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Documentário: Egungun 1980 - Ilê Babá Agboulá

Documentário: Egungun 1980 - Ilê Babá Agboulá
Comunidade INfluxo
jan. 23 - 28 min de leitura
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Ilê Babá Agboulá

O Culto aos Egunguns é o culto aos ancestrais masculinos, uma vez que o culto aos ancestrais femininos denomina-se Gelede na religião iorubá e outras religiões tradicionais africanas.

Segundo a tradição, o culto de Egungun é originário da região de Oyò, na África. É um culto exclusivo de homens, sendo Alápini o cargo mais elevado dentro do culto, tendo, como auxiliares, os Ojés. Todo integrante do culto de egungun é chamado de Mariwó. Xangô (Ṣàngó) é o fundador do culto a egungum: somente ele tem o poder de controlá-los, como diz um trecho de um Itan:

“Em um dia muito importante, em que os homens estavam prestando culto aos ancestrais, com Xangô à frente, as Yàmi fizeram roupas iguais às de Egungum, vestiram-na e tentaram assustar os homens que participavam do culto. Todos correram mas Xangô não o fez, ficou e as enfrentou, desafiando os supostos espíritos. As Yàmi ficaram furiosas com Xangô e juraram vingança. Em um certo momento em que Xangô estava distraído atendendo a seus súditos, sua filha brincava alegremente, subiu em um pé de obi, e foi aí que as Yàmi atacaram e derrubaram Adubaiyni, a filha de Xangô que ele mais adorava. Xangô ficou desesperado, não conseguia mais governar seu reino, que, até então, era muito próspero. Foi até Orunmilà, que lhe disse que Yàmi é que havia matado sua filha. Xangô quis saber o que poderia fazer para ver sua filha só mais uma vez, e Orunmilà lhe disse para fazer oferendas ao orixá Ikù (Oniborun), o guardião da entrada do mundo dos mortos. Assim fez Xangô, seguindo à risca os preceitos de Orunmilà. Xangô conseguiu rever sua filha e pegou para si o controle absoluto dos egunguns (ancestrais), estando agora sob domínio dos homens este culto e as vestimentas dos egunguns, e se tornando terminantemente proibida a participação de mulheres neste culto. Por terem provocado a ira de Olorum, Xangô, Ikú e dos próprios egunguns, este foi o preço que as mulheres tiveram que pagar pela maldade de suas ancestrais, as Yami."

Ilê Babá Agboulá mais conhecido como Ilê Agboulá ou Omo Ilê Agbôula, localizado no Alto da Bela Vista, em Ponta de Areia, na Ilha de Itaparica, no estado da Bahia. Foi o primeiro terreiro do Brasil a cultuar os Egunguns trazidos da África. É hoje, no Brasil, um dos poucos lugares dedicados exclusivamente ao Culto dos Egun. Sua fundação remonta ao primeiro quarto do século XX, por Eduardo Daniel de Paula, Tio Opê, Tio Serafim e Tio Marcos, mas a comunidade que lhe deu origem e que lhe mantém os fundamentos está estabelecida na Ilha, há cerca de mais de duzentos anos, a contar de 1980. Essa comunidade se constitui de mais ou menos cem famílias que vivem da pesca, da coleta e venda de frutos e, hoje, de pequenos empregos propiciados pela indústria turística que se expande na Ilha de Itaparica. Mas apesar de toda a transformação que os novos tempos ocasionaram em Itaparica, a comunidade do Ilê Agboulá se mantém coesa orientada pelo Alàgbà Balbino Daniel de Paula, homônimo de Obarayi. Tanto que, mesmo os que por qualquer contingência não moram mais na Ilha, para lá retornam sempre que há oportunidade, nas ocasiões de festas e obrigações, reatando os laços que os unem à sua ancestralidade africana.

Ancestralidade Africana no Brasil

O Brasil é um dos países americanos onde a presença da África permanece mais nítida e mais forte, sob os mais variados aspectos. E essa presença se deve a um contingente populacional que, apesar de todos os fatores adversos, não apenas trouxe para cá suas culturas de origem como também as recriou, garantindo uma continuidade histórica surpreendente.

