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Feministas, Graças às Deusas!

Feministas, Graças às Deusas!
Paloma Silveira
nov. 3 - 9 min de leitura
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Nas últimas semanas assistimos estarrecides o desenrolar do processo de contratação de Robinho pelo Santos. Time que lançou em maio uma campanha de combate à violência contra as mulheres (G1, 2020), pareceu não se importar muito em contratar um jogador condenado por estupro na Itália, ainda que caibam recursos. Patrocinadores ameaçaram e outros retiraram os patrocínios. Mulheres organizadas se manifestaram de diferentes formas, repudiando a contratação. Espaços da mídia hegemônica e das redes sociais polvorosos e indignados diante de mais este descaso com a vida das mulheres.

Sabemos que o futebol além de racista, é machista. Casos de jogadores envolvidos em situações de violência contra as mulheres são frequentemente noticiados. Apesar disso, pouco tem sido feito, na verdade, o quase nada de sempre. Em geral, há a minimização dos casos e jogadores, comissão técnica, entidades representativas e parcelas da sociedade civil fazem aquela conhecida “brodagem”. Saem em defesa do agressor, que acaba se tornando até uma vítima, afinal, “é um cidadão de bem”, “tem família, mulher e filhos”, “o cara não é assim, tem Deus no coração” e é “trabalhador”. Alguns pedidos de desculpas, retratações, também são realizados, às vezes com choros e, pasmem, mais culpabilizações das mulheres.

Toda essa situação nada episódica, o Brasil é um dos piores países do mundo para as meninas nascerem como apontou um relatório divulgado em 2017 (THEMIS, 2017), retrata bem a nossa sociedade e seus valores. Não é difícil imaginar quantas pessoas já se omitiram em diferentes situações em que os machismos foram percebidos ou mesmo escancarados. Tudo parece se tornar mais fácil de digerir, perdoável, quando se relaciona àquele “broder”, ao pai, mãe, parceire, à família e aos “chegades”. Os limites éticos vão sendo alargados, na medida em que os problemas são atravessados pelas afetividades que nos são caras. Fazemos vista grossa. Silenciamos.

As condescendências com os ditos “deslizes” machistas são as mesmas que acontecem nas situações racistas, LGBTfóbicas e dos privilegiamentos dos e das de sempre. Uma mesma lógica parece funcionar para garantir a manutenção das hierarquias de poder e o perpetuamento dos privilégios. Um sistema como o capitalista, composto por diferentes sistemas opressivos, se organiza para isso, matiza diferentes desigualdades e em determinados momentos proporciona a sensação abstrata e também a prática concreta para o exercício de algum tipo de poder. Não à toa os homens continuam batendo e matando as mulheres, o Brasil é o país que mais mata LGBTQI+ no mundo, a polícia continua batendo e matando os jovens negros, e os povos originários continuam sendo dizimados pelo agronegócio. As violências e violações dos direitos humanos têm destino certo, os/as/es subalternizados/as/es.

É nesse cenário estruturado pelos racismo, patriarcado e classismo que os afetos são construídos e alinhavam as ações e omissões da vida como ela é. O pessoal é político, já alertavam nós, feministas, descontruindo a ficcional separação entre o privado e o público. Ora, essa ficção transcende as situações de violência contra as mulheres, os alargamentos éticos também incluem o uso e o abuso da maquinaria pública. Patrimonialismo, clientelismo e nepotismo são algumas categorias que caracterizam esse modo organizacional brasileiro afetado pelo “familiar”. Os atravessamentos afetivos burlam regras, privilegiam parentes em seleções e em cargos, privatizam o público transformando-o em uma “grande família” amalgamada e complexa.

Esse tipo de afetividade tem mantido e fortalecido as estruturas desiguais, justificado as diferentes situações injustificáveis, os privilegiamentos e as violências diversas. Segundo bell hooks (2006) somos, em geral, motivades a nos indignar diante de determinadas dominações, quando sentimos que estas podem ameaçar nossos interesses. Para ela, muitas vezes o desejo de mudança é movido pelo o que nos afeta individualmente, não estando implicado com uma transformação coletiva da sociedade e com o fim da política de dominações – imperialismo, sexismo, racismo e classismo. Trata-se de um desejo particular, autocentrado:

Fundamentalmente, se estamos comprometidas/os apenas com a melhoria daquela política de dominação que sentimos conduzir diretamente para nossa exploração ou opressão individual, não apenas permanecemos ligados ao status quo, mas agimos em cumplicidade com ele, nutrindo e conservando esses mesmos sistemas de dominação. Até todas/os nós sermos capazes de aceitar a natureza interconectada e interdependente dos sistemas de dominação e reconhecermos as formas específicas de manutenção de cada sistema, continuaremos a agir de forma a minar nossa busca individual por liberdade e nossa luta por libertação coletiva (bell hooks, 2006).

