar para a casa que nunca tivemos, mas, podemos ter. O muro de suas ideias sobre mim é assim tão alto? Talvez, eu esteja apenas tentando encontrar você. Mas, aviso: eu não gosto de gente estranha. Você pode me ajudar? Tente não ser um estranho. Para começar, não tente mudar minhas ideias. O que eu penso, o que você pensa, o que pensamos, pouco importa. Importa é abrir a porta quando percebo que você quer passar. Você quer passar? Você precisa viver, gritar, rir, chorar? Se você me der um sorriso sincero, eu até cedo a minha vez no respirador para você. Mas, não tente ganhar meu voto. Formador de opinião de cu é rola. Você, nem que queira, pode criar uma nova cor dentro do espectro visível da luz. Assim, cada pessoa é uma cor. Até mesmo essa que escreve um texto babaca como essas medíocres linhas antecedidas de “formação de opinião de cu é rola”.

            Mas, não se perca, não se enrola... Teatro, futebol...

            Lembra? Eu lembrei da frase “você é louco”? O que eu ia fazer era lembrar de minha transição do futebol para o teatro. Foi algo assim: o futebol me integrava a outras pessoas, mas, eu nem precisava conversar muito com elas. Eu não era nem fisicamente e nem tecnicamente especial. Mas, jogava o suficiente para ser útil aos times de várzea de meninos. Então, como era hábito nos subúrbios, nos fins de semana, sempre passava a Kombi ou o ônibus pirata e alguém batia no portão e avisava que tinha jogo. Havia também os “jogos de campeonato”. Aí a gente tinha (a “gentetinha” é tão bonitinho, né?) inscrição de “atleta federado” e o caralho. Mas, eu gostava mais dos amistosos. Porém, meus companheiros de time iam batucando, zoando, como dizem hoje, berrando e fingindo uma animação desproporcional à pobreza daquilo tudo. Eu arranjava um lugar na janela. Conversava estritamente com o necessário. Fingia não ouvir a “música”. Acho que alguns me achavam metido, outros, estranho ou sério ou.... Não importava.

            Porém, eu fui percebendo que eu precisava, ao menos, fingir que me importava e que a interação humana existente na sala de aula e no futebol não eram o suficiente. Além do mais, estava na idade em que a gente começa a despertar o interesse pelas menininhas. Eu era pobre, não era atlético. Precisava ativar à função “áudio”, já que o “vídeo” não me favorecia. E eu gostava muito de ler e de pensar e de ouvir umas músicas esquisitíssimas: Kraftwerk, Emerson, Lake & Palmer, Yes, Pink Floyd, mas, Também Led Zeppelin, Jimi Hendrix, a fase dos Beatles mais lisérgica...  Daí à música clássica, erudita e experimental... Como eu cheguei aos livros e a isso, não vem ao caso, agora. E eu também não sei direito. Dá a impressão que eu era um menino nerd de classe média. Mas, minha família era bem fodida de grana. Como eu desenvolvi essa espécie de aculturação que, a um só tempo, foi minha salvação, por enquanto, da vala comum, e causadora de meus mais dolorosos sofrimentos, não vem ao caso.

            O que dizia é que fui percebendo que precisava interagir e me comunicar de forma mais eficiente. Se não, não tinha grana e eu não comeria ninguém. Um dia, eu li não sei aonde o anúncio: Grupo de Teatro       Jovem precisa de atores amadores para a encenação de uma peça infantil (não vou dizer o nome porque é ridículo demais e pode ser que o autor ou ser herdeiros saibam dessa minha loucura no Facebook) e uma peça adulta (título ainda por). Teatro...  Eu pensei: remédio amargo, porém, necessário.

            Fui à tal audição. De fato, eu era o único candidato e, para minha surpresa, fui aprovado. Infelizmente, para fazer o infantil. Embora, sem saber no início porque, eu fui ficando. E amando aquilo tudo. Em primeiro lugar, mesmo que eu não tivesse grande talento para a atuação, especificamente, meus conhecimentos de leituras e rock e clássicos eram muito bem vistos e valorizados naquele meio.

            Segundo, quase todo mundo era tão ou mais esquisito do que eu. De fato, naquele meio de marginais, suicidas, narcísicos, histéricas, lésbicas, bichas, drogados, revolucionários sem causa, eu era até normalíssimo. E eu, que tinha um mundo interior muito conturbado, aprendi a “colocar o canhão para fora”. Eu, de fato, repetia isso como um mantra: “colocar o canhão para fora”. Significava, não explodir por dentro como eu fazia. Dizer, expressar, viver no corpo e não só na mente. Nunca fui ator. Nunca quis ser ator. Nem gosto muito de assistir. Mas, amo teatro. Minha primeira religião foi o catolicismo popular e o “espiritualismo” de meu pai. Minha segunda foi “teatro”. De fato, o teatro me levou a escrever, a fazer letra de música, a ter parceiros, a ter namoradas... O teatro me apresentou à poesia.

            Pena que o mundo-cão me obrigou a trabalhar e a estudar. Só agora pudemos parar aqui recolhidos e diante de nossa mortalidade, da fugacidade de todas as coisas, da luta pela sobrevivência. Eu nunca havia entendido o que Sartre (é bom que se diga que o estou citando, mas, sou do team Camus, e detesto a pessoa de Jean-Paul Sartre, que não calhou de ser professor do Pol Pot por acaso. Deus é um grande roteirista.), mas, eu nunca havia entendido o que o Sartre havia dito sobre o fato do povo francês nunca ter sido tão livre como o foi durante a ocupação dos nazistas. Aqui estamos capturados pelo inimigo invisível, tendo que fazer nossas escolhas e, eu, nunca fui tão livre.

Quer dizer, eu que também já fui brasileiro (se não pegou mais essa referência, amigo, lamento informar, mas você não leu porra nenhuma, né) ontem fui tremendamente perturbado pela barulheira autodenominada política disso que autodenominamos um país. Gente, não somos! Somos um amontoado de gente tentando viver no mesmo lugar. Desde que nasci, aqui nesse exílio, sinto uma imensa e imansa saudade de meu país. Por isso, talvez, meu país tenha sido a infância, uns livros, certas mulheres (algumas, para lá de incertas , uns filhos dos quais nem sempre pude cuidar tão bem, o teatro, um certo Jesus sem templos e dogmas, músicas, sobretudo barulhentas como Wagner e Led Zeppelin, ou melancólicas como Pink Floyd, ou silenciosas como Pärt...