Mas a cultura "oficial" pouco ou quase nada conhece desse Brasil paralelo e muito peculiar, com seu conjunto organizado de ideias, conhecimentos, modos de ser e agir; com suas elites, suas lideranças, seus heróis e sua história; com sua literatura, sua arte, sua filosofia sua religião. Daí, a extrema importância deste documentário.

A PUJANÇA NAGÔ NA NEGRA BAHIA

Introduzidas no Brasil com a escravidão, as culturas negras imprimiram, cada uma com suas peculiaridades e em diferentes graus, marcas profundas em quase toda a extensão da alma e do território brasileiras. E na Bahia essa presença - que se recria hoje em importantes instituições como as comunidades terreiro - é devida basicamente à cultura dos nagôs, não que, vinda da África Ocidental, foi, entre o fim do século XVIII e o fim do século XIX, das últimas a serem escravizadas no Brasil.

Kêtu, Egba, Egbado e Sabé são alguns dos segmentos nagôs que vieram para a Bahia provenientes da grande área iorubá que compreende sul e centro da atual República de Benin, ex-Daomé; parte da República do Togo: e todo sudoeste da Nigéria. E todos eles - com destaque para os Kêtu contribuiram decisivamente para e implantação da cultura nagô naquele Estado, reconstituindo suas instituições e procurando adaptá-las ao novo meio, com o máximo de fidelidade aos padrões básicos de origem, fidelidade essa em parte facilitada pelo intenso comércio que se desenvolveu entre a Bahia e a costa ocidental da África durante todo o século XIX até os primeiros anos que se seguirem à Abolição.

Dentre as instituições dos nagôs que floresceram na Bahia, certamente uma das mais fortes é a tradição dos Orixás. Com efeito, desde princípios do século XIX, apesar de a única religião autorizada no Brasil ser a católica, as casas de culto dedicadas à adoração dos orixás já eram bem conhecidas. Por essa época, os cultos protestantes só eram permitidos quando realizados por europeus, e a religião tradicional africana era reprimida inclusive através da violência policial.

Durante o cativeiro, uma das únicas coisas que não se pôde roubar ao negro foi a fé religiosa. E essa fé foi sempre um fator de aglutinação a continuidade. Assim, a religião impregnou todas as atividades nagô brasileiro influenciando até a sua vida profana. Recriando, então, aqui, nas comunidades-terreiro, o espaço geográfico da África e sua herança cultural, foi justamente através da religião que o nagô conservou um profundo sentido de comunidade e transmitiu de geração a geração as raízes de sua cultura.

Além dos orixás, entidades divinas, poderes e patronos de forças puras da natureza, emanados da entidade suprema Olorum, os nagôs e seus descendentes sempre cultuaram também os antepassados, os Egun - aqueles espíritos de indivíduos que depois se converteram em ancestrais, em "pais" (Baba Egun). O culto aos antepassados, entretanto, não pode em hipótese alguma se confundir com o culto aos orixás, já que cada um deles tem doutrina e liturgia próprias.

Nos terreiros onde se renova a tradição dos orixás se cultuam também os mortos da casa e os grandes fundadores e fixadores da religião. Esses mortos ilustres são invocados no Padê, uma cerimônia propiciatória, assentados e consagrados no Ilê Ibô Aku, a casa de adoração aos mortos, situada num espaço separado do templo dos orixás.

Mas o culto a esses mortos, repetimos, não se confunde nunca com o culto aos orixás. E nem se confunde também com o culto aos Eguns, que são aqueles antepassados que tiveram o merecimento de ser preparados para sua invocação em forma corporizada.

O culto aos Eguns se realiza em terreiros específicos. O espaço onde se reverencia a memória dos antepassados é o Ilê Igbalé - representação de uma antiga clareira existente no amago da floresta africana e consagrada aos Egun. Neste terreiros, a invocação dos ancestrais é a própria essência e a razão maior do culto.

