É uma solução primitiva, há de se convir. Longe de mim querer desafiar o isolamento ou incitar você a desrespeitar a quarentena, não sou presidente de nenhuma república. Somente me chama a atenção o fato de que, trezentos e cinquenta mil anos após o homo sapiens arcaico começar a ser humano, a melhor tecnologia que encontramos para lutar contra um vírus, mortal, certo, transmissível, muito, mas banal como um ser que nem possui DNA, é ficar parado. Aliás, nem isso conseguimos. Para que homo sapiens de sapiência questionável consigam ficar parados em casa, é preciso, muitas vezes, apelar para algo ainda mais primitivo. Armazenado em nosso cérebro reptiliano, talvez a parte mais antiga de nosso corpo animal, alojado logo acima da coluna, o medo.
Entupidos de medo, paralisamo-nos.
Veja bem, não é que não sejamos capazes de desenvolver tecnologias, nem que sejamos, fundamentalmente, primatas. Apenas, me parece, temos um péssimo senso de prioridade no momento de decidir para qual atividade vamos direcionar o incrível potencial de nossas criativas mentes humanas. Podemos usar um outro exemplo para ilustrar essa nossa limitação, que é para não ficar monotemático. Todo mundo que já colocou, assistiu colocar, ou se engajou no processo e assistiu a colocar, uma camisinha, sabe que essa não é, assim como não o é o combate a gripes, vírus e afins, uma área prioritária no desenvolvimento das tecnologias que julgamos necessárias para uma passagem proveitosa e serena pelo planeta Terra.
Pense bem: enviamos outros seres humanos para a Lua, e também macacos, percorremos Marte com sondas espaciais e colocamos câmeras angulares em smartphones. mas, na hora de transar, uma das atividades mais divertidas que fazemos em vida, sublime mesmo, divina, no momento em que ativamos em nossos corpos toda a potência da energia vital, vinda lá do primeiro chakra, na base da kundalini, a mesma energia capaz de abrir os portais da vida para outra alma, e nos preparamos para fusionar essas energias, a nossa e a da outra pessoa, em êxtase, e é de se esperar que todas as pessoas envolvidas cheguem ao êxtase, ou que, pelo menos, gozem, e então encontrar a comunhão com o divino por meio do sexo, como fazia-se antigamente, ou, pelo menos, caso seja só uma rapidinha no intervalo do almoço, liberar um banho de substâncias químicas deliciosas no corpo, endorfina, serotonina, oxitocina, o que fazemos?
Nesse momento singular da experiência humana na Terra, nós paramos, pegamos um pacote plástico particularmente difícil de abrir, tiramos de dentro um pedaço de látex oleado por algum lubrificante artificial e passamos os próximos segundos, que, dadas as circunstâncias, invariavelmente parecem uma eternidade, revestindo nossas genitálias com uma borracha vulcanizada quimicamente tratada. Em tempos de mundo digital e isolamento social, sexo seguro tem cheiro de plástico.
Isso, obviamente, não é motivo para você não usar um preservativo na hora em que o confinamento acabar e você decidir fazer uma quarentena ao contrário, ficando quinze dias sem voltar para casa. Tampouco é uma apologia ao sexo hippie dos anos 1960. É apenas uma constatação de que, trezentos e cinquenta mil anos depois, um milhão de pessoas contraem uma doença sexualmente transmissível todos os dias no planeta Terra, e o máximo de evolução tecnológica que alcançamos nessa área da vida foi colocar látex artificialmente lubrificado no pênis, e dou graças por ter nascido no século XX, há não muito tempo o pessoal se protegia com membrana de intestino de cordeiro aromatizada com florais mesmo.
O que contrasta com essas soluções primatas, tanto a camisinha quanto o fique em casa, é o avanço tecnológico em outras áreas da experiência humana.
O medo e seus derivados, por exemplo, para aprofundar a anedota do início. A espécie humana tornou-se especialista em compreender, formatar e disseminar medo, em diferentes formas, para atingir os mais diversos objetivos. Os fins justificam os meios, diriam alguns, citando Machiavel, que jamais escreveu isso, se fôssemos estudar sua obra sob esse prisma, extrairíamos algo como: para atingir o bem coletivo, toda ação é válida. Essa é, me parece, uma das muitas dificuldades de interpretação que enfrentamos na utilização da palavra, ferramenta poderosa que desenvolvemos, ou nos foi dada, no caminho evolutivo entre a Lucy e a Siri.