            Além da porra mal fodida da política, ainda tem uns e umas burocratas que insistem em me lembrar que sou professor. Compreendam: o professor está aqui, gosto muito de sua companhia, aliás, trancado comigo e com minha família e com o cu na mão por causa do COVID-19. Mas, não posso sê-lo no momento. Não posso, por mais que continue precisando almoçar e jantar. Isto porque, aqui, eu preciso escrever. E nem Platão, nem Aristóteles, nem Sartre ou qualquer um pensador ou professor compreendeu que a grande virtude de um escritor é NÃO SABER. Não saber de nada: ocupar esse lugar da dor, do medo, do amor e da ignorância. Por isso, não me encham a paciência. Com conquistas, meu Deus... da Ciência... (re-fe-rên-cia...). Eu sou só. Prefiro estar só e não saber de nada. Nem da próxima frase.

            Meu romance e meu luto foi estuprado por esses putos todos e sua farsa governamental para débil mental. E não se anime achando que estou do seu lado. Todo mundo nesse meio é filho da puta. E eu não sou contra a democracia. Quando jogo futebol, sigo as regras. Quando representava, dizia o texto. Quando escrevo, então, quando escrevo não prego porra nenhuma, nem penso em utilidade social da arte e nem em seu suposto oposto, a arte pela arte. Não é nada disso, idealista, positivista, materialista histérico e diabético, existencialista, estruturalista, pós-estruturalista, desconstrucionista...  Vocês sabem de coisas demais! Vão se foder! Eu não quero saber! Eu não quero saber! Tinha razão o menino daquela piada. Ele ouviu: “Knowledge is power” (Francis Bacon). E entendeu: Knowledge is power, Francis is bacon”. Aqui, nesse universo aqui, Francis is bacon. Homem ou porco, você está certo do que você é? Mulher ou porca? Francis is bacon. Fuck the power!

            Não sei de onde tirei essa ideia. Acho que da ancestralidade indígena da parte mineira de minha família. É assim: quando o organismo adoece é a expressão de que precisamos parar. Um resfriado é um convite para mergulhar um pouco na morte, na preguiça, no oceano daqui de dentro. Por favor, abra seus olhos. Respire e olhe pra dentro. Mesmo que doa. Chega de mentiras! Talvez, seja só uma consequência das viagens destrambelhadas de gentes e capitais volúveis e voláteis pelo mundo. Quem sabe, tudo seja mesmo resultado dessa sopa cósmica de morcego. Tudo randômico e aleatório. Mas, quem sabe seja um planetário convite a dar um tempo, a ter paciência, a parar de tanto abraço e beijo e foda falsa. E, quando for de novo possível, voltar a abraçar e beijar e foder de verdade, com vontade, com saudade, com tesão do fundo da alma e do abismo do útero e da plataforma de lançamento do caralho.

            Eu estou aqui, não sei qual a razão. Você está aí? Então, você não pode parar um pouco? E escrever, costurar, cozinhar, desenhar, meditar, recomeçar.... Desde o começo. Pra que tanta aula à distância, tanta ânsia em continuar o que nem sabemos se terá continuidade, pra você e pra essa invenção que é a história da humanidade?

            Aí onde você está é possível ver o céu? Pois é, lembra da canção do Lulu: a morte cai do azul. E isso é trágico, mas, é lindo, criança. Você está sendo convidado a viver tudo isso. Há quem não possa e se entupa de séries da Netflix, crenças ideológicas em messias de direita e de esquerda, esperanças de salvação nacional contra os comunistas ou redenção em um utópico apocalipse socialista. Puta que o pariu! Essa merda de século XIX não acabará nunca? Ou já acabou? Está acabando? E você tem a chance de fazer a viagem final, mesmo que seja a penúltima viagem antes de morrer afogado como um peixe fora do aquário e ir morar numa cova rasa, abraçado com outros peixes fora d’água. Como era sua própria face debaixo da máscara?

            Hoje, eu tive um sonho. Sonhei que enterravam números, inúmeros números, seria melhor dizer “infinitos”, se você topar entender que o infinito é uma série qualquer e que não é transcendente, justamente por ser uma série. Não se perca. Se não entendeu, pule. Isso é só filosofia. Ou metafísica! E eu já disse, professor, nem mesmo eu, não se atreva a vir com metafísica numa hora dessas. As coisas e as covas estão muitíssimas mais rasas.

            Há quarenta fósforos numa caixa, quatrocentos camelos numa cáfila, trinta e três ilhas em um arquipélago, trinta alunos entediados ou desesperados numa classe, seiscentos mil, setecentos e vinte dois peixes prateados em um cardume, quatrocentos e trinta dois burocratas de um partido em sua alcateia, oitenta e duas suas excelências numa choldra, vinte e cinco palhaços no circo...

            Sabe o que isso quer dizer? O que isso diz? Nada. A porra do aplicativo aqui do Face, no dia de hoje, me diz: casos confirmados no mundo: 2.908.527. 203.332 óbitos. Óbito é o caralho: morte!!! Morte com toda a sua carga simbólica! 824. 002 recuperados. Recuperados? Recuperados do quê? O vírus, a guerra, a injustiça, a precariedade, habitarão para sempre entre nós. Ontem, a minha amada chorou porque perdeu um colega de trabalho, minha filha foi ao mercado e eu fiquei com o toba na mão. 72635648550560504: isto não quer dizer nada. Eu choro e sofro por mim, por você, pelo colega de trabalho, pelo amigo que ontem me mandou um poema sobre as horas confinadas.

            Sonhei que enterravam números inúmeros em covas rasas. Os números morriam descoloridos e sem ar. Logo, ninguém podia mais contar. Ninguém podia mais dizer quanto tempo havia se passado, quantos anos tinha, quando, quando?

