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"Às vezes, parece que a gente não tem controle sobre a própria mente. É como se houvesse alguém lá dentro, tomando as rédeas e apertando botões que nem sabe

"Às vezes, parece que a gente não tem controle sobre a própria mente. É como se houvesse alguém lá dentro, tomando as rédeas e apertando botões que nem sabe
kaio Araujo
jan. 14 - 7 min de leitura
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Às vezes eu penso que existe uma certa voz na minha cabeça, uma voz que nunca me deixa em paz. Tá sempre arrastando cadeiras pela minha mente e nunca para de me encher o saco. Eu carinhosamente a apelidei de Jorge. Imagino ele sendo um adolescente de 16 anos, que ainda tá descobrindo a vida e não faz a menor ideia do que quer. Imagino ele numa sala cheia de botões, e cada botão é responsável por um pensamento ou ideia. Acho que, às vezes, ele fica meio entediado e sai clicando em quase todos os botões só pra ver o que dá.

De vez em quando ele solta umas vontades idiotas do nada. Como a vez que ele me fez querer fazer música, mesmo eu não sabendo cantar e muito menos produzir. Ou quando ele me fez querer começar a escrever livros, sendo que eu mal li um livro sequer. Ou quando ele ficou falando pra eu me matar. Kkkkkkk... Engraçado, né? Porque se eu por algum acaso morresse, ele também iria junto. Então por que ter uma ideia tão idiota como essa?

Recentemente, comecei a beber mais. Acho que é o Jorge tentando voltar a épocas de felicidade. Mas, poxa, Jorge, não dá pra voltar no passado. E mesmo que desse, não ia ser a mesma coisa. As pessoas que nos abandonaram tinham seus próprios motivos. A gente nunca teve controle sobre isso. Mas não precisa chorar... alguma hora, a gente encontra alguém. O foda é que, muitas vezes, ele não me escuta. Tipo, eu odeio fumante, mas às vezes o Jorge me faz querer começar a fumar. E confesso: é tentador. Não é nem pelo cigarro em si. É pelo ritual, sabe? Pelos dois minutos em que você pode só olhar pra parede e não precisar pensar em mais nada. Mas aí eu lembro que, se eu começar, o Jorge vai estar lá pra me lembrar, todo dia, que foi ele que teve a ideia. E isso me irrita mais do que qualquer coisa.

E eu fico assistindo, como se tivesse um vidro separando eu e ele, vendo o Jorge apertar os botões. Um botão amarelo que faz eu querer chorar do nada. Um botão vermelho que me dá coragem pra falar com alguém que eu gosto. E, de vez em quando, um botão preto, que eu acho que só serve pra me lembrar de como tudo poderia acabar. Mas o mais doido é que eu nunca vi ele apertar nenhum botão que me fizesse parar de pensar nele. Ele é tipo... um garoto que perdeu o manual da máquina e acha que pode dar um jeito sozinho.

Às vezes, eu me pergunto: será que o Jorge sou eu, ou será que eu sou só um boneco nas mãos dele? Porque quando eu quero algo, mas ele não quer, eu sinto como se o meu desejo desaparecesse. E quando eu faço o que ele quer, parece que ele ri, mas só por um segundo. Depois, ele volta a arrastar cadeiras dentro da minha cabeça, como se estivesse entediado. Talvez ele só goste de me ver em movimento, mesmo que eu vá na direção errada.

Às vezes o Jorge é meio filho da puta, porque eu quero só estudar, mas o Jorge quer ver desenho. Ou eu quero começar a escrever minha redação, mas o Jorge quer jogar LoL. E o que eu posso fazer? Não tem como dizer não pra ele. Afinal, a gente já passou por tanta coisa junto, ele merece um pouco de dopamina. Ainda mais depois que a Suzana nos deixou. Ah, o Jorge gostava tanto dela. Todo dia me fazia lembrar do cheiro do perfume dela e ficava me fazendo imaginar futuros em que eu e ela fôssemos um casal. Pena que ficou só na amizade...

Um certo dia, depois de uma longa conversa com o Jorge, ele finalmente me deu coragem pra me declarar pra ela. Só que, infelizmente, algumas coisas não são pra ser. Que nem eu e Suzana. E eu entendia muito bem isso. Mas o Jorge... coitado dele, tão novo. Depois disso, ele mudou. Parou de ficar arrastando cadeiras ou de apertar botões. Era como se tudo estivesse vazio. Como se ele nem estivesse mais lá.

Eu comecei a beber mais. Comecei até a fumar. Tudo pra ver se o Jorge aparecia de novo. Mas não adiantava. Não importa o que eu fazia, ele nunca dava sinal de vida. Eu me sentia sozinho sem ele...


Foi só depois de muita terapia que as coisas começaram a mudar. No começo, eu achava que o Jorge tinha morrido. Mas, na verdade, ele só estava perdido. Com o tempo, comecei a entender que ele não era meu inimigo. Ele era só... parte de mim. Uma parte que precisava de cuidado. E foi isso que eu comecei a fazer: cuidar do Jorge. Ou melhor, cuidar de mim mesmo.

Daí pra cá, a gente tava sempre conversando e sempre curtindo as coisas juntos. Às vezes ele fazia umas burradas, mas tudo bem. Eu decidi deixar meu cabelo crescer, e tava bem ridículo. As pessoas sempre falavam pra eu cortar, que tava feio. Mas o Jorge não. Ele sempre gostou. Na verdade, não importava o que eu fazia ou qual decisão errada eu tomava, o Jorge sempre me apoiou. Quando me assumi bi-gênero pros meus pais, eles encheram meu saco pra caralho. Foi cansativo... E o Jorge? O Jorge me fez comprar uma saia e um cropped. Eu fiquei me sentindo uma gostosa. Minha mãe odiou, ameaçou tacar fogo, mas eu não tava nem aí, porque o Jorge adorou.

E então eu conheci ele. Um garoto de cabelos cacheados, sorriso tímido, e um jeito meio desajeitado que me fez sentir algo que eu não sentia há tempos. O Jorge ficou radiante. Ele apertava todos os botões de alegria, fazendo minha cabeça borbulhar de ideias de como me aproximar, o que dizer, como impressioná-lo. E, pela primeira vez em muito tempo, eu não tava sozinho. Eu e o Jorge estávamos felizes. E acho que é isso. No final das contas, a gente só quer alguém pra dividir a bagunça que é viver.



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