No Brasil, dentre o amplo espectro de pautas e temas abarcados pelos
direitos humanos, ancorados fundamentalmente na Declaração Universal dos
Direitos Humanos, é apenas sobre os ativistas de um segmento desse conjunto que
recai a incompreensão de boa parte da sociedade; trata-se daqueles que lutam
contra os abusos cometidos por policiais e agentes do sistema de segurança
pública em geral, além das questões relacionadas ao sistema carcerário[1].
Carregam pesado fardo pela estigmatização que sofrem; sobre eles recai a
cotidianamente vivenciada associação dos direitos humanos como defesa de
bandidos; são perseguidos por enunciados do tipo “direitos humanos para humanos
direitos”, “direitos dos manos”, “bandido bom é bandido morto”, “por que vocês
não visitam as famílias das vítimas?”, dentre outros, proferidos não só por
agentes da segurança pública, mas também pela maioria da população, inclusive
por pessoas de elevado nível de instrução.
Como as pessoas que sofrem essas violações são vistas como criminosas
(embora nem sempre o sejam), e geralmente moradores pobres das periferias das
cidades, parcela significativa da sociedade não se conforma que possam ter
direitos, como está na Constituição; acreditam, inclusive, que devam ser
torturadas e executadas.
Como consequência, brutal carga de ódio recai sobre os ativistas que
lutam contra esses arbítrios, como se tivessem que expiar pelos males da
sociedade. Isso não acontece com ativistas das demais pautas no âmbito dos
direitos humanos (por ex. feministas, LGBT, indígenas, racismo, saúde,
educação, moradia, trabalho etc.), que enfrentam outras agruras e perseguições[2].
O que se vê na sociedade brasileira é uma leitura dos direitos humanos
fora de sua concepção jus naturalista elementar, baseada na Declaração
Universal e incorporada na Constituição (artigos “Dos Direitos e Garantias
Fundamentais”), que é a ideia de que qualquer ser humano, seja quem for, é
portador de todos os direitos humanos[3],
sem qualquer hierarquização (princípios da inalienabilidade, indivisibilidade e
interdependência dos direitos).
O
preocupante, e com todos os riscos para uma sociedade que se quer democrática,
é que é justamente o contrário disso que pensa parcela significativa da
população brasileira.
Essa peculiar concepção mira a ação dos indivíduos (“mas, o que ele
fez?”) e não o indivíduo em si, portador de direitos inalienáveis,
pelo simples fato de ser humano.
O que aconteceu com o país para se chegar a essa situação?
Como se difundiu uma peculiar concepção de direitos humanos, invertida,
restrita, hierárquica, e que fundamentalmente persegue defensores de direitos
humanos e os iguala a defensores de bandidos? Como uma positividade discursiva[4] de
tal potência pôde prosperar em nossa sociedade? Como se operou essa “associação
negativa” em relação a um grupo de ativistas dentro de um todo maior de atores
sociais?
Entendo que as respostas a essas questões podem ser encontradas no
artigo “Direitos Humanos ou “privilégios de bandidos”: desventuras da
democratização brasileira”, de autoria de Teresa Pires do Rio Caldeira[5],
por meio da leitura dos acontecimentos de um período crucial de nossa história:
a segunda metade dos 1970 e a primeira dos 1980.
A autora lembra que na segunda metade dos 1970 dois movimentos emergiram
na sociedade brasileira: a luta pela anistia aos presos políticos da ditadura,
assim como as violações de direitos decorrentes dessa condição, e os chamados
movimentos sociais, sobretudo nas periferias das grandes cidades, baseados nas
lutas sindicais, habitação, saúde, educação, carestia etc., chamados também de
direitos coletivos (na verdade, a consolidação do segundo tipo de movimento se
deu nos anos 1980).
Caldeira (1991) aponta que a luta pelas violações de direitos de
prisioneiros comuns e nas abordagens policiais etc., vem no bojo desses
movimentos, como um alargamento do catálogo de direitos no país.
Interessante perceber que parcela dos ativistas que vão atuar nessa luta
são os mesmos que atuaram a favor dos presos políticos, mas se imaginavam que
seria apenas mudar o alvo dos sujeitos violados, se enganaram; as dificuldades
e diferenças foram enormes[6].
