Acordo num susto. Instintivamente pego o celular para checar a data e a hora, com o coração já batendo na garganta. Calma. Muita, muita calma. Hoje ainda não é o dia de trabalhar. Respirando fundo, deito a cabeça novamente no travesseiro e tremulamente devolvo o celular ao colchão. Só amanhã.
Ainda estou sonolenta - e como poderia não estar?-, mas não conseguirei dormir novamente com a dor da pulsação forte. Eu não quero olhar as redes sociais porque o assunto é um só, já decorado e recitado centenas de vezes ao dia, todos os dias. Não quero me levantar e precisar fingir que está tudo bem e que sou produtiva dentro de casa, porque não está, e não sou. Não quero ficar em silêncio e pensar, porque pensar é uma armadilha e é por isso que tenho tomado remédios que não são para mim. Sem pensamentos, sem sentimentos, somente torpor. Melhor desse jeito. Não quero nada. A título de informação, seria bom saber quantos dias já se passaram, mas, não ligo. Não quero.
...
Provavelmente acabei indo ao mercado, mais tarde, quando não foi impossível tomar banho e trocar de roupa. Provavelmente, também, observei as ruas vazias e devo ter pensado algo a respeito. Algo que gostaria de escrever. Na volta, carregando os itens de alimentação dos próximos dias, com algumas indulgências, certamente olhei para as portas fechadas da igreja. Lembrei-me de um sentimento.
Lembrei-me. Tempo Pascal. Portas fechadas. Não quero sentir. Não quero pensar.
Mais um dia em branco. Um não-dia, por assim dizer. Os únicos dias que existiam eram os dias em que eu trabalhava. E eu me esforçava bastante, contemplando a escala de revezamento, em fixar exatamente quais eram as datas e não me perder no tempo.
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Dia de trabalho.
Eu não tomei remédio no dia anterior para que minha cognição também não estivesse prejudicada hoje. Por consequência, não dormi. Por precaução, tomo um café bem forte com manteiga. Dica dos antigos. Meu coração acelera instantaneamente, e parece que aumentaram o volume do silêncio ao redor de minha cabeça. O mundo está finalmente em alta definição, de novo. Hoje é um dia de verdade. Dia de não fingir mais que não há uma calamidade da porta de casa para fora, e dia de fingir para os colegas e superiores de trabalho que tudo está perfeitamente ordenado.
Ainda não me acostumei à máscara de proteção, mas irei. Acostuma-se a tudo. No ônibus, sento à janela para sentir o vento soprando forte em meu rosto. Simulação de liberdade. Simulação de respiração desimpedida.
No consultório, as súplicas aos pacientes: somente urgência e emergência. Não, estética não é urgência. Por favor, vá para casa. Por favor, ajuste a máscara de proteção. Por favor, higienize as mãos com o álcool em gel. Por favor.
Café com manteiga me deixam agitada. Uma pandemia e revolução a nível mundial também me deixam agitada, mas culpemos as minhas ingestões. Não consigo almoçar. Nada passa pela minha garganta. Compro um pudim de mercado. É difícil deglutir. Meu estômago está lotado de alguma coisa indigesta.
Ao fim do dia, fiz um bom trabalho. Não me esqueci de nada, sorri invisivelmente para todos, não cometi erros. Está tudo bem, e eu estou tão mal, que preciso solicitar um carro de aplicativo para voltar à casa. Passo o trajeto todo quase desfalecida no banco, tentando não tocar em nada com as mãos. O motorista parece estar consternado por mim. Eu também estou, por ele.
Cheguei.
Minutos finais: livro-me do uniforme, livro-me da máscara, entro em um banho e saio de volta para os braços da indiferença pelos próximos dois ou três dias. Eu não quero saber de "lives". Eu não quero saber de adaptações. Eu não quero saber de dicas.
Eu quero saber de ansiolíticos, de comidas confortáveis e, de vez em quando, de livros. Os já publicados há muito, e que não podem ser alterados. Pedaços eternos de segurança.
Em breve, irei dormir.
E dormir, e dormir, e dormir.