            Os números...  Eles não contam nada. Números são verdades e rostos contaminados. Números são rostos mascarados que tentamos controlar. A chuva não molha os números, mas, um dia, molhou o rosto e o cabelo de minha amada, agora, trancada no quarto e com os olhos molhados de lágrimas.

            E você querendo se enganar com suas séries e aulas à distância e canções de amor e lives de artistas e de arte mortíssimos (quando mais animadas e mais consoladoras, pra mim, mais mortas), e você olhando para as verdades filosóficas e científicas que acha que sabe. Ora, ninguém sabe nada! Sonhamos em transformar o mundo e somos humilhados por um vírus. Desculpe, dei uma gargalhada! Deus é muito sacana! Muito engraçado! Não é sequer punição. É só ironia. E se você acha que não precisa de um Deus irônico para explicar, aí é que a ironia é mais sublime. Não consigo parar de rir e lembrar dos coveiros, com aquelas jaquetas brancas de laboratório e aquelas abas de boné dos contadores de filmes de faroeste, enterrando números que iam desbotando, perdendo a cor e desaparecendo. No sonho, Mary Shelley estava a meu lado e ria ao ver o Doutor ser enterrado ao lado da criatura. Érico Veríssimo também passou por mim para dizer que eles voltariam para nos assombrar, mas, todos misturados, milhares de mãos e de nomes todos sepultados e insepultos. E você se perguntando para quando tudo irá voltar ao normal...   E você pensando no semestre perdido, na oportunidade perdida... E perdendo a chance de buscar o último território, a fronteira final... Mas, talvez, seja preciso abaixar um pouco o som, ao menos aquele com você está acostumado. Não, eu não estou dando um conselho!!!!! Não!!!! Estou, agora, falando comigo, meu maior inimigo, meu mais querido sonho. Você? Eu ignoro solenemente quem você seja. Hoje é domingo! Eu não trabalho mais pra você e aqui sempre será domingo! Dia consagrado à oração e ao descanso. Ao menos para aquilo que mais se parece com o que possa chamar de minha civilização. Assim, com tudo misturado, mas, sem projeto de engenharia social, éramos o esboço de uma civilização...

            Mas, deixe-me dizer uma coisa. Talvez, não haja mais futuro algum. Seguinte: digamos que Deus (ou os deuses, se você insiste que toda diversidade começa de um UM) seja um artista, criador de mundos. Mas, se trata de um artista muito perfeccionista. Você sabe, eu aqui não estou planejando e nem reescrevendo nada. Escrevo direto, no celular e no Facebook: é um método de composição. Por quê? Porque sim. Assim e só. Por causa, é claro, de nossa pandêmica Corona de Espinhos, do inimigo invisível que sempre esteve aí, mas, que, agora, demanda nossa atenção. Do COVID-METAFÍSICO, do vírus cósmico de nossa condição, apesar da conta bancária, do poder ou ideologia política, das crenças religiosas. Por causa da ignorância desvelada daqueles que julgavam ter domado o cosmos a ponto de chama-lo de “natureza” em distinção a nós, seres da “cultura”. A vida é dura, né?

            Mas, esse Deus...

 

             (Entenda, ateuzinho raso, preciso aqui – saiba bem onde está – de uma instância enunciativa qualquer, de um Ego para organizar, ainda que provisoriamente, o que chamamos de Real. Claro que também suponho, nesse sonho oligofrênico que é o dizer, coisas como o “Real”, que há somente como experiência, como referente, mas, nunca como um signo confiável. Se você está lendo como literatura, peço desculpas pela chatice. Se está lendo como pensador – e não entendeu – recomendo que estude um pouco mais.)

            (...) , esse Deus, não é como eu. É um perfeccionista. E esteve. Estava tentando criar um mundo. Ele tem a eternidade (que é mais do que o infinito porque não é uma série) pela frente. Por isso, diante da morte, do corpo e da civilização, não precisa escrever urgente um estranho testamento excêntrico pelo Facebook.

            Então, Ele tem nos criado até aqui, o que, para Ele, pode não representar mais do que os primeiros traços, esboço de carvão, sobre a tela da existência.

            Digamos que Ele ache que não vai dar em nada. Ou que encontre um projeto de esboço mais promissor. Ele já criou amorosamente milhares de mundos. Como todo artista dedicado, quer que sua criação seja perfeita.

            Suponha, agora, que Ele viu que este nosso mundo não iria dar em nada. Não era ainda o que pretendia.

            Talvez, não haja mais futuro algum. E isto não foi uma punição, nunca dependeu de você... Era só uma tentativa. Uma generosa tentativa a qual, talvez, devamos agradecer a chance de participar de tal experimentação.

            E você ganhou a liberdade de pensar sobre tudo isso. Ou sobre qualquer outra coisa mais urgente, como nos seus, como nos Céus e nos Infernos, como nos acasos que o trouxeram até aqui, diante desse texto tresloucado, como em mergulhar e tentar respirar no caos e no cosmos.

            Permitam-me, eu vou pirar. Prometo tentar voltar. Não por você, mas, porque terça eu tenho um Zoom, dessa gente que insiste em continuar e não deixa a mente descansar, tenho o Imposto de Renda pra fazer, mas, agora, vou pirar. Queria, antes, o conselho de um amigo específico de que música escolher. Mandei um Messenger, um WhatsApp, e ele agora não pode me responder. Permitam-me, vou pirar.

 

            Os números são inúmeros, infinitos, mas, não eternos, os homens de terno não são nada ternos com a gente que mora no andar de baixo, e eu não me encaixo, não me encaixo, não me encaixo em cova rasa alguma, espero que você também não, rima em “ão” é tão pobre. Tão pobre como quem quer pão, um emprego, um transporte descente, um lugar para voltar...  Sim, eu prometo, estarei lá para abraçar! Eu estarei lá. Mesmo que eu não consiga mais me encaixar nesse joguinho de vocês, eu estarei para abraçar, não a um número, mas, a você, porção de eternidade além do infinito, você que, como eu, é horrível, mas pode ser também uma promessa de bonito.

