Tudo vai passar...
Esta deve ter sido a frase mais ouvida nos primeiros meses de 2020 e, com certeza a mais desejada naquele momento de insegurança em relação ao futuro. Sensações obscuras e ambivalentes se misturavam aos anseios de normalidade.
Era assim que Cristina se sentia naquela manhã de junho, um sábado, quando saiu para dar uma volta de carro pela cidade com seu marido e suas duas cachorrinhas.
Após alguns minutos de ar fresco no rosto, passando por um supermercado, seu marido resolveu entrar para comprar alguma coisa que ela nem ouviu direito o que era, apenas pediu que não o fizesse, devido ao grande movimento que estava, mas não adiantou. Pararam no estacionamento.
A fila virava a esquina...
Entre o colorido das máscaras Cristina percebia a angústia nos olhares cabisbaixos que se aglomeravam entre pessoas apressadas e carros que iam e vinham não se sabe de onde nem porquê. Será que precisavam mesmo estar ali? Não poderiam deixar o que “achavam” que tinham que fazer para outra hora? Outro dia? O medo não as assustava?
Sentimentos de tristeza e inquietação lhe sacudiram a alma enquanto no banco de trás Pedrita e Nina, suas cachorrinhas, brincavam alheias à imensidão dos seus pensamentos e à lugubridade do seu olhar...
Que mundo é esse? Pensava. Pessoas unidas apenas por uma tela de fundo azul com vozes entrecortadas... Tudo tão diferente de como costumava ser.
— Pronto! — Disse seu marido entrando no carro com uma sacolinha do supermercado na mão. — Não foi rápido?
Cristina não respondeu, e no caminho de volta para casa, de onde já não saía há mais de um mês, foi observando aquelas pessoas, cujas máscaras escondiam os sorrisos, mas deixavam à mostra os olhares, em sua maioria nada preocupados com a fúnebre atmosfera que pairava no ar, pelo menos para ela... Lágrimas teimaram em escorrer dos seus olhos, exteriorizando o que sentia no coração naquele instante. Sozinha. Em silêncio. Envolvida por seus pensamentos...
Por um momento o vírus a pegou; não o da doença, mas o da incerteza e da dor. Como seria possível se sentir feliz diante de tanta infelicidade?
Este pensamento lhe atormentava o espírito desde que a pandemia do coronavírus começou a fazer vítimas, o que a obrigava a viver num constante exercício de controlá-lo, desde então. Tarefa difícil frente a um cenário de sofrimento e morte, mas necessária para manter a saúde mental e emanar boas vibrações para o planeta.
Nesse constante ir e vir de sentimentos, a vida seguia seu curso. Dias mais alegres, outros nem tanto, mas “é assim mesmo”, como ela sempre dizia quando sabia que não poderia mudar os acontecimentos.
Foi então que um certo dia, sentada na frente de sua casa enquanto suas cachorrinhas caminhavam pela redondeza que ela avistou um senhor que vinha em sua direção. Ele tinha as barbas grisalhas e longas, usava um terno branco antigo, um chapéu côco e trazia na mão uma maleta que parecia estar pesada.
Pensando que as cachorrinhas pudessem assustá-lo, Cristina as recolheu mas continuou sentada na escadinha do portão. O senhor parou diante da casa vizinha, apertou o interfone e aguardou até que a dona da casa saísse. Os dois conversaram por alguns minutos, ele abriu a maleta, ela olhou, fez sinal negativo e entrou. Ele fechou a maleta e continuou seu caminho.
O que haveria naquela maleta? Por um instante seus pensamentos flutuaram numa nuvem de fantasia imaginando que tipo de conteúdo misterioso haveria lá dentro...
O senhor atravessou a rua, apertou o interfone da casa da frente e a cena anterior se repetiu. Ele então caminhou em direção a Cristina que já se achava ansiosa de tanto imaginar o que ele estava oferecendo e suas vizinhas não aceitaram. Bem que poderia ser uma vacina, ou um remédio realmente eficaz para esse vírus desconhecido que assola o planeta, pensou.
Enfim, o senhor aproximou-se dela, abaixou-se e colocou a maleta no chão, como se soubesse que ela queria ver o que havia em seu interior.
— Boa tarde! — Cumprimentou-a com um sorriso amigo nos olhos por trás da máscara escura que usava.
— Boa tarde. — Retribuiu. — O que o senhor tem nessa maleta?