O CULTO: ELO ENTRE PASSADO E PRESENTE

Os nagôs, então, cultuam os espíritos dos "mais velhos" de diversas formas, de acordo com a hierarquia que tiveram dentro da comunidade e com a sua atuação em prol da preservação e da transmissão dos valores culturais. E só os espíritos especialmente preparados para serem invocados e materializados é que recebem o nome Egun, Egungun, Babá Egun ou simplesmente Babá (pai), sendo objeto desse culto todo especial.

Porque o objetivo principal dos cultos dos Egun é tornar visível os espíritos dos ancestrais, agindo como uma ponte, um veículo, um elo entre os vivos e seus antepassados. E ao mesmo tempo que mantém a continuidade entre a vida e a morte, o culto mantém estrito controle das relações entre os vivos e mortos, estabelecendo uma distinção bem clara entre os dois mundos: o dos vivos e o dos mortos (os dois níveis da existência). Assim, os Babá trazem para seus descendentes e fiéis suas bênçãos e seus conselhos mas não podem ser tocados, e ficam sempre isolados dos vivos. Suas presença é rigorosamente controlada pelos Ojé (sacerdotes do culto) e ninguém pode se aproximar deles.

Os Egungun se materializam, aparecendo para os descendentes e fiéis de uma forma espetacular, em meio a grandes cerimônias e festas, com vestes muito ricas e coloridas, com símbolos característicos que permitem estabelecer sua hierarquia. Os Babá-Egun ou Egun-Agbá (os ancestrais mais antigos) se destacam por estar cobertos de búzios, espelhos e contas e por um conjunto de tiras de pano bordadas e enfeitadas que é chamado Abalá, além de uma espécie de avental chamado Bantê, e por emitirem uma voz característica, gutural ou muito fina. Os Aparaká são Egun mais jovens: não têm Abalá nem Bantê e nem uma forma definida; e são ainda mudos e sem identidade revelada, pois ainda não se sabe quem foram em vida.

Acredita-se, então, que sob as tiras de pano encontra-se um ancestral conhecido ou, se ele não é reconhecível, qualquer coisa associada à morte. Neste último caso, o Egungun representa ancestrais coletivos que simbolizam conceitos morais e são os mais respeitados e temidos entre todos os Egungun, guardiães que são da ética e da disciplina moral do grupo.

No símbolo "Egungun" está expresso todo o mistério da transformação de um ser deste-mundo num ser-do-além, de sua convocação e de sua presença no Aiyê (o mundo dos vivos). Esse mistério (Awô) constitui o aspecto mais importante do culto.

A propósito, o texto de uma das cantigas rituais revela: (Gégé arò aso la ri/La rí, la rí/Gégé oro aso lèmon/Ako mó baba".

Texto fundamental para a compreensão dos conceitos básicos do culto, a cantiga quer dizer, em síntese, que embora vendo as roupas e objetos rituais, os assistentes e fiéis não sabem o que eles são realmente. A segure básico do culto dos Egun reside no fato de que ninguém pode saber nem querer saber o que há por sob aqueles panos coloridos que andam, falam, repreendem, dão conselhos e abençoam, já que a morte e os elementos que estão ligados a ela, não são e nunca vão poder ser conhecidos.

Mas somente os ancestrais masculinos podem se materializar e ser cultuados como Egun. E também só quem pode lidar com eles são os homens, embora algumas mulheres desempenham outras funções no culto.

Em contrapartida, Oyá Igbalé, entidade feminina conhecida também como Iansã Balé é cultuada junto com os ancestrais, é considerada rainha e mãe dos Egun, pois é quem comanda o mundo dos mortos. Na Bahia, nos terreiros de Egun, ela é cultuada num assentamento especial.