            Pode entrar, o show já vai começar... O maravilhoso show que é pirar em praça pública diante de nossa miséria. Segura a onda, vamos nos divertir. Vamos, segura a alma, calma, vamos à festa que sempre esteve aqui bem na palma de nossa mão. Números não têm mãos e não fedem, nem cheiram, nem apodrecem como quem morreu sem tirar a máscara pelo menos uma vez na vida. Tome cuidado. Não se perca. Você nunca viu isso em outra parte. Você quer ver o show: isso é rock in roll!!!! A pedra vai rolar e Sísifo, como sempre vai dançar. Por que, diabos, eu tive que pedir licença a você pra pirar? Como você se atreve? E nem teve a decência de pagar pra ver aqui minha cabeça rolar como uma pedra do alto da guilhotina da escrita. O que eles estão achando, mãe? Será que estão gostando de mim. Eu pouco me importo, mas, tenho que fingir que sim. Assistam ao show.

            Longo solo de bateria. Depois piano. Dou um doce a você pra descobrir o que estou ouvindo enquanto vou fazendo esses meus cut-ups improvisando. Deu vontade de parar. Não estou gostando. Vou descansar de mim e de vocês e da morte e do COVID-19 e da “é a porra do Brasil” e da cirurgia de cérebro de salada ou da salada de cérebro em cirurgia ou...

            Respire. Nada, de fato, irá roubar seu mundo. E tudo o que você perdeu é aquilo que há de mais exatamente seu. Digo isso com lágrimas dos olhos. Com as lágrimas de quem desistiu de lutar e venceu. Essa, talvez, seja a grande lição que o vírus tenha a ensinar. Mesmo que ele não tenha consciência, você que não é um vírus (nem o Rinoceronte, do Ionesco), é a consciência do vírus. Não é pouco. Acredite. Não é pouco. Medite. Tudo sempre esteve perdido, tudo foi sempre pura perda. Quem não soube se perder, não sou amar (ou escrever). Não saber se perder é a maior perdição. Era o que dizia o poetinha, entre um uísque e uma mulherzinha (por favor, por favor, aqui não, não sem o carinho de um diminutivo amoroso... Esquece por um segundo a guerra ideológica: logo, todo esse nosso mundo pode simplesmente acabar. Somos pomposos cidadãos de Pompéia, somos todos escravos da lava do vulcão... Por favor, aqui não!) Entre um uísque e a busca do amor, dizia o poeta: a vida tem sempre razão. O vírus, o terremoto, o amor e o vulcão têm sempre razão. Nos resta acolher e escolher o pouco que escorrer dos dedos do Destino. E sem reclamar, menino! E sem mimimi, menina! O que a sina deixar de herança: assina!

            Descobri o elo fundamental que faz com que esse romance tenha que nascer aqui, tenha que nascer assim. A precariedade do meio: cova rasa. A fugacidade da foto de celular para qual nunca olhamos. Você havia notado isso? Eu não. Não sei sequer se você continuará lendo, se eu não avisar. Minha felicidade é que, embora eu necessite e aprecie muito a sua companhia, eu preciso, agora, ao menos, muito mais escrever do que preciso que você leia.

            Primeiro, foram os muitos miseráveis que circulam na Avenida Paulista, e que eram praticamente invisíveis quando circulavam no meio da multidão, a não ser tarde da noite, quando a Paulista e imediações era quase que inteiramente deles, menos onde putas e artistas ofereciam seus corpos e cérebros à degustação pública, eu dizia, não se perca, que eu já me perdi, já nem me pergunto mais como tudo isso, o romance e a vida vão continuar, se é que vão continuar, primeiro, eu dizia, aqueles seres que os politicamente chamam de pessoas em situação de rua, francamente, acho que esses eufemismos só pioram as coisas, clínica, comunidade, resiliência, pessoa em situação de rua, francamente, mas, eles, os miseráveis, quase os mesmos de sempre, desde Hugo, pelo menos, eles, eles, muitos deles, gritavam da rua que tinham fome, todo o comércio fechado, depois da terceira mutação inesperada do vírus, ainda mais virulenta, ainda mais lenta, e, como do Betinho, quem tem fome tem pressa, eles gritavam, pediam comida, tentavam escalar os edifícios, chegavam às marquises, por caridade, ou cálculo, os que tinham ainda como se isolar, atiravam itens comestíveis, suas sobras, suas reservas, talvez, para baixo...

            O presidente, aproveitando que não saímos de casa, a não ser quem tinha tão pouco a perder e para quem a vida nunca teve valor ou quem nunca teve sua valorizada por ninguém a ponto de brincar de ser nada, o presidente armou sem que víssemos a cilada de armar milícias, setores das PMs, militares de variadas patentes e mais qualquer braço desejoso, invejoso, odiento e disposto a dar porrada, não era o golpe, a ditatura, ninguém reconhecia mais poder algum, era o caos, e eles, a fome desenvolve talentos inusitados, eles aprenderam a escalar os edifícios, para comer o que podiam, roubar o que podia, expulsar quem podiam...

            No começo, era na Paulista, mas, passou a ser na Atlântica, Nossa Senhora de Copacabana, na Barata Ribeiro, veio descendo... E chegou aqui. Pude entrever que se espalharia pelo país inteiro, antes de levantar, mandar que eu deixasse de ser paranoico e, finalmente, baixasse os documentos para preencher o Imposto de Renda.

            Não sem antes ignorar solenemente mais uma notícia de um conhecido que morreu de COVID-19. Não sem antes ignorar esplendidamente o pedido de empréstimo de um amigo e outra amiga que as coisas estão delicadas, que não aparece nenhum freela...  Como ajudar se já penso em guardar as latas de atum para o futuro, se já especulo o que poderá ser de mim se o café acabar e se eu não puder mais pagar a internet?  Como encontrar forças para pronunciar mais “meus sentimentos”? Como?

