Foi punk. Aliás, está sendo. Nessas últimas semanas, com dois idosos dentro de casa com Covid-19, no caso, meus pais, precisei ser uma mulher mais forte do que Deus. A própria ideia de "Deus" - daquele que nos ama e vem ao nosso socorro - me pareceu distante, impotente em um momento de tamanha urgência e inquietação. Aliás, Deus, Estado, família ou qualquer outra entidade espiritual ou física que acreditamos que venha nos acolher e ajudar em meio às adversidades não está sendo suficiente. Continuamos nos sentindo frágeis diante de uma realidade "inexplicável" que nos tira o sono.
O "inexplicável"ganhou uma imagem particular na mente de cada um, sempre à espreita para sabotar um fio de luminosidade que tenta emergir na escuridão. Fantasmas pessoais também se somam aos fantasmas de uma nação desamparada. A morte de um ente querido doí mais quando a corrupção devora o dinheiro que seria remetido no combate à pandemia. A violência doméstica que revelou à vizinhança a verdadeira face das relações se torna ainda mais latente quando o emprego está sob ameaça. Não poder estar próximo de quem se ama por conta do isolamento social ganha um peso enorme quando se quer contar para todo mundo que a família vai crescer. E por aí vai. Tudo misturado.
Diante de uma realidade trágica, de onde tirar forças para caminhar sobre ruínas? Ruínas de projetos, ruínas de vidas...
A tentação ( e bem humana por sinal) é transformar o medo que nos dilacera em uma escolha existencial, nos transformando em seres raivosos, que não acreditam mais em nada ou ninguém, ou nos anestesiando pela apatia, cambaleando de copo em copo, tarja preta em tarja preta, navegando sem parar em vazio atrás de vazio. Mas a quem interessa sua paralisia? A quem interessa sua raiva?
Ao me sentir pequena e vulnerável, descobri que posso adotar a postura acima (ficar com raiva ou melancólica) ou fazer uma pausa, respirar um pouco e tomar consciência da seguinte frase (que inventei para mim durante esses dias): "que eu seja capaz de ver beleza onde há apenas desolação". É um mantra que pode ser desmembrado em vários outros, como "que eu seja capaz de abrir brechas para a poesia entrar na minha vida"; "que eu seja capaz de fazer o ar circular para as ideias se renovarem"; "que eu seja capaz de ser solidária e propor soluções"; "que eu seja capaz de agradecer mais do que pedir", etc.
É impossível passar por esta vida sem experimentar também o medo, a dor, o desamparo. Quem não sente nada disso é um psicopata, não é humano. Portanto, se acontecer algo que te faça sofrer, sofra, mas apenas o necessário. Existe uma medida para tudo. O excesso é autoflagelo. É autopunição. O medo em demasia não te fará uma pessoa mais segura ou precavida, mas te impedirá de se mover. E vida é movimento, com altos e baixos, mas movimento! Já o rancor elimina qualquer possibilidade de comunicação e afeto. E um mundo melhor - mais justo e amoroso - depende que as pessoas sejam verdadeiramente afetadas pela necessidade dos outros. O egocentrismo é sempre violento.
Pode ser difícil agora, mas sempre há beleza em algum lugar, ainda que discreta, onde você possa se agarrar. Se agarre no sol que entra pela janela, na refrescância do banho após um dia quente, nas luzes coloridas da cidade se fundindo às estrelas, na risada gostosa de sua criança, na gentileza de um vizinho, na mensagem engraçada que recebeu de um colega, nos legumes frescos bem lavados sobre a pia, na conquista de uma tarefa, por mais simples que seja, no caminhar de seu animal de estimação, na brisa que faz seu cabelo dançar.
Se há beleza no pouco, no quase invisível, então, tudo pode ser um pouco belo e menos terrível. Depende de quem vê.