Importante também no culto é a presença de onilê, representação coletiva dos espíritos que moram dentro da terra, os ancestrais masculinos. E assim como Onilê, Exu e Ossanyin são também duas entidades importantes: Exu por ser o princípio dinâmico sem o qual nada existe, nada se realiza; e Ossanyin por ser o dono das folhas rituais, sem as quais também nenhum rito, seja ele do culto dos Orixás ou dos Egun, se completa. Dois outros aspectos a serem também considerados são a hierarquia dos postos na comunidade-terreiro e a utilização física do espaço ritual, onde se adoram os ancestrais tornados Egun.

Quanto à hierarquia, temos na base da pirâmide os Amuixan, neófitos em processo de iniciação, mas que ainda não têm poderes para invocar os ancestrais. Logo os Ojé, sacerdotes que, num grau superior de iniciação e merecimento se tornam Ojé-Agbá. Depois, os Alagbá, que são os chefes de terreiro. E, no topo da pirâmide, o Alapini, sacerdote supremo do culto, da seita, e da sociedade secreta dos adoradores dos Egungun. Além desses, há outros títulos e funções como o de Alagbê (músico ritual) e os ijoyê (detentores de postos honoríficos).

Quanto ao aspecto físico, um terreiro de Egun apresenta basicamente as seguintes unidades:

  • a) um espaço público, que pode ser frequentado por qualquer pessoa, e que se localiza numa parte do barracão de festas;
  • b) uma outra parte desse salão, onde só podem ficar e transitar os iniciadores, e para onde os Egun vêm quando são chamados, para se mostrar publicamente;
  • c) uma área aberta, situada entre o barracão e o Ilê Igbalé (ou Ilê Awô - a casa do segredo), onde também se encontra um montículo de terra preparado e consagrado, que é o assentamento de Onilê;
  • d) um espaço privado ao qual só têm acesso os iniciados da mais alta hierarquia, onde fica o Ilê Awô, com os assentamentos coletivo, e onde se guardam todos os instrumentos e paramentos rituais, como os Ixan, longas varas com as quais os Ojé invocam (batendo no chão) e controlam os Egungun.

    ILÉ AGBOULA: LINHAGEM E DESCENDÊNCIA

    Vindo para o Brasil, então, os nagôs trouxeram para cá sua memória familiar e procuraram preservá-la. Assim, muitos ancestrais venerados na terra dos iorubás - e que representam linhagens, dinastias, protetores de regiões e cidades, com funções diferentes e específicas - são também e até hoje cultuados na Bahia.

    E assim como o culto dos orixás, o culto dos Egun na Bahia remonta pelo menos ao início do século XIX.

    Nessa época já havia em Salvador vários terreiros dedicados especificamente à invocação e à adoração dos ancestrais. Mas como a história "oficial" pouco ou nada se preocupou com negros e como só através da tradição oral, dos rituais e de invocações dos antepassados é que esses negros conhecem seu passado, a história dos terreiros praticamente não tem registro escrito. Entretanto, para o brasileiro a religião é um elemento de coesão comunitária e de expressão de todo um modo de ser. Então, a história oral dos negros baianos nos fala da introdução do culto dos Egun, das comunidades nas quais esse culto floresceu, comunidades essas que permanecem, por seus descendentes, coesas na tarefa de manter a continuidade de sua história.

    Vamos, então, a um pequeno histórico dos principais terreiros de Egun da Bahia:

    Terreiro de Vera Cruz - Localizado na Aldeia de Vera Cruz, a mais antiga freguesia da Ilha de Itaparica, na Bahia de Todos os Santos, esse terreiro foi fundado e comandado pelo africano Tio Serafim, que invocava e fazia aparecer o Egun de seu prório pai, o qual ainda é cultuado sob o nome de Baba Okulelê. Tio Serafim morreu com cerca de cem anos de idade, entre 1905 e 1910, tendo plantado os fundamentos de sua casa de culto ainda bem jovem, por volta de 1820.

    Terreiro do Mocambo - Localizado também em Itaparica, na fazenda chamada Mocambo, onde havia um grande número de escravos. Seu chefe foi o africano Marcos Pimentel (conhecido como Marcos-o-Velho) que, comprando sua própria alforria, viajou à África com seu filho, que lá foi iniciado nos segredos do culto. Voltando, mais tarde, para a Bahia, os dois trouxeram o assentamento de Babá Olukotun, considerado um dos ancestrais de todo o povo Nagô, e então fundaram o Terreiro de Tuntun, Ilê Olukotun. O Egun de Marcos-o-Velho é cultuado hoje sob o nome de Babá Soadê.