Neste momento até Nina e Pedrita que estavam deitadinhas do lado de dentro da grade pareciam estar interessadas na resposta que viria a seguir.
— Tenho sonhos... — Respondeu o senhor com um outro sorriso no olhar, só que dessa vez, desafiador.
— Sonhos?
— Sim! — Respondeu ele abrindo a maleta. — Nesse momento tão difícil que estamos vivendo precisamos nos alimentar de sonhos...
Cristina olhou para dentro da maleta, com o coração acelerado, pensando no que encontraria: seria um produto novo? Doces? Ou quem sabe um pó encantado capaz de transformar as tristezas em alegrias? Não, eram livros!
Livros? Por que alguém estaria vendendo livros de porta em porta na era da tecnologia? Será que aquele simpático senhor havia perdido o emprego por causa da pandemia e estava vendendo o seu acervo? Então ela se compadeceu daquela simpática figura que andava pela cidade, carregando uma maleta bem pesada!
— Desapontada? — Perguntou o senhor.
— Não... — Respondeu Cristina encantada. — Eu adoro ler!
Observou que eram livros antigos, amarelados pelo tempo, e traziam em si, além da própria história as histórias de pessoas que já haviam viajado por suas páginas recheadas de aventuras.
— Por quanto o senhor está vendendo cada um? — Perguntou já escolhendo qual compraria para ajudá-lo.
— Eu não estou vendendo os livros. — Respondeu o senhor com os olhos tão brilhantes que pareciam mágicos. — Estou oferecendo às pessoas a possibilidade de saírem da quarentena...
E de fato estava! Um livro pode levar as pessoas aos mais variados lugares e situações, e o mais importante, sem tirá-las de casa, o que não seria aconselhável num momento de pandemia.
Cristina percebeu que os dois teriam muito o que conversar e embora as máscaras escondessem os sorrisos, os olhos se abriram num doce encontro.
— Qual o seu nome? — Perguntou.
— Carlos. — Respondeu o senhor. — E o seu?
— Cristina, sou professora.
Para sua surpresa, o senhor Carlos lhe disse que também era professor, só que aposentado, e acreditava na importância da leitura na vida das pessoas. Disse também que todos aqueles livros que estavam na maleta haviam sido escritos por ele.
Dessa vez foram os olhos dela que brilharam... Cristina amava inventar histórias, desde bem pequenininha. Criava seus personagens com bonecas e desenhos e se apresentava para toda a família. Quando tinha uns 5 ou 6 anos, seu pai colocou uma cortina na garagem da casa onde moravam para que ela pudesse fazer suas apresentações. Eles amavam ouvir suas peripécias verbais...
— Por que o senhor decidiu sair distribuindo seus livros? — Questionou Cristina curiosa em saber qual história estava escondida em todas aquelas páginas amareladas que se escondiam no interior da maleta.
Então o senhor Carlos olhou-a docemente, brincou com as cachorrinhas, que à essa altura já eram suas amigas e apenas sorriu por baixo da máscara.
Cristina pediu para acompanhá-lo naquela pequena aventura de distribuir sonhos para que ele pudesse lhe contar sua história. Ele pensou por alguns instantes, decerto estranhando aquele inusitado pedido, mas a cumplicidade estabelecida entre eles já era evidente e ele aceitou. Ela fechou o portão, despediu-se das cachorrinhas e saíram caminhando devagar.
Sr. Carlos lhe contava sua história enquanto caminhavam entre uma casa e outra.
Havia sido professor de português em várias escolas da cidade durante quase 40 anos e acompanhara de perto muitas mudanças na forma de ensinar. Afirmava categórico que a única coisa que nunca mudou foi a leitura como forma de construir e visitar mundos.
Primeira casa. Palmas. Apareceu uma senhora com um pano de prato nas mãos, provavelmente terminando de enxugar as louças, dado o horário.
— Deixa que eu falo com ela. — Pediu Cristina.
Sr. Carlos consentiu com um gesto afirmativo.
— Boa tarde! Estamos distribuindo sonhos...
— Sonhos? — Perguntou a senhora se aproximando curiosa.
— Sim, respondeu Cristina. — Estamos vivendo um momento difícil, em que não podemos sair de casa; então estamos lhe oferecendo a oportunidade de viajar, sonhar e ficar mais feliz, mesmo que por pequenos instantes...