            Uma coisa louca. Quando para e ligo a tv, quando canso da internet, está rolando uma espécie de recapitulação, que é feita por falta de opção, mas, é um tal de Especial do Roberto Carlos, Grande Família e o Brasil é campeão do mundo toda semana: 1970, 1994, 2000 e quando mesmo?, já vi tudo... É, a um só tempo, engraçado, torturante e impactante como uma emoção vulgar... A palavra é “patético”. Para mim, em coisas como futebol e uma canção do Reginaldo Rossi se escondem segredos raros e inúteis sobre nós brasileiros. Mas, bem ou mal, é um mergulho no passado. Com Roberto Carlos, mesmo que não tenhamos visto os tais especiais na época, é uma espécie de mergulho em algo tão kitsch e sentimental quanto Charles Dickens e seus “fantasmas dos natais passados”. Onde eu estava e com quem quando eu não assisti ou assisti esse especial?

            Quando assistia à reprise do jogo Brasil e Uruguai, na Copa de 70, eu lembrei de um episódio que retrata a crueldade e a ignorância do país. E que me fez agradecer a Deus o pai e a mãe que eu tive.

            O jogo foi difícil. E tinha o trauma de 50. O Brasil tomou o primeiro gol e só foi empatar no finalzinho do primeiro tempo. Um gol de um herói improvável. Nosso mais defensivo jogar de meio campo, deve ter tentado apenas aquele chute durante a Copa inteira... e acertou! Clodoaldo!!!!!

            Eu subi no muro do fundo do quintal de minha casa e tudo perdeu a graça. Eu tinha um vizinho, Edu, bem efeminado, como diziam na época. Ele e sua família eram muito pobres. Todos éramos pobres. Mas, eles eram muito. E seu pai era um sujeito mal-encarado pra caramba. Sempre ouvíamos o Edu apanhando.

            Do alto do muro, eu vi o Edu, no que seria uma lateral da casa dele, eu vi o Edu todo lanhado, bateram nele de tirar sangue e, na euforia do jogo, ninguém ouviu. Estava amarrado como um cão. Não tinha mais ninguém na casa dele. A alegria do gol do Clodoaldo acabou ali. Voltei para dentro lívido. Meu pai percebeu e perguntou o que estava havendo. Como os adultos tinham cerveja, perguntou se eu havia bebido sem que vissem. Então, eu falei pra ele o que vira.

            Meu pai era foda! Perguntou se aquilo sempre acontecia. Eu e meu irmão falamos o que ouvíamos lá do fundo de nosso quintal. Não teve três a um nem nada. Nós morávamos na casa de esquina de uma vila. A casa do Edu ficava logo atrás da nossa. Mas sua entrada era pela vila, ficando, portanto, em posição perpendicular à nossa entrada. A lateral do pequeno quintal deles dava para o fundo de nosso quintal.

            Meu pai foi lá, meteu o pé no portão e trouxe o Edu para ser cuidado pela minha mãe. Brasil 3 X 1. Mas, o chute mais bonito foi o do meu pai.

            Mais tarde, quando o pai do Edu voltou, o meu pai e a minha mãe conversaram com ele. Meu pai veio com aquela conversa de reencarnação, que havia almas femininas em corpos de homens. Mas, ameaçou chamar a polícia se aquilo voltasse a acontecer. Estranhamente, o pai do Edu parecia envergonhado ou estava bêbedo demais para reagir. Todo covarde agressor é assim: em condições iguais, é um cagão. Quem bate em menino, não encara um adulto igual a ele.

            Pouco tempo depois, Edu fugiu definitivamente de casa. E nunca mais o vimos. Tomara que tenha sobrevivido. E que esteja fazendo a quarentena. Feliz, rico e bem bichona! Em nome de Deus!

            Mas quantos Edus, saindo de casa tão cedo, com um porto de partida tão inseguro, com tanta ferida e tanta corda, tanto muro, tanta porrada dada pelo pai, pela polícia, pelo traficante, pelo ladrão, pela milícia, quantos como Edu não estarão felizes e ricos. E vivem em situação precária, sem salário, com o medo da morte presente e em um estado de desigualdade social. Quantos com fome, todos com medo, quantos também não estão nem aí pra essa vida de merda. E querem mais é ver o sol. A precariedade que agora atingiu a você, de geladeira cheia, talvez, você compreenda, a vida valendo muito pouco, sempre atingiu aos que partiram do mesmo porto precário dos milhões de Edus. Então, como a morte sempre morou muito perto de uma cerveja gelada com os amigos, como a vala negra sempre andou aberta, uma bala perdida vinda pelas costas, como a vala comum sempre foi a oferta dada, como o pai brasileiro sempre meteu a porrada, quando não meteu o pé, foi buscar cigarro e sumiu, sumiu na vida como o Edu...

            Pensar nisso é também pensar em mim. Pensar nisso é também pensar em você. Quem é você nisso tudo?

            O mundo rico, que, aliás, entre nós, voltando de suas viagens pelo mundo, ajudou a trazer o vírus para morar entre nós, está experimentando muitas inseguranças que são quase cotidianas para a grande maioria do cidadão que, em oposição a ser global, se limita à vida de cidadão local. Globalizado apenas pelo fluxo de capitais sobre os quais não têm o menor controle e nem a menor ingerência, globalizado ainda por uma ciência de cujos frutos eles estão solenemente excluídos, quando muito são cobaias.

            A pandemia é uma vala negra e uma bala perdida erguida, finalmente, sobre New York, sobre Madrid, sobre Berlim (ainda que se cuide melhor).  Algum intocável ou comedor de ratos (informe-se) da Índia estão tão mal atendidos, ou pior, ou pior, do que qualquer cidadão “normal” de Paris ou Berlim. Qualquer morador da favela da Maré ou das fronteiras do Nepal ou da China, entre aqueles que executam trabalho quase escravo, sempre experimentou, e provavelmente, continuarão a experimentar, porque esse mundo nunca foi normal para muitos, ou o normal deles nunca foi o de Berlim, dizia, sempre experimentou o cu na mão e a precariedade que os nova-iorquinos saboreiam agora. Se bem que, essa pandemia, para alguns moradores da favela Muquiço, está longe de ser mais grave do que a precariedade cotidiana de suas próprias vidas. O vírus é um pouco menos visível e um pouco menos seletivo do que a bala perdida, o ditador sanguinário e a malária. O vírus é irônico. Transformou Nova York, com corpos sendo queimados ou empilhados na beira de um rio indiano qualquer, em um lugar vizinho da morte. A Corona de espinhos sobre a cabeça do mundo é quase democrática. Ainda não iguala Bangalore a Madrid, mas, no mínimo, aproxima. A morte é sempre igual, riquezas para lutar contra ela e outras fragilidades é que são diferenças.