    Terreiro de Tuntun - Também situado na Ilha de Itaparica, no antigo reduto de africanos denominado Tuntun, esse terreiro teve como chefe o filho de Marcos-o-Velho, Marcos Teodoro Pimentel (o Tio Marcos) que morreu já quase centenário por volta de 1935. Daí se deduzir que o Terreiro de Mocambo tenha sido fundado por volta de 1830 e este, o de Tuntun, que se originou, tenha começado a funcionar por volta de 1850.

    Terreiro de Encarnação - Encarnação é também uma localidade da Ilha de Itaparica. E o primeiro chefe da casa teria sido um filho de Tio Serafim (do fundador do terreiro Vera Cruz) chamado João-Dois-Metros. A importância desse terreiro é que lá é que teria sido invocado e aparecido pela primeira vez Babá Agboulá, um dos patriarcas dos iorubás.

    Terreiro do Corta Braço - Situado na Estrada das Boiadas, no atual bairro da Liberdade, em Salvador - fora, portanto da Ilha de Itaparica - esse terreiro tinha como um dos Ojé o legendário João-Boa-Fama e era chefiado pelo não menos legendário e notável Tio Opé.

    Tem-se notícias de várias outras casas que floresceram em Salvador, em Matatu, na Conceição da Praia, em Água de Meninos. E entre os Alagbá e Ojé de todos esses terreiros, certamente Tio Opé foi o mais destacado.

    Esse ilustre africano foi precisamente quem iniciou a Eduardo Daniel de Paula, filho de nagôs que, juntamente com seus familiares e descendentes de Tio Marcos e Tio Serafim, fundou o Ilê Agboulá, em Ponta de Areia, na Ilha de Itaparica, hoje no lugar denominado Bela Vista, onde se concentraram as pesquisas e os trabalhos do Projeto Egungun, sobre o qual falaremos adiante.

    O florescimento, então, de todos esses terreiros que enumeramos decorreu mais ou menos entre 1820 e 1935. Durante esse período, os fiéis, os sacerdotes, os chefes de culto, ou seja, as comunidades de cada um deles, se frequentavam, se relacionavam, trocando experiências, se constituindo como que uma irmandade, uma poderosa sociedade com características bem definidas.

    A partir desse inter-relacionamento, então, foi que os antigos terreiros sucederam uns aos outros e todos eles vieram, de carta forma, a se condensar no Ilê Agboulá.

    Localizado em Ponta de Areia, na Ilha de Itaparica, o Ilê Agboulá é, hoje, no Brasil, um dos poucos lugares dedicados exclusivamente ao culto dos Egun. Sua fundação remonta ao primeiro quarto deste século, mas a comunidade que lhe deu origem e que lhe mantém os fundamentos está estabelecida na Ilha, como já vimos, há cerca de duzentos anos.

    Essa comunidade se constitui de mais ou menos cem famílias que vivem da pesca, da coleta e venda de frutos e, hoje, de pequenos empregos propiciados pela indústria turística que se expande na Ilha de uns dez anos para cá. Mas apesar de toda a transformação que os novos tempos ocasionaram em Itaparica, a comunidade do Ilê Agboulá se mantém coesa. Tanto que, mesmo os que por qualquer contingência não moram mais na Ilha, para lá retornam sempre que há oportunidade, nas ocasiões de festas e obrigações, reatando os laços que os unem à sua ancestralidade.