O olhar da senhora se iluminou. Os dois perceberam que ela havia sido conquistada pelo desafio. Sorriu e quis saber como. Então o sr. Carlos abriu sua maleta e lhe mostrou orgulhoso as suas obras.
— São histórias. — Disse ele. — Criadas por mim. Por meio delas a senhora poderá viajar sem sair de casa. Escolha uma. É um presente, um afago nesses tempos difíceis...
A senhora abriu o portão, remexeu os livros e escolheu um que se chamava “O mistério da cruz de diamantes”. Pegou o livro, folheou-o rapidamente e um sorriso se abriu em sua face.... Olhou sr. Carlos com carinho e agradeceu emocionada.
Os dois fecharam a maleta, se despediram e continuaram na jornada encantada da distribuição de sonhos.
Continuando sua história, o sr. Carlos contou que sempre teve uma vida simples com Aparecida, a esposa com quem vivia há mais de 50 anos num casamento feliz e repleto de companheirismo. Não tiveram filhos, apenas os livros que escrevia, cujas histórias eram compartilhadas com ela. Cada história que “nascia” os renovava como se fossem novas vidas que surgiam. Ficção e realidade se misturavam numa combinação fascinante e duradoura.
Segunda casa. Interfone. Dessa vem quem atendeu foi um jovem de mais ou menos uns 17 anos.
— Agora é minha vez! — Disse sr. Carlos.
Cristina fez uma reverência divertida.
— Boa tarde, meu jovem. Estamos aqui para lhe oferecer uma grande aventura!
O jovem olhou-os um tanto desconfiado, como é próprio dos jovens, mas a curiosidade o fez aproximar-se. — Como assim, uma aventura?
Sr. Carlos abriu sua maleta mágica e imediatamente o jovem abriu o portão. De dentro da casa surgiu correndo uma garotinha linda, de uns 10 anos, ruivinha e toda sardenta, com um ar muito sapeca, talvez atraída pelo barulho do portão. Se aproximou sorridente e curiosa. Apesar disso, os dois visitantes perceberam uma certa melancolia em seu olhar.
— O que é isso? — Perguntou.
— São passaportes para muitas aventuras! Vejam! Vocês podem escolher um para cada um... São presentes de um velho mago...
O semblante de ambos se iluminou de entusiasmo... Os dois remexeram na maleta e escolheram suas histórias: O garoto, após ficar em dúvida entre dois títulos, acabou escolhendo “Não é a mamãe” e a garotinha “Será o fim do felizes para sempre”? Já abrindo o livro, ela pediu que esperassem um pouco, entrou na casa correndo e voltou com um papel na mão.
— Também quero dar um presente para o senhor Mago. — Era um desenho muito colorido que retratava uma paisagem com flores. — Tome, é seu!
Sr. Carlos recebeu o desenho emocionado e agradeceu.
— É o lugar onde meu avô está agora... — Disse a garotinha num misto de tristeza a alegria estampado na face rosada... — Vou correndo ler a sua história!
E voltou para dentro da casa visivelmente mais feliz do que quando saiu pela primeira vez.
O jovem, que até aquele momento estava quieto, olhou bem nos olhos do sr. Carlos e falou com a voz embargada que os dois não poderiam ter escolhido um momento melhor para aquela visita. Todos da casa estavam muito tristes com a perda de um ente querido pela Covid 19, principalmente a garotinha que haviam acabado de presentear.
Foi então que os dois interlocutores entenderam o motivo daquele reflexo triste no olhar da ruivinha...
Os três só não se abraçaram naquele momento por que não seria conveniente, visto a situação de distanciamento social que estavam vivendo, mas o carinho demonstrado naquela troca de olhares conseguiu arrancar um sorriso do jovem que gentilmente agradeceu e entrou já folheando o livro curioso.
Sr. Carlos fechou sua maleta, guardou o desenho e continuaram. Cristina observou lágrimas rolarem dos olhos dele, mas preferiu não dizer nada. Em algumas situações, o silêncio é a melhor palavra. Pararam diante da próxima casa, tocaram o interfone, mas ninguém os atendeu...
Então os dois se sentaram num murinho que cercava o terreno vizinho, e embora mantendo uma certa distância física sentiam que já eram próximos. Por alguns minutos não souberam o que dizer.
— Vamos continuar? — Perguntou Cristina, na incerteza da resposta.