            Zoom. O nome do novo aplicativo da moda seria um título perfeito. Houvessem aqui títulos, capítulos, seções, secções, divisões, partes, artes quaisquer que admitissem racionalismos ou orientações. Quero tudo assim mesmo, meio embolado. Como ficou nossa vida neste estado. Sem títulos, sem teses, sem futuro, sem passado, só um presente que não passa, uma consciência da morte, uma ameaça de fim de vida e de civilização. Um lugar habitado pelo não. Só quem é reduzido a zelar por sua mera sobrevivência dá valor à vida. Hoje, eu temo também que acabe o café. Porque o ano, os planos, já acabaram faz tempo.  Daqui a algum tempo, não haverá sequer o tempo a passar. Importa, então, que esse texto seja assim, escrito no Facebook, no celular, mesmo que pensado como algo publicável. É quase um gênero literário híbrido: romance e textão de Facebook. Uma mescla do que ainda é prestigiado com o que há de mais descartável. Autorretrato do artista confinado. Amanheci tomado por uma melancolia de séculos. De fato, quase nem dormi. Fiquei vendo série na Netflix até o dia raiar e meu vizinho incomodar com o som de seu apartamento em volume máximo, acho que para ele poder acordar, mostrar aos outros que está vivo, fingir felicidade (“Tira os pés do chão”!) e decolar seu corpo para a vida guiado pelo piloto-automático. Qualquer coisa, menos a incômoda voz da consciência! Então, eu vim aqui pro meu cantinho. Ontem, houve reunião do trabalho (não necessariamente “de trabalho”) no Zoom. E as pessoas (eu também, talvez) ficaram mesmo em Zoom. Os rostos na telinha. Seus ódios, suas frustrações, seus medos... O que eu vi, queria não ter visto, queria não ser visto, queria não fazer parte daquilo, não ser um par daquela gente! Depois do contato virtual a que fui obrigado e ao ver pela TV imagens do calçadão de Ipanema, cheio de gente, cheguei à triste conclusão que nós, da classe média para cima, de direita e de esquerda, merecemos cada governo de merda que tivemos e esse, particularmente merda e filofascista que está aí. A nossa elite econômica, então, semianalfabeta, merece demais. Só tenho pena da maioria do povo humilde, que é muito melhor do que nós. Bolsonaro é realmente um enviado de Deus: só que é pura ironia. Pare de olhar no espelho, olhe bem para dentro e perceba o Bolsonaro que habita em você.

            Ontem, não posso contar detalhes, acredite em mim ou abandone esse texto, acredite, depois você pode voltar a ser o cidadão crítico que aprendeu a achar que era desde o primário, onde não fizeram você pensar que o mais difícil é a empatia, é se colocar no lugar do outro, é ouvir, se não com respeito, pelo menos, com condescendência. Ser um pentelho raso que nem compreende e já desconfia do emissor não é ser um leitor: é ser escravo de alguma ideologia. Se você não se apaixona por nada, não erra, não me escuta... Escuta, porra! Até concluir, depois de me deixar entrar, que eu sou um bosta, agente da CIA ou intelectual orgânico gramsciano, maçom de grau 33, olavista, terraplanista, celacanto que provoca maremoto, inca venusiano, globalista, comunista, membro de carteirinha do clube adversário, militante a soldo da cor de camisa oposta, o bosta que irá roubar o seu respirador, seu emprego e sua namorada, o funça, o burguês, o pobre de direita, o socialista de iPhone...  Não se perca, porque eu já me perdi faz tempo. Não tenho mais para onde voltar. E...  Eu tenho que falar, é solitário demais morrer. E mais solitário é morrer de Covid-19. Entrar num hospital. Antes da morte vir, pouco antes, você saber que nunca mais verá mais ninguém de sua família, seu cão, sua música predileta, seu cantinho...  Por isso, eu estou por aqui. Dono de minha canção solitária...

            Eu dizia, ontem eu vi, não posso contar detalhes, um colega, tentando lutar para manter seu emprego, sendo humilhado, por sua pobreza, por sua birutice...   Por que você é louco? Eu sou? Todo mundo é louco. Esse mundo é louco...  Um colega pobre, que eu sei que tinha sido abandonado pela mulher, que deu para beber e que é diabético, que, depois de corneado, foi morar na casa de uma colega de trabalho velhinha e que morreu, que, então, foi abrigado em um sobrado improvisado em cima da casa de seus pais, também velhinhos...  

            Este colega, começou a fazer a tal reunião de trabalho com máscara.  Vieram as piadas, até que outros colegas, justamente, os mais progressistas, os mais descolados, os mais combatentes contra “o discurso de ódio”, justo os paladinos identitários, exigiram explicações do maluquinho.

            Estava subentendido para qualquer um que tenha alguma vez se interessado por aquela pessoa em lugar de se interessar por uma abstrata humanidade ou por alguma precária abstração de minoria. Ele foi filmar na sala dos seus pais, ambiente um pouco mais apresentável do que talvez o cubículo improvisado em que ele agora morava. E estava muito resfriado...  Será o Corona? Naquela vida solitária e fodida, que eu tanto queria abraçar naquele momento, seus filhos da puta, que me desculpem as putas, naquela vida ainda haveria lugar para mais uma derradeira solidão e isolamento definitivo? Vocês não têm obrigação de saber, mas, eu trabalho em um meio cheio de progressistas, paladinos da justiça coletiva, essa espécie de terceirização utópica da cordial virtude da caridade.

            Foram justamente os mais paladinos que mais cobraram. O tal cara desligou e saiu do Zoom, sem dar as pedidas explicações. Eu tive vontade de sair também, mas, pensei na granola e no café. Na fala que tive, reclamei da inconveniência daquele interrogatório. Falei que alguém precisava ser muito filho da puta para exigir explicações de alguém que precisasse estar fazendo uma transmissão de máscara. Quem sabe onde ele estava e por quê?