Para se contrapor a isso, bell hooks (2006) propõe a construção de uma ética do amor. Sem ela, tendemos a cair, de uma maneira ou de outra, nas teias sedutoras dos diferentes sistemas de dominações que estão baseados em uma cultura anti-amor. A violência e o ódio ao outre são os seus sustentáculos, configurando uma falsa dicotomia do “nós” x “eles”. Nesta perspectiva, bell hooks (2006) nos diz que é preciso aprender a amar, sendo fundamental para esse processo a consciência crítica construída por meio de outro processo, o da descolonização. Nas palavras da autora:

Sempre que aquelas/es de nós que são membros de grupos oprimidos se atrevem a interrogar criticamente nossas posições, as identidades e lealdades que informam como vivemos nossas vidas, iniciamos o processo de descolonização. Se descobrimos em nós mesmas/os auto-ódio, baixa autoestima ou um pensamento branco supremacista interiorizado e os enfrentamos, podemos começar a curar. Reconhecer a verdade de nossa realidade, tanto individual como coletiva, é uma etapa necessária para o crescimento pessoal e político. Este é geralmente o estágio mais doloroso no processo de aprender a amar (...) Movendo inteiramente a dor para o outro lado, encontramos a alegria, a liberdade de espírito trazidas por uma ética do amor (...) A ética do amor enfatiza a importância do serviço para outrem (...) a importância da comunidade (bell hooks, 2006).

A contratação de Robinho foi suspensa, mas este texto não é sobre esse fato exatamente, mas sobre nós como sociedade e os nossos atravessamentos afetivos marcados por diferentes pontos cegos. Cada vez mais fica evidente que a forma como estamos vivendo, não dá mais. Os limites precisam ser reestruturados não apenas no plano formal e dos discursos, mas, sobretudo, das práticas. Urge a necessidade de uma coerência mínima entre o que é dito e o que é concretizado. Contradições existirão, mas delimitadas por alguns limites éticos com linhas que não podem ser ultrapassadas, isso englobando as mais diferentes instâncias que são interligadas: pessoais, socioculturais, institucionais e estatais.

Precisamos nos engajar em ações de curto, médio e longo prazo. Nós, mulheres e feministas, estamos aí envolvidas em ações nas periferias, nas universidades, nas redes sociais etc. para a “infelicidade” de muitos/as. Quaisquer movimentos sociais que mexam com as estruturas do status quo entram para o time da desqualificação, da invisibilização histórica e do sempre menos, inferior. Há também a absorção de algumas pautas pelo sistema capitalista, que possui alta capacidade adaptativa, produzindo releituras e transformando quase tudo em mercadoria.

Os movimentos feministas são diversos, compostos por conflitos, desafios e dificuldades como quaisquer movimentos sociais. Não somos ingênuas e nem muito menos acreditamos que os feminismos em si vão “salvar a humanidade”. Apostamos sim nas nossas potências, nos feminismos que se articulam a outras lutas e a vida mais ampla, que reconhecem as interdependências dos sistemas de opressões e cujas ideias e ações estejam ou busquem se pautar por uma ética do amor, como nos convoca bell hooks (2006). Uma ética que desloca os afetos de suas imbricações com a manutenção das hierarquias de poder e de suas desigualdades, que conecta as afetividades ao bem comum, das coletividades, e à luta por justiça social. Por tudo isso e pelo o que ainda está por vir, que somos Felizmente Feministas, Graças às Deusas!

Referências:

G1 Santos. Santos lança campanha de combate a violência contra a mulher na pandemia. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/santosregiao/noticia/2020/05/24/santos-lanca-campanha-de-combate-a-violencia-contra-amulher-na-pandemia.ghtml

Acesso em: 20 out 2020.

hooks, bell. Love as the practice of freedom. In: Outlaw Culture. Resisting Representations. Nova Iorque: Routledge, 2006, p. 243–250. Tradução para uso didático por Wanderson Flor do Nascimento. Disponível em: https://medium.com/@uflordonascimento

THEMIS - Gênero, Justiça e Direitos Humanos. O Brasil é um dos piores lugares do mundo para se nascer menina. Disponível em: http://themis.org.br/o-brasil-eum-dos-piores-lugares-do-mundo-para-se-nascer-menina/ Acesso em: 20 out 2020.

*O título do texto é uma paráfrase do livro escrito por Zelia Gattai intitulado: Anarquistas, Graças a Deus. 

*Texto publicado originalmente na seção Debates e Pensamentos do Observatório de Análise Política em Saúde:

http://www.analisepoliticaemsaude.org/oaps/pensamentos/d1f042bc2b662f8c3fb43395c65c2f4f/1/

 


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