— Sim, mais um pouco, ainda faltam alguns “passaportes” para serem entregues... Respondeu sr. Carlos tentando colocar um sorriso de volta aos olhos.
Os dois se animaram e foram até o final da rua distribuindo sonhos, passaportes para aventuras e viagens fantásticas... Livros não! Ninguém mais recusou, afinal todos estavam ansiosos para viver novas emoções e acontecimentos inusitados...
A sedução implícita no convite o tornava irrecusável!
Alguns os receberam felizes, outros tristes, outros ainda alheios às ultimas ocorrências, como se nada tivesse mudado.
— Creio que de agora em diante será assim... — Disse sr. Carlos. — Novos ventos se aproximam! Teremos alguns momentos de brisa, outros de tempestade e ainda outros em que soprará tímido e inconstante sobre nossos cabelos um leve ar úmido e frio... E nesses teremos vontade de nos aninhar nos braços do Pai...
Cristina voltou no tempo, lembrando dos alegres almoços em família, dos divertidos encontros com amigos e dos abraços há tempos proibidos...
Sr. Carlos percebeu a nostalgia em seu olhar e acarinhou-a com um belo e grande sorriso, que fez com que seus olhos quase se fechassem... E ambos caminharam em silêncio de volta para a casa dela, onde Nina e Pedrita os esperavam com os rabinhos em rodopios de alegria... Alegria essa que os contagiou de uma maneira diferente, depois da pequena jornada que viveram. A fé havia renascido na alma dos aventureiros... Dois seres que se encontraram, não por acaso, para construir um castelo de quimeras diante do caos...
E consideraram que um caminho possível, talvez fosse usar a imaginação, o sonho, o passaporte para aventuras imensuráveis nos infinitos braços do tempo... E ainda refletir sobre as lembranças dos abraços que não aconteceram, das palavras que não foram ditas e das vidas que sucumbiram aos vários tipos de vírus...
— Ainda tem um livro na minha maleta mágica... — Disse sr. Carlos — Gostaria de oferecê-lo a você!
Abriu a maleta, pegou o livro e o entregou para Cristina. Na capa o título “Existe outra realidade? ” Os dois se olharam e riram abertamente...
— Existe!!!! — Disseram juntos. — E riram novamente numa relação de amizade que, com certeza, deveria vir de outras épocas...
E assim, entre risos, personagens e muito encanto se despediram, prometendo se reencontrar quando tudo voltasse ao normal, ou não, afinal, não sabiam ao certo o que seria normal daquele momento em diante.
Sr. Carlos fechou sua maleta, agora vazia e leve como seu espírito, feliz por ter encontrado uma parceira de aventuras e proporcionado momentos de insanidade para pessoas que se encontravam na “chatice” da lucidez cotidiana em tempos de pandemia.
Caminhou devagar até a esquina, parou, virou-se para trás e acenou... Nina e Pedrita correram até ele e pularam muito; Pedrita até pediu colo! Pareciam agradecer àquele mago que trouxe encantamento à rua onde moravam. Depois voltaram correndo e ficaram ao lado da dona, observando o sr. Carlos sumir na virada da rua, onde perceberam uma espécie de névoa azul...
Pela primeira vez, em quase 2 anos que morava ali, Cristina observou sua rua sob a luz da lua que começava a apontar no céu. E o que ela viu foi diferente de tudo que já havia visto... Luzes coloridas, fumaça em espirais, vagalumes que brilhavam como estrelas e borboletas fluorescentes... Loucura? Não, apenas reflexos dos sonhos que espalharam ao longo do dia....
Então fechou os olhos, respirou fundo um cheirinho de alecrim e entrou. Na cabeça outras realidades, como dizia a capa do livro que ganhara.... Seria possível?
E na sua lembrança ficou o sorriso escondido de um senhorzinho de barba branca que poderia ter iniciado, naquela tarde, com um simples gesto de distribuir sonhos, uma mudança que atingiria toda a humanidade, afinal, pequenas ações, repetidas muitas vezes e em muitos lugares se tornam grandes ações.
Foi aí que ela entendeu o porquê daquela criatura, talvez mágica, percorrer as ruas da cidade com suas histórias... Era a sua contribuição...
E teve a certeza que cada um poderia colaborar na edificação de um mundo novo...
Como?
Bastaria aceitar um passaporte de aventuras doado por um velho mago...