    No Ilê Agboulá, no espaço do terreiro, que fica no Alto da Bela Vista residem apenas umas poucas famílias. Mas nas datas importantes do calendário litúrgico e nas obrigações, toda a comunidade - mesmo os que moram em Salvador e outros lugares - para lá acorre, permanecendo no terreiro dias e noites, reconstituindo assim os laços comunitários, recebendo as bençãos, os conselhos e as reprimendas dos Babá, estabelecendo enfim todo um processo de continuidade histórica. Daí, a grande importância do culto aos ancestrais: ele é um elemento de coesão grupal, de elo entre o passado e o presente, de fortalecimento de identidade cultural. Pois, enquanto o culto dos Orixás permite ao grupo religar-se ao cosmos, ao universo, o culto dos Egun é também um "religar-se", mas um "religar-se" através da ancestralidade, fortalecendo-se os laços sociais e comunitários. Assim, um religa o indivíduo e o grupo ao Universo; e o outro à sociedade.

    Então, como dizíamos, durante os ciclos litúrgicos toda a comunidade do Ilê Agboula se mobiliza. Famílias inteiras se deslocam para o terreiro. E alí, em pequenas casas construídas em torno dos lugares sagrados, se acomodam e se instalam enquanto duram as festas.

    As obrigações atravessam dias e noites. Os ritos cânticos, cores, indumentárias, ultrapassam o universo religioso, expressando um riquíssimo patrimônio cultural. Porque o Ilê Agboulá herdou dos antigos terreiros não só a liturgia, a doutrina e o conhecimento dos mistérios do culto, mas também os Egungun dos ancestrais africanos, aos quais se juntaram os dos Ojé falecidos no Brasil e que durante sua vida foram convenientemente iniciados nos mistérios do culto e suficientemente ilustres para serem hoje invocados e materializados como Babá, guardiães de uma cultura, inspiradores de modelos de comportamento, reavivadores da memória grupal, responsáveis pela continuidade histórica dos nagôs na Bahia.

    CALENDÁRIO LITÚRGICO

    As festas e obrigações obedecem, no Ilê Agboulá, a um bem elaborado calendário litúrgico. E durante essas festas podem ocorrer rituais não periódicos e não obrigatoriamente integrados no calendário, como iniciação de novos Amuixan ou de novos Ojé, ou mesmo obrigações e oferendas de outros titulados da comunidade. Mas o calendário, mesmo, obedece ao seguinte:

    Janeiro - Em janeiro, por ocasião do Ano Novo, as obrigações transcorrem até o dia nove. Esses rituais começam com uma obrigação para Onilê seguida de outra para Babá Olukotun. Junto com esta são celebradas as cerimônias anuais em homenagem a Babá Alapalá e Babá Ologbojô.

    Fevereiro - Em fevereiro, começando no dia 2 e se estendendo por duas semanas, ocorre uma festa muito especial, principalmente porque a comunidade de Itaparica vive do mar e para o mar. É a festa de Yemanjá e Oxum, deusas das águas, e de Oxalá, o deus da criação. A comunidade é que dá os presentes, mas os patronos das obrigações são os Egun Bakabaká e Amorô mi todô.

    Junho - Em junho, na época do São João, realizam-se as festas de Babá Erin, que é o Egun do Sr. Eduardo Daniel de Paula, fundador da Casa. As festas se realizam por ocasião do ciclo de Xangô, que era o orixá do Sr. Eduardo. E atingem grande brilhantismo porque entre a comunidade do Ilê Agboulá, que é descendente do povo de Oyó, a veneração a Xangô é muito forte.

    Setembro - De 7 a 17 de setembro ocorrem as festas de Babá Agboulá. Por essa época é que é feita a colheita dos primeiros frutos na Ilha de Itaparica, sob a proteção de Babá. E isto é muito importante pelo fato de até bem pouco tempo a Ilha de Itaparica ter sido o grande fornecedor de frutas para a cidade de Salvador.

    EGUNGUN, UM PROJETO INICIÁTICO

    O Projeto Egungun, que deu origem a este documentário, nasceu da necessidade de classificar, ordenar e publicar o vastíssimo material (de som e imagem) que se foi acumulando durante muitos anos de convivência entre os fundadores da SECNEB e a comunidade do Ilê Agboulá.