            Enquanto eu falava, ele voltou. Transmitia diretamente de um banheiro. Deve ter-se trancado lá. Todo mundo começou a rir. Houve até aqueles característicos KKKKKKKKKKK, enviados pelas mensagens de textos. Era uma reunião grande, com mais de cinquenta pessoas. Todo mundo começou a rir. Eu comecei a chorar. Sem a mesma dignidade de meu pai ao chutar o portão da casa do Edu, eu desliguei aquela merda! Antes que as minhas lágrimas fossem outro motivo para explicações a serem “socializadas”. Pare de olhar no espelho e veja o monstro que mora em você. Há diariamente mortes tão solitárias quanto às da Corona de Espinhos que paira na cabeça da humanidade. Zoom. Eu não quero mais essa gente entrando em minha casa. Eu não quero mais essa gente vista em Zoom.  Enquanto as lágrimas e os banheiros não forem seus você não irá compreender a gravidade da situação, não é?

            Que miséria você esconde dos outros? Qual canto fodido de sua alma que você não admite exibir no Zoom? Ou você coloca a Ivete no volume máximo para acordar sem ter que se importar com isso? Ou você esconde culpas lutando pelo bem da humanidade? Ou por seu fascista ou guia genial dos povos predileto? Ou por seu projeto de identidade e/ou de sociedade? Sempre futura, sempre convenientemente coletiva, para que você não tenha que olhar o pâncreas do colega gordo do lado, abandonado pela mulher, com a vida exposta como a lua na sarjeta.

            Eu sonhei um sonho todo cinza, como uma gravura feita a lápis de grafite. Eu e minha família éramos ratos enfiados no buraco, tipo aqueles de gravura nos desenhos animados. Há certa ternura nos ratos, apesar do nojo, apesar de serem ratos. Havia o cheiro do queijo na ratoeira e o cheiro, distante mais presente, dos defuntos. Eu-rato saí primeiro. Depois, a minha esposa-ratazana-rainha e meus filhos, uma ninhada de quatro. Roíamos o queijo pelas beiradas sabendo que a ratoeira, diante do menor erro, depois do mais leve esbarrar, iria desabar sobre nós. E ainda tínhamos que nos revezar para dar atenção a ameaça humana ou sobre-humana que viesse nos atacar. Mas, de barriga cheia, todo mundo se distrai. Paradoxalmente, essa é a hora em que você diz sim ao amor e coça os olhos deixando o vírus entrar.

            Voltávamos felizes para nosso buraco-lar na parede, quando, do nada, voa sobre nós aquele ser medonho. Era uma bola fétida de restos de braços e troncos e pernas e sexos e estômagos expostos. Era um composto estranhos das entranhas enterradas ou empilhadas em covas rasas. Havia até pequenas asas dos pardais e pombos que famintos, sem mais gente nas ruas, morriam famintos e indigentes, como os restos das gentes. Mas tinha, além de asas, milhares de bocas e grunhidos agudos e também havia os guturais. A bola fétida nos cercava, e o eu-ratão pedia a um Deus irônico que ria que me levasse, que levasse a mim, já tão perto do fim, e deixasse escapar minha precária ninhada. Mas, que nada, esse é o problema demoníaco do poder que achamos que temos que ter, seja através das preces, das mágicas ou das ciências e algumas filosofias...  Mas, eu não podia evitar. Aprendi a prece que você nos ensinou, Jesus, mas, diante das mil bocas e dos meus em risco, eu não consegui dizer “seja feita a Vossa vontade”. Perdão, eu aprendi, mas, não sabia. Eu ratão cinzento pedia que viesse uma luz qualquer do infinito e salvasse os meus e livrasse meu país e meu mundinho de tanta desgraça. Perdão, Pai, mas, eu pedia. E talvez fosse exatamente isso que você esperava que eu fizesse. Não por crueldade, mas, porque era aquela a final verdade, havendo não um Deus. Não justiça que compreendamos, não há nada que possamos compreender. Só podemos pedir e aceitar, se vier, a Graça.

            Só podemos não ligar para os que riem de nós e dar o melhor. Filmar de máscara da casa de nossos pais velhinhos, ir e mostrar nossos banheiros e nossas intimidades, não estar nem aí para quem ri de nós. Não ligar para ser risível e pedir para não morrer só. Agradecer por quem nos faz companhia. E agora, agradecer a Deus, mesmo que não haja, por amar tanto, gratuitamente, ler e escrever. E assim, nunca estar só. Assim, foi dessa forma que Deus, mesmo que não exista, escolheu estar sempre em minha companhia. É só por isso que eu quero que você leia. Você não está só. Há sempre algo ou alguém que você ame. Veja quanta besteira eu ponho, agora, aqui, no Facebook.

            Agora, você pode rir de minha máscara, de meus pais velhos passando pelo fundo da cena, de eu ter-me trancado no banheiro para ninguém reclamar de minha máscara ou pedir explicação. Pode rir, irmão, irmã, essa é minha graça.

 

            Aí começam as previsões científicas, as análises supostamente filosóficas, os esoterismos e milenarismo todos, o papo furado de distopia para lá, utopia para cá...  Será que o vírus, cuja única prevenção aceitável é a mesma recomendada para a Gripe Espanhola, lave as mãos, se isole, evite o contato, não nos ensinou a admitir que simplesmente não sabemos. O lado bom, tirando os otários servis que incensam qualquer tirano ou os conspiracionistas que encontram maçons, comunistas e illuminati burgueses para explicar o que não sabem, o lado bom, dizia, é que o governante é, quase numa lembrança arquetípica que temos das sociedades cíclicas, em que os reis eram deuses ou representantes deles, os governantes sempre terão sido, no mínimo, os azarados da vez que nos trouxeram a peste. Sempre que nos lembrarmos de cada um deles, se é que nos lembraremos, cada governante estará inelutavelmente agarrado ao vírus. Os que forem briguentos, os que não souberem chorar seu povo, como o nosso, serão sempre os que nos trouxeram a maldição. Júlio César e Lula (mal comparando) curavam doentes com as mãos. Eram meros mortais, mas, o povo, infeliz, adora seus algozes, especialmente os mais sorridentes, particularmente os mais psicopatas.