Os tempos são dos famosos gatilhos mentais e do neuromarketing, duas expressões horrorosas utilizadas no marketing digital para implantar em você alguma necessidade artificialmente construída e manipular sentimentos de escassez e de ansiedade para concluir uma venda. Eu sei, também sou culpado. Estou apenas gozando essa deliciosa fuga para que a culpa tenha valido a pena, já paga. Autodeclaro-me livre de culpas, não reconheço a legitimidade de sentenças que me são impostas e a única pena que aceito é a que rabisca meu caderno, transcrevendo minha alma em orações que me mantêm vivo. Peço perdão se a letra não é do seu agrado, não sinto culpa.
De qualquer forma, acredito que a história do medo mereça ser contada desde antes, aproveitando para assim fazer um mea culpa com as pessoas que entopem o seu instagram com anúncios de produtos digitais indispensáveis para que a sua quarentena seja produtiva, fazendo, dessa forma, com que também a epidemia global tenha valido a pena. Pena essa que os vulneráveis vão pagar, os mais idosos e os que não têm uma casa confortável com conexão de internet para se exercitar e meditar assistindo às Lives, se tiverem água encanada e acesso ao saneamento básico já é uma benção. Bem, não quero ser extremista. Essa pena todos, de alguma forma, vamos pagar, mas, sejamos honestos, alguns sempre pagam em dobro.
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A história do medo, e do controle social pelo medo, e do desenvolvimento tecnológico que permite a disseminação de mensagens em diferentes escalas de medo, que asseguram objetivos diversos, nem sempre o bem comum, como gostaria Machiavel, pode começar a ser contada a partir de quando o medo foi institucionalizado. Aquele momento em que alguém inventou um deus que pune os pecados humanos e envia para um inferno chefiado por Lúcifer. Você, que inventou o pecado, esqueceu-se de inventar o perdão, canta Chico, não o santo padre, esse já assegurou o perdão a todas as pessoas que contraíram o coronavírus e decidiu que vão para o céu, se é que tem mesmo toda essa autoridade jurisdicional sobre o destino de almas humanas contaminadas por filamentos de RNA viral.
Entre o inferno, o lugar do medo, o pecado, seu veículo, e Lúcifer, seu chefe, comecemos por quem manda. Na verdade, em latim se escreve Lux Ferre e significa “o portador da luz”, nome bem simpático para alguém supostamente encarregado de encarcerar para a eternidade quem teve coragem de enfrentar o medo de pecar, ou quem sucumbiu a desejos pecaminosos, dependendo do seu ponto de vista sobre obediência e pecado, não vim aqui para julgar. O fato é que a palavra Lúcifer não aparece em nenhum lugar nos antigos textos. O que aparece é a palavra hebraica hêlêl, que significa brilhante, esplendoroso, e era utilizada para designar, segundo estudiosos que investem seu precioso tempo no planeta para desvendar esses pormenores da criatividade humana, o planeta Vênus, a quem chamavam de estrela alva, a que mais brilha. Não sabiam que o astro mais brilhante que viam no céu, depois do Sol e da Lua, não era uma estrela.
Não sei se Lúcifer veio de Vênus e trouxe de lá a chama que faz arder perpetuamente almas pecadoras, sem nenhuma chance de redenção, pobres coitadas, a menos que tenham contraído o coronavírus e estejam perdoadas, como já foi dito, restando apenas a querela jurídica de saber quem tem prevalência nesse caso, se é o Papa, porta-voz da salvação, ou Lúcifer, guardião do medo. Sendo Vênus um arquétipo da energia feminina em nosso sistema solar, a representação astrológica das qualidades de dedicação, harmonia e nutrição, e isso desde muito antes de existirem o Papa e Lúcifer, ou, pelo menos, no caso desse último, desde antes de tomarmos conhecimento de sua existência e de suas supostas funções no encaminhamento das almas humanas, me parece que houve algum mal entendido na tradução dos escritos antigos. Não sei se era para ter esse medo todo entre o céu e a Terra.
