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Diário do apocalipse

Diário do apocalipse
Camila Mossi
ago. 1 - 5 min de leitura
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É o sétimo dia de quarentena. E para falar a verdade, não é bem o que eu esperava do apocalipse. Eu, versada em distopias futuristas, estava pronta para utilizar minha lanterna, minha bússola. Sei nadar, pescar, fazer fogo sem álcool. Tenho boa mira e muito poucas questões em reagir com violência – legítima defesa – quando necessário. Como qualquer coisa que a terra dá. Cozinho com muito pouco e, convenhamos, sou mulher, não é qualquer dorzinha que me aflige. Pelo menos há uma década, estou completamente pronta para o apocalipse. Mas não há zumbis, bem, não os tradicionais.

Sorte, até. Depois que virei mãe, acho que não me sairia tão bem com os zumbis. Minhas crianças são tão apetitosas que eu mesma vivo mordendo elas. E todos sabemos qual é o destino das crianças no apocalipse zumbi. Ou das mães que tentam salvar as crianças. Os dos pais que tentam salvar as mães das crianças, o que não aconteceria comigo porque o Robson não pode com sangue – desmaiou no parto do Felipe e no da Malu foi direto pro bar. Ia desmaiar na frente do zumbi. Do jeito que é tonto, ia desmaiar em cima de um prato, com um pé de salsinha na mão.

Mas o apocalipse não veio em formato de super raiva, nem T-vírus, nem sabe-se-lá-o-quê contaminou as pessoas em The walking dead. O apocalipse – baixo orçamento que chama? – veio em formato de gripe. Tá que só uma mãe sabe o quanto gripes podem ser, mesmo, presságios do fim do mundo. Quando seu filho vem correndo, chorando, com uma bolha esverdeada inflando para fora do nariz e te abraça, esfrega carinhosamente a caca no seu cabelo, você sente a quase morte. Quando vomitam, então, metade do que comeram no almoço e metade da mesma gosma verde, você pensa em fugir pras colinas. Mas limpa, antes que o maridão veja porque, se não, o bonito vomita também. A criança vomita de novo. Em minutos se recria uma cena de O exorcista.

Como toda mãe já é fiscal de nariz por natureza, cuidar os sintomas de gripe é cotidiano. Nada fora do normal. A super higiene com as crianças, idem. Distrair as crianças o dia inteiro em casa? Só mais um dia de dupla jornada na história do mundo. Planejamento de suprimentos para uma quinzena? Desde que me conheço por gente, pobre trabalha com compra de mês. Isolamento social? Mais do mesmo, afinal, não podemos deixar as crianças sozinhas, nem levar para o rolê. E o Robson, que trabalha fora e aguenta um chefe tirano, ele, sim, precisa ir pro bar. Ver futebol. Relaxar. Ele, que está sempre cansado demais para as crianças. Não sabe que música elas gostam de ouvir. Não tem paciência para brincar e nem desconfia que elas são pequenas demais para jogar Hallo 5. Não sabe o que tem para comer. O que tem para vestir e onde estão seus óculos e suas chaves.

Eu, criada nos anos 90, estava pronta para o apocalipse. Resistiria bravamente até ao colapso da internet, porque, vamos lá, sei cozinhar umas vinte receitas diferentes com ovos e sei fazer amoeba com cola e massinha com farinha. Com minhas facas afiadas e kits de acampamento, estava pronta para o T-vírus. Eu, que sempre fui cliente fiel dos bactericidas e do álcool em gel também estava pronta para o coronavírus. A postos para defender meus filhos no apocalipse. O que eu não imaginava era que o grande empecilho para a paz na quarentena seria o Robson trancado em casa. Sem bar. Sem piadas infames no bar. Sem paquerar – sem nenhum talento – as moças jovens do bar. Sem futebol. Sem apostas perdidas no futebol. Sem chefe tirano. Sem buzinar no trânsito.

Nos primeiros dias ele reclamava. Acho que até chorou. Agora anda, desolado, com os olhos vermelhos e cabisbaixo, fazendo barulhos, enquanto as crianças se penduram nele. Esses dias, o Felipe o derrubou e a Malu pulou no peito do seu pai. Disseram que era ressuscitação, igual viram na tevê. Ele gritou que quase morreu, que eu não educo essas crianças direito e que é mesmo o apocalipse, que não aguenta mais a quarentena, que isso precisa acabar. Já é quase um zumbi, coitado. Se ele espirrar, darei misericórdia. Golpe único, bem dado. Espero que o estado compreenda o caso – legítima defesa – que para o apocalipse a gente até pode estar pronto, mas para ficar trancado com um homem ocioso, sem futebol e sem cerveja, ninguém nunca está preparado.


Camila Mossi
Ilustração: Dilara Özden's "Corona Fan Art" illustration (@istcaf - insta).


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