E VOCÊ COMPROU
Marina Barrichello Marone
É madrugada em São Paulo, e, enquanto a lua some e os cães vadiam pela cidade, eu vou debulhando minha mente. Trato cada pensamento como um grão, e tal qual o agricultor que separa o bago bom do ruim por meio do crivo da peneira, eu separo meus devaneios por meio do crivo do coração. Um, em especial, me chama a atenção: a minha trajetória como leitora. Não há, afinal, coisa que me comova e impacte mais nessa vida do que a leitura! O porquê desse encanto eu faço questão de explicar aqui… E espero que você faça, também, questão de o ler.
Antes de mais nada, já advirto: não vou ficar repetindo que “ler é mágico porque te permite adquirir conhecimento…” ou que “ler permite voar sem ter asas, viajar sem avião…” etecetera, etecetera. Não que essas constatações não sejam verdade, mas elas já foram escritas, proclamadas, faladas, revisadas, deglutidas e vomitadas inúmeras vezes por inúmeros agentes ao longo da trajetória literária humana. Não cabe a mim repetir o óbvio. Que a leitura abre os portais da mente e diverte, instiga, fascina, todo mundo sabe, mas se prender a essa qualidade é como admirar uma moça apenas por seu físico. Há tanto mais numa moçoila além do sorriso, dos olhos e dos cabelos! Há os sonhos, as tristezas, os maneirismos, o silêncio… No caso da leitura, há a intenção de quem escreve.
Assim como enxergo na moça a beleza além do físico, admiro na leitura a qualidade além de seus atributos mais manifestos. Dessa forma, ler me traz êxtase por carregar sempre, consigo, uma intenção oculta. Juro-te de dedinho que, por trás de todo leitor, há um escritor e que, por trás de todo escritor, há uma intencionalidade. Trata-se de matemática básica: se há alguém lendo, é porque alguém escreveu por algum motivo. Essa relação, entretanto, nem sempre é manifesta como agora, em que você termina essa linha. Já parou, por exemplo, para pensar em quem escreve os cardápios dos restaurantes? O que faz alguém escrever “delicioso mix de folhas acompanhado de saborosos tomates-cerejas à brunoise” em vez de simplesmente “salada com tomate”? Ou o que faz alguém escrever na manchete “Jovem morre na favela” em vez de “Jovem inocente é executado na favela”? A resposta para ambas é uma só: vender.
No mundo contemporâneo, os grandes poderosos não são os capitalistas… São os escritores! E ainda mais poderosos que os escritores são os leitores que sabem ler para além da alfabetização. Que enxergam nas propagandas o verbo no imperativo, nos jornais neutros, a parcialidade dos adjetivos, nos decretos e leis, as ambiguidades das palavras e as reticências… Que sabem quando estão tentando vender um produto pífio, mas muito além disso, uma realidade inventada, uma narrativa, uma fake news! Poderosos são aqueles que não temem a mão armada, mas sim a mão letrada! Foram as letras, afinal, tão pequenas e inofensivas, que deram poder aos maiores benfeitores e tiranos da história da humanidade. Foram as palavras formadas pelas letras, e as frases formadas pelas palavras, e os textos formados pelas frases, que tornaram a escravidão, a chacina, a tortura, a miséria em lei, e uma vez lei, em realidade “aceitável”. Não foram só elas, mas foram também elas. E foram também elas que mudaram tudo, que trouxeram à tona os direitos humanos, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade! São elas que permitem escorrer da boca e da mão o pior (e o melhor) que há em nós. E ser um bom leitor é ter noção disso.
Termino, pois, essa reflexão satisfeita. Satisfeita porque você me leu até aqui, provando que a leitura é de fato fantástica. Talvez possa não ter convencido que um leitor é mais poderoso que um capitalista, mas decerto fiz germinar na sua mente a imagem de uma lua, de um cão, de um grão, de um agricultor, de uma moça, de uma salada. Fiz você investir um momento da sua existência em uma fileira de caracteres. Cobrei de você sinapses. E isso basta! Saia daqui como quiser, leitor, eu já vendi o que queria. E você comprou...