Por via das dúvidas, é melhor não pecar. A lista de pecados está aí para quem quiser evitá-los, embora concorde que seja relativamente difícil se manter atualizado sobre o que pode e o que não pode, mais ou menos como fazemos com o ovo na área da nutrição. Aí temos uma boa ideia para um livro, “Coisas que já foram pecado e não são mais”, e quem escrevê-lo poderá fazer, se quiser causar uma certa polêmica, o que certamente ajudaria a vender mais livros, rodas de conversa incitando os participantes a pensar em coisas que são pecado hoje e que um dia não mais o serão. É provável que lhe apontariam o dedo e acusariam essa pessoa de querer um passe-livre para pecar, como talvez alguns já me acusem, injustamente, de querer, com essas palavras que escrevo, escapar do isolamento coletivo. Os dedos seriam apontados com maior veemência caso quem escrevesse tal livro imaginário fosse uma mulher, sobre isso não há dúvidas, basta lembrar que você não ouve falar em magos e magas, mas sim em magos e bruxas, lembre ainda quem foi em maior profusão para a fogueira.
Na verdade, sempre primando pela honestidade, nem era preciso todo esse devaneio sobre listas de pecados e pecados que eram e não são mais, nem pecados que são, mas estão com os dias contados. Não conseguimos cumprir nem o básico.
Está lá, escrito, enviado diretamente por Deus, todo mundo conhece, pelo menos os mais elementares, a sacralidade da vida, não matarás, a sacralidade da propriedade privada, não roubarás, a sacralidade daquilo que os homens possuem, aparentemente com o aval divino, não cobiçarás a mulher do próximo. Antes que me acusem de algum -ismo, já adianto que o único que endosso é o ciclismo e estou apenas repetindo e destrinchando as palavras enviadas por Deus e transcritas pelo homem. Explico-me. Esse do em mulher do próximo é a contração entre a preposição de e o artigo definido masculino singular o. O artigo indica o gênero de próximo, nem precisaria tão óbvio está, masculino, mas, talvez isso passe despercebido, indica também que esse próximo é um, e apenas um, homem específico. A mulher, segundo esse mandamento de Deus, pode pertencer a um, e apenas um, homem. O pertencimento é estabelecido pelo uso da preposição de, que impõe uma relação de subordinação, pois é isso que preposições fazem, subordinam, entre a palavra mulher, um substantivo da mesma natureza que a palavra homem, e o adjetivo substantivado próximo. A construção é semelhante a que temos em ferramenta do pedreiro, por exemplo.
Dessa forma, a mulher, antes um substantivo livre, leve e solta, tornou-se posse subordinada a um, e somente um, próximo, homem, não podendo ser cobiçada pelos demais homens. Tomo a liberdade de inferir que também não possa ser cobiçada por outras mulheres, não está escrito por ser inútil, e talvez para economizar os escassos recursos de escrita à época, a mesma em que o espaço dado a mulheres para manifestarem seus desejos e cobiças era inexistente.
Confesso que não me sinto lá muito confortável com essa construção sintática, mas quem sou eu para discordar da sintaxe de Deus? A menos que, novamente, tenha havido um problema na interpretação e na transcrição da mensagem divina, novamente favorecendo o medo.
Qualquer que seja a escolha lexical, o fato é que não conseguimos evitar esse pecado, nem os outros nove, nem os de outras listas, falar em gula em plena quarentena me parece uma covardia. Sabendo-se dessa dificuldade humana em cumprir mandamentos e evitar desvios, montaram-se instituições para assegurar o justo encaminhamento das almas humanas para o céu ou para o inferno, conforme as ações que decidiram adotar em vida, amplamente amparadas pelo livre-arbítrio que lhes foi graciosamente concedido. Junto com essas instituições, estruturaram-se os devidos aparatos coercitivos, só para garantir que a justiça divina fosse de fato aplicada na Terra, em especial com relação às almas que deveriam ir para o inferno, essas não poderiam escapar de jeito nenhum. Talvez, no excesso, alguém tivesse algum direito adquirido de ir para o paraíso e acabasse no inferno, paciência, tempos atrás outro santo padre pediu perdão pelos crimes cometidos na inquisição, uma pandemia antiga. Se esse pedido de perdão retira essas almas, em sua maioria bruxas, do inferno e as envia para o paraíso é algo que não está claro, é provável que Lúcifer se oponha a esse entra e sai no local sob seu comando.
Gostaria de prosseguir falando sobre como criamos, a partir do medo, uma organização política que confere ao Estado o monopólio do uso da força e uma organização econômica baseada no paradigma da escassez. No entanto, já me alonguei muito e, além disso, os tempos não são dos melhores para uma troca tão aberta e construtiva. Não quero ofender ninguém. De qualquer forma, e a essa eu não consegui resistir, me parece claro que a expressão bandido bom é bandido morto situa-se em algum ponto da nossa evolução de homo sapiens arcaico para ser humano entre o olho por olho, dente por dente e o fundamento jurídico da presunção de inocência.