            Esse que está aí nos trouxe a peste. A peste precisa estar ligada a ele e estará. Já está ligada a ele. Ele é o senhor da peste. O dono da peste. Ele é a peste.

            E esse textinho vagabundo, dos dois parágrafos anteriores, é bem textão de Facebook, né? Desculpe, prometo melhorar. Mas, pelo que você está me pagando...

             Quer saber, respeitável público, coisíssima nenhuma!

            Eu e você até que começamos bem. Mas, eu estou cansado de tudo isso. E todos aqui já me abandonaram faz tempo. Duvido que você me dê um sinal para me avisar que ainda está por aí. Essa é mais uma etapa de minha experiência. Não tem mais ninguém lendo isso aqui, carta de náufrago, mas, insistentemente, eu insisto em escrever. Você sabe como eu escrevo? Vou contar. Eu trouxe um carregador. E um celular. Está aqui escondido. Eu carrego num cantinho bem perto de meu leito, enquanto espero sobrar vaga no respirador. Isso mesmo, ninguém me vê, ninguém me viu...  Eu estou aqui mesmo, febril, esperando pela morte, solitário. E se for? E se fosse? Você ainda julga que me conhece? Você ainda julga que se conhece?

            Eu já estou cansado disso aqui.

            Zuckerberg (seja lá como for que se escreva) e você vão se foder! Eu vou cuidar dos meus e de mim. E só escrevo agora para quem me pagar para ler. E o presente texto, mesmo que você não gaste um centavo do seu dinheiro, tem que custar algo. Você tem que perder ou deixar algo de seu aqui. Ou, então, vá se foder! Se você quiser ler isto como um gourmet de minha consciência ou das várias consciências que penetram no meu sono e me deixam assim meio confuso, vá se foder! Se quer ler como um professor e acha que vai encontrar uma tese ou exegese aqui nesse amontoado de palavras, solidárias, mas, desesperadas, tanto mais desesperadas quanto mais solidárias, e inúteis, meu Deus, inúteis, vá se foder! Se for um professor-gourmet, então, vá se foder elevado ao cubo!

             Também não me venha com aquela baboseira nietzschiana ou desconstrucionista, ou qualquer “ista” do caralho, de que não existe o que se possa chamar de fatos, apenas interpretações. Deixa de ser imbecil e seguir o que dizem todos esses intelectuais traças de livros. Você sabe muito bem que o que está acontecendo agora, do vírus à leitura que você faz desses meus escritos, é real. Isto que está acontecendo agora, apenas isto, entendeu, é real, é real, é real! Ainda que você não possa explicar, ainda que você seja a única testemunha solitária, não há interpretação para fato algum quando ele acontece. E todos sabemos que merdas e maravilhas acontecem. Porém, seja lá o que for que aconteceu agora, e aconteceu, já passou. E, como passou, como sempre passa, aí vira história, aí vira memória, aí se transforma em interpretação. Por causa da escrita, acho que mesmo um pouco antes dela, vivemos todos um certo delay característico de nossa espécie. De fato, Lacan, não é apenas o real que é impossível. Ou melhor, sequer o real é impossível. O real é fugaz, mas, possível. Perfeitamente possível, aliás. O que se tornou impossível foi o presente. Assim que ele surge, imperceptível e fugaz como um vírus, nós o transformamos em interpretação, em simbólico, em imaginário. Mas, ele existiu, ele, aliás, existe. E pode matar. Ou pode libertar. Ou maravilhar.

            Descobri um limite. Há um número máximo de caracteres, 6000 e não sei quantos. Aí, o Feicebuque do Zuckemberg não deixa mais. Esse texto, então, termina aqui. Como a vida, inesperadamente. O buraco dele já deve estar cavado por algum previdente profissional. Vala comum. Morre, meu texto, porque um dia viveu.

           

 

EPÍLOGO-VÉRTICE

 

Daqui

Da torre de marfim

Do meu apartamento

Eu vejo

Com desprezo

Tudo se acabar.    

                                     Meu desprezo

                                      É, assim, a última gota de heroísmo

                                         Sorrio e salto

                                          No abismo

                                        Não é a queda que mata

                                        Morre-se ao aterrissar.                                                                                                 

No chão da sala

Excremento caindo na vala

Planejamentos de aulas

À distância

Que a ânsia vazia dos burocratas

Insistem que devo dar

                                                 Ah! Burocrata de merda,

                                                  Falta-me o ar, falta-me o ar!

                                                       Alguns nunca quiseram aprender

                                                        Querem só se diplomar

                                                         Não exija que eu tenha que continuar...

                Ensinar, ensinar, a quem nunca soube aprender quebra-se o ritmo, falta-me o ar...

 

Daqui

Da torre de marfim

Do meu apartamento

Eu vejo

Com desprezo

Tudo se acabar.    

 

 

                                                  Doce queda

                                                       De tudo

                                                   Fim do capitalismo?

                                                    Talvez

                                                    Mas quem disse que o abismo

                                                         Salvaria da morte a arrogância utópica de vocês?

O vírus e o Vesúvio

Não têm oposto

Nem ética

Nem dialética

Isso posto:

Na queda desse apartamento eu descanso

                                                          E escrevo

                                                               Da maneira vertical como sobrevivo

                                                               Não há muitos que saibam ler

                                                               Que fazer? Falta-me o ar...

                                                               Viver na torre a compor

                                                           Uma lenda maior que viver

 

Não é o rio que afoga

Morre-se ao tentar respirar

Fui feliz aqui na torre

E vejo

 Com desprezo

Tudo se acabar.

                                                               Se você não é dos poucos

                                                               Que sabem ler

                                                               Nem tente

                                                               Nem tente entender

                                                               Não é a vertigem que fere

                                                               Mas o horizonte e seu afazer.

 

 

 

           

           

                               

 

 

 

           


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