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eterno domingo atarefado

eterno domingo atarefado
Gabriela Luna
jul. 28 - 7 min de leitura
010


durmo, acordo, durmo, acordo, num eterno domingo atarefado. o corpo quente pelo sol das duas, vitamina atravessando a janela sem dó. estatelada nas camadas da morte passada, com o mundo embaçado, ponho café. a casa a mil por hora e eu acordei aqui, de novo. to começando a me acostumar. volto para o quarto, vejo a pilha de trabalhos acumulados. dedos e olhos examinando as pastas. dentre tantas tarefas de domingos, escolho uma pra executar.

no que eu quero ser feliz hoje? um rastro brilhante corta a parede. lambendo o quarto inteiro, deita seus raios sobre minha mesa de trabalho, me lembrando, ou obrigando, a acolher o tempo do sol. observo a cena, respiro, só tenho a esperar. com os olhos impressos no espelho, busco um agora onde colocar as voltas do tempo. uma forma de não só sobreviver, mas respirar o turbilhão, descobrir o ritmo desse imenso. descolar qualquer forma de ansiedade e desespero, qualquer apego. escorrer. morrer. não morrer antes de morrer. aqui. tanta coisa aconteceu e você-ainda-está-aqui, viva. ondulo um tapete azul, oceano esticado no chão.

o lado de dentro é tudo o que temos pra hoje, alongo o rastro. apesar dos pesares, dos temores, do passado. fisgando o peito, aceito. identifico, não me identifico. continuo a nadar. transpondo tensões. a palma de cada mão segura a planta de cada pé, serpenteando a coluna com algum tipo de clarão. conto, esvazio. o espectro de luz bifurcada transpassa o corpo em pose, desanuviando percepções.

tendões dilatados, a respiração se esvai. morrer por um momento. por um momento só. reorganizar. o lugar do amor, o lugar da morte. como é difícil perder um amor pra morte. amor. a morte. amor-te. adeus. agora. só agora. só tenho o agora, tantas vezes adiado, o agora. agora, agora. encarnado na noite que cai em silêncio, lubrificando o para raio dos sensos.

felicidade não é um sorriso na cara. o sorriso, muitas vezes, mascara. anos atrás eu não fazia ideia do que era sentir isso. eu vivia correndo. corria pra chegar na hora, corria do carro de polícia. corria de bala perdida e da milícia. corria pra receber, sem saber que isso era dar, me dar, me doar, eu nem sabia distinguir, esperar. uma carimbadora oficial. finalizando tarefas o suficiente para me afastar de qualquer rastro de mim mesma. o sorriso sempre no rosto, escondendo as entranhas em decomposição.

vendo daqui, respeitosamente, acho graça dessas voltas insanas da minha desventura em terra fria. acolho quem já fui. sinto meu corpo de ontem tremer por debaixo da pele de agora. uma folha dobrada, postura essencial. esboço das dobraduras possíveis. desdobro guerreira e solto. esbarro comigo no aqui e ali dos retângulos na parede. voo sendo mais quem sou, o corpo relaxado. qualquer música tocando. qualquer uma não, uma pra concentração. vou fazendo jogos comigo mesma, plano baixo, médio, alto, suuper alto. encontro por acaso com uma felicidade boba demais. parece uma névoa. de repente perco o tino, perco o tempo e nem sei a quanto estou aqui. é isso que você veio aprender, diz a voz na minha cabeça.

quadros e esquadros de um dia na quarentena. pc do colo pra mesa, faço o que tiver de ser. ainda tô pra decidir como me sinto sobre isso. por ora, sigo carimbando e entendendo os tempos de cada gesto. estou segura, não preciso correr. um longo caminho andado para quem sempre corre demais. pastas, dentro de pastas, dentro de caixas com papéis riscados em outros tédios, tempo pra resolver. desenrolar os novelos. linhas e mais linhas escritas em graffiti nas paredes. aspirar o ar do novo.

em contratempo, inspiro fincada no presente. concentração. fazer uma coisa por vez, mantendo-me presente em cada tarefa. concluir. passar pra próxima. realização.

durante tudo isso, banhos tão longos quanto um sonho se tornando possível. a prateleira abarrotada destas receitas caseiras abandonadas em busca de alguém. vaporizo preocupações, o tempo tem disso de ser quem vai. voraz ou singela, a água quente descola, ajuda a levar, já não aguento nem preciso aguentar; já não espero nem preciso esperar, solto. sinto o peso do gás saindo pelos poros, se misturando com a fumaça densa que enevoa a casa.

o jato quente flameja a derme, imprime sentenças na água corrente em lava. cabeça e músculos efervescendo. dissolvo e já deixei de ser, estar ou permanecer. me acalento no calor possível e sigo de volta ao quarto. detecto o calor marcando os trajetos do meu corpo na casa onde estou presa. essa mancha quente do banheiro pro quarto, do quarto pra cozinha, banheiro de novo, vez por outra, põe um nariz no quintal e corre de volta pro quarto. Ah, tenho um quintal!

mastigando a papelada, garanto uns metros quadrados. o preço é um valor combinado. ainda úmida, me jogo pra baixo das cobertas,onde fico até ter certeza de estar tranquila em cada célula do meu corpo. finanças equilibradas não significa, necessariamente, ter um emprego, mas dá trabalho. há quem seja acostumado com esse tipo de vida. eu, tô aqui, nessa lama, aprendendo a me moldar.

fui acostumada com suor na cara, internet discada e horas sendo roubadas pelo transporte público. a gente se acostuma, mas não devia. quando coloquei a mão em um cuspe no degrau de uma estação de trem, quis viver algo diferente. sem saber, eu desejei tudo isso.

desejei ter tempo pra me dedicar a essas tarefas acumuladas pelos becos da memória, para digerir essas crenças e construções, quase ruínas, martelando sentidos. eu quis acabar com a culpa. quis soltar o peso sem deixar cair em cima de ninguém. quis ser fiel a mim mesma. carregando só o preciso. reiniciar decibéis, rever a interpretação dos papéis.

conto mais vinte e quatro horas dentro. estar comigo. fecho os olhos, enxergo a tela. cada uma dessas pequenas telas, possibilidades gravitando na antimatéria. experimento algo novo: nem esperar, nem desesperar.

dormimos juntos todo dia, o Sedutor do Sertão e eu. me unto a pedidos da pele repuxando. são meus primeiros meses morando em um lugar frio, ainda estou reconhecendo as vantagens desse plano prime para o inverno.

entre quatro paredes de um quarto no interior de um estado que não é o meu, vivendo um status que ninguém me deu. alimento a melequenta. paro e observo.
 


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