A recepção
da população em geral em relação à defesa de presos comuns foi totalmente
diferente daquela dos presos políticos. Por quê?
De acordo com a autora (Caldeira, 1991), para a maioria da sociedade, se
o crime cometido pelo preso político era discutível (e muitas vezes este
provinha de famílias de classe média e até ricas), quando se trata do comum,
não. Defender essas pessoas ultrapassou algum limiar intolerável, não
assimilado pela maioria da população, mesmo que estivessem sofrendo violações,
de acordo com a lei[7].
Coisa que não aconteceu, na verdade, com os movimentos sociais da época, embora
já sofressem ataques de setores conservadores da sociedade.
A autora (Caldeira, 1991) lembra o papel determinante de parte da mídia
como importante veiculadora de um discurso (“defender essas pessoas é defender
bandidos”, “não se deve gastar dinheiro público com eles” etc. quando não se
chegava a pedir a violência e até a morte) associado, em geral, a ideias de
impunidade, além de exageros nas narrativas (impressão do perigo constante,
sensação de medo e insegurança), ideias mentirosas sobre as condições
carcerárias etc.
Assim, programas de TV, e sobretudo de rádio (por ex. o de Afanasio
Jazadji),e jornais impressos (até mesmo O Estado de S. Paulo, em
algumas edições), além das falas de autoridades policiais (por ex. o Coronel
Erasmo Dias) atuaram como importantes operadores (numa alusão, de minha
responsabilidade, à abordagem discursiva de Michel Foucault; a legitimidade de
quem fala) desse discurso, a martelar a cabeça das pessoas diariamente.
A sociedade
“comprou” esse discurso e sua força é atestada pelo sucesso das duas figuras
mencionadas em pleitos legislativos, como candidatos mais votados.
Esses discursos, lembra a autora (Caldeira, 1991), constantemente
atacavam o governo, que tinha aceito o desafio de melhorar as condições
carcerárias, dialogar com prisioneiros e sobretudo tentar alterar a forma de
atuação das polícias (não é à toa que muitas dessas falas contra os direitos
humanos venham de policiais), herdeiras da atuação no contexto ditatorial
(lembremos que o Secretário da Justiça do Governo de São Paulo, José Carlos
Dias, era um ativista de direitos humanos).
Os operadores desse discurso associaram essas condutas ao aumento da
violência, da criminalidade, inclusive como efeitos indesejáveis da
democratização da sociedade (a ideia de que a mudança está piorando a
sociedade…).
Porém, o aspecto crucial, abordado pela autora (Caldeira, 1991), é a
ideia, recorrente nesses discursos, do privilégio. A sua tese aponta que a
veiculação discursiva levada a cabo por esses operadores foi a de que lutar
pelos direitos dessas pessoas é dar privilégios a bandidos, gastar com recursos
pagos pelos cidadãos (a ideia de que defender bandidos é luxo), além de alusões
à impunidade.
Como decorrência, se observa o desprestígio dos direitos civis
(liberdade individuais) em relação aos direitos políticos e sociais que foi se
disseminando na sociedade, como se vê até hoje. Assim, ”Uma vez feita a
associação direitos humanos = privilégio para bandidos, foi fácil destruir a
legitimidade dos direitos que estavam sendo reivindicados, e dos seus
defensores, tratados como “protetores de bandidos”[8].
A tese da autora (Caldeira, 1991) é a de que se tratou de uma tentativa
de resistência contra as mudanças que se estavam operando (ou se tentando) na
sociedade, em várias áreas, pressões e movimentos. Entendo que a seguinte
colocação é bastante elucidativa em relação à essência do processo:
“As falas sobre a violência e a insegurança sugerem uma preocupação com
o rompimento de um equilíbrio, com a mudança de lugares sociais e, portanto, de
privilégios. Não é difícil entrever por trás do discurso contra os direitos
humanos e sobre a insegurança gerada pelo crime o delineamento de um
diagnóstico de que tudo está mudando para pior, de que as pessoas já não se
comportam como o esperado, que pobres querem direitos (privilégios, é bom
lembrar) e, supremo abuso, prova de total desordem, quer se dar até direitos
para bandidos. Pode-se perguntar, contudo, se uma das coisas que se pretendia
obter com a exploração desse “absurdo” não seria a afirmação dos privilégios
daqueles que articulavam o discurso”[9].