    Os primeiros registros sonoros e fonográficos foram feitos em 1964, seguindo-se outros que deram origem a uma primeira catalogação e a um primeiro levantamento do material existente, feito em 1970, e à criação em 1980 do Centro de Documentação e Comunicação Pluricultural da SECNEB - Sociedade de Estudos da Cultura negra no Brasil.

    Formado por cientistas sociais e documentaristas, alguns deles líderes e integrantes das próprias comunidades negras, o Centro de Documentação se propõe a:

    • a) documentar o universo das populações negras para guardar uma memória grupal e, através da história cultural do grupo, reciclar esse grupo para uma conscientização e uma nova visão de seus valores culturais;
    • b) documentar, para, dentro desse enfoque, promover a identificação entre grupos semelhantes;
    • c) documemtar para promover e disseminar valores culturais, abrindo uma nova percepção transcultural.

    Partindo dessa proposta, e em face do material e pesquisa já realizados, a SECNEB se propôs desenvolver o Projeto Egungun, que compreende várias etapas. Este trabalho está se traduzindo na compilação e na organização de todo o material colhido, para a feitura de uma série de audiovisuais, um filme de longa metragem, uma série de discos e um livro.

    O filme - "Egungun, Ancestralidade Africana no Brasil" - é um esforço que visa a transmitir um recorte da vida do negro no Brasil. E assim também, o livro, que pretende reproduzir os depoimentos e todo o registro sonoro realizado pelas diversas equipes do Projeto Egungun.

    O Projeto registra aspectos significativos do patrimônio cultural da comunidade do Ilê Agboulá e do culto dos Egun e abrange quinze anos de trabalho, realizado não só por integrantes da própria comunidade como pelas equipes, que a SECNEB pretende "iniciáticas" (compostas de pessoas não necessariamente iniciadas nos mistérios do culto, mas tanto quanto possível, integradas na vida do grupo focalizado, para que possa documentá-la sem visões ou percepções etnocentristas, estranhas ao meio, deturpadas).

    A SECNEB, repetimos, é composta, também por integrantes de comunidade negras, e tem em seus quadros gente do Ilê Agboulá. Daí a perfeita viabilidade de projetos como este, em que o trabalho é desenvolvido com o cuidado de unir e não fragmentar, documentando, com seriedade e respeito, não aspectos isolados, mas um conjunto de acontecimentos e manifestações dentro de seu contexto social e histórico. E isto foi bem compreendido por outras instituições que, então, apoiaram a concretização do Projeto.

    Na parte de pesquisa comparada, a SECNEB teve o apoio da UNESCO, das Universidades de Ifé e Ibadan e do IRAD, Instituto de Pesquisas da atual República do Benin. No que toca à realização concreta do Projeto, a entidade obteve a colaboração da Fundação Cultural do Estado da Bahia. Quanto a financiamento e apoio logístico, a SECNEB teve ao seu lado a Embrafilme, o Banco de Desenvolvimento da Bahia - DESEMBANCO, e a Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico da Bahia.

    No todo do trabalho, a entidade teve consigo o apoio constante e o sábio aconselhamento dos Amuixã, Ojé, Alagbá, Alapini, que mantém viva a identidade e a chama da continuidade histórica da nação iorubá no Brasil.

    Veja aqui as primeiras imagens registradas do Movimento Egungun no Brasil, em especial à Ilha de Itaparica:

    FICHA TÉCNICA DO FILME

          Direção e Montagem: Carlos Brajsblat

          Assessoria e Pesquisa: Juana Elbein dos Santos e Dioscóredes M. dos Santos (Mestre Didi)

          Roteiro: Juana Elbein dos Santos e Carlos Brajsblat

          Fotografia: Edson Santos

          Som Doretp: Walter Goulart

          Co-Produção: SECNEB, EMBRAFILME, DESENBANCO, FUNDAÇÃO DO PATRIMÔNIO ARTÍSTICO E CULTURAL DA BAHIA.

          Agradecimentos: Comunidade Ilê Agboulá e Fundação Cultural do Estado da Bahia

             

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