Quer dizer, justamente a ideia de privilégios a bandidos, usada no
discurso contra os direitos humanos, tinha como objetivo conter a perda de
privilégios de alguns atores sociais, que poderiam ocorrer com as mudanças na
sociedade.
Independentemente dos argumentos da autora (Caldeira, 1991), observa-se
que o discurso contra os direitos humanos foi ganhando força e se consolidou,
sobretudo na década dos 1990, sendo usado por vários atores sociais, em
diferentes contextos, com diversos enunciados, mas mantendo sua matriz
fundante, sem rupturas e descontinuidades, com um vigor e aceitação
impressionantes, como uma prática de nossa sociedade que causa espanto a muitos
estrangeiros.
Prova desse foi vigor foi a recepção da atuação policial pela sociedade
em alguns eventos, tais como o Massacre do Carandiru (1992), chacinas da
Candelária e Vigário Geral (ambas em 1993), dentre outros, em que se poderia
imaginar o questionamento e indignação contra essa atuação; contrariamente,
receberam os aplausos de parcela significativa da população.
Lembremos, aliás, que o Cel. Ubiratan Guimarães, responsável pela invasão no Carandiru, se elegeu com largo número de votos, usando a cédula n. 111 (em alusão ao número de mortos no massacre).
[1]Entendo que
aqueles ativistas ligados à luta pela terra e habitação muitas vezes são
vistos, erroneamente, como criminosos. Embora a sociedade não tolere quem
comete crimes, Alessandro Baratta, ao discutir a teoria da rotulação social (labeling
approach),lembra: “(…) a criminalidade, segundo a sua definição legal, não
é o comportamento de uma minoria, mas da maioria dos cidadãos e que, além,
disso, segundo a sua definição sociológica, é um status atribuído
a determinados indivíduos por parte daqueles que detêm o poder de criar e de
aplicar a lei penal, mediante mecanismos seletivos, sobre cuja estrutura e
funcionamento a estratificação e o antagonismo dos grupos sociais têm uma
influência fundamental” (Baratta, Alessandro.Criminologia Crítica e crítica
do Direito Penal: introdução à Sociologia do Direito Penal. 6. ed. Rio de
Janeiro: Revan, 2011, p.112 e 113).
[2] Obviamente,
e comumente, um mesmo ator social pode atuar de forma simultânea em várias
dessas pautas, mas, no geral, quando ele está em ação “a favor de bandidos”, é
que costuma ser associado a defensor dos direitos humanos.
[3] Como
está no Preâmbulo da Declaração Universal: “Considerando que o reconhecimento
da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos
iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no
mundo…”
[4]Foucault,
Michel. A arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2013.
[5] Publicado
em Novos Estudos, n. 30, julho de 1991. Aspas no original.
[6] Podemos
citar o exemplo de Dom Paulo Evaristo Arns, que gozou de muito prestígio na
luta pelos presos políticos, mas na luta contra as violações associadas a
prisioneiros comuns, jovens e adolescentes moradores de rua etc., passou a ser
duramente atacado por muitos. Fato marcante foi a reação de parte da sociedade
quando celebrou um culto ecumênico para Joilson de Jesus, morto a pontapés na
Praça da Sé (São Paulo, SP), em 1983, depois de ter sido acusado de roubar uma
corrente de ouro.
[7]A autora
(Caldeira, 1991) chama atenção para um aspecto crucial para todo ativista dessa
pauta: não se defende o crime ou criminosos, mas estes têm direitos e as
violações devem ser denunciadas.
[8] Caldeira,
Teresa Pires do Rio. Direitos Humanos ou “privilégios de bandidos”: desventuras
da democratização brasileira. Novos Estudos, n. 30, julho de 1991,
p. 169. Aspas no original.
[9] Caldeira,
Teresa Pires do Rio. Direitos Humanos ou “privilégios de bandidos”: desventuras
da democratização brasileira. Novos Estudos, n. 30, julho de 1991,
p. 171 e 172. Aspas no original.