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“Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”*

“Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”*
Paloma Silveira
dez. 11 - 13 min de leitura
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O ano de 2020 sem dúvidas será lembrado como aquele ano em que quase tudo para muitas pessoas se esfacelou, ficou em suspensão e/ou exigiu reinvenções com diferentes renascimentos. Um ano marcado por uma pandemia até então nunca vivida por muites, mas já anunciada peles ambientalistas e cientistas que analisam as mudanças climáticas provocadas pela destruição do meio ambiente que a humanidade capitalista anda fazendo. Muitas mortes causadas pela Covid-19, outras tantas mortes não, mas que de alguma maneira se relacionam também com esses tempos pandêmicos que têm aglutinado tantos desencantos.

Um ano de muitas brutalidades ditas e feitas de forma tão crua e perversa que em diferentes momentos pareciam irreais, mas infelizmente não foram. O Brasil racista, patriarcal, classista e genocida escancarado. A caixa dos horrores foi exposta, sem pudores. É verdade que esse Brasil sempre existiu. Nosso processo histórico marcado por uma colonização atroz e por ditaduras autoritárias e violentas não nos deixa esquecer, mesmo que alguns e algumas insistam em perder ou mesmo negar essas memórias. As marcas coloniais estão aí estruturando ainda a sociedade brasileira e presentes até em nossos genes, como mostram os primeiros resultados do projeto “DNA Brasil” (GOMES, 2020).

Também dentro desse processo resistimos, lutamos e alcançamos muitas conquistas importantes. Nos tempos mais recentes podemos destacar as conquistas presentes na Constituição de 1988, conhecida como a Constituição Cidadã. Nunca fomos um povo submisso e muito menos passivo, temos sim as nossas lutas e conquistas muito desprezadas e invisibilizadas, mas não é possível deslembrar completamente o que nos constitui tanto para o bem, quanto o para mal. São essas nuances que esse 2020 tem desvelado mais, ainda que com forças bastante distintas.

Inicialmente, veio à tona de maneira mais contundente esses nossos horrores. Com um antipresidente** do “E daí?”e que faz parte da política institucional há muito tempo, mas sem muita expressividade a não ser pelas barbaridades racistas, misóginas, LGBTfóbicas, dentre outras que sempre esbravejou, não teria como ser diferente. Recordemos o seu voto a favor do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, que sintetiza muita coisa: "Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim" .

Apesar disso e de tantas outras barbaridades, quase nada foi realizado para barrar alguém que nunca deveria ter ocupado a Presidência da República, caso seu crime de apologia à ditadura militar tivesse sido considerado, um exemplo. As instituições brasileiras deram mostras mais evidentes nos últimos anos das suas parcialidades, morosidades e ineficácias intencionais. Quase tudo se (re)organiza para a manutenção das estruturas de poder, das hierarquias e privilégios. Essa (re)organização não pode ser nunca completa, pois devem sempre existir as exceções para confirmarem as regras. E assim, a coisa pública vai se tornando cada vez mais privada e “democrática” para um seleto grupo.

Essa lógica estrutural de manutenção de privilégios tem penetrado os mais variados espaços institucionais, também há muito tempo. Desde as famílias até aqueles que se propõem a compreender e analisar criticamente tais fenômenos, as ramificações se fazem presentes. O dito, o escrito e o praticado têm se distanciado, faltando e muito a necessária coerência ético-política. Nem mesmo os tempos pandêmicos parecem ter sido capazes de produzir autocríticas profundas: o problema parece ser sempre de outres.

Reproduções e banalizações de diferentes opressões (racistas, machistas e classistas), vaidades excessivas, bajulações, hipocrisias e diferentes concessões são as regras para fazer parte desse “grupo” cujos privilegiamentos familiares, seleções viciadas na academia, judiciário etc com os/as preferidos/as previamente selecionados/as, têm mantido e fortalecido essa lógica. Justificativas como melhor currículo, maior preparo, trajetória acadêmica e profissional consolidada, a tal meritocracia, fartamente utilizadas para fundamentar a falsa ideia de que foi feito o “justo”, escamoteando privilégios e preconceitos, pois, o que fica mesmo difícil de encarar e reconhecer é que “narciso acha feio o que não é espelho”***, e não venham falar das famigeradas contradições. Há algo mais profundo que não só se referem as tais contradições humanas, o poder e seus sedutores tentáculos podem explicar melhor esses grandes descompassos e talvez também Freud, no jargão popular ele pode explicar tudo: “só Freud explica!”.

Nesse enredo composto por diversos subterfúgios para justificar o injustificável, os espaços que se consideram críticos vão assim se assemelhando e espelhando o que tanto criticam, evidentemente, com as raras e honrosas exceções. São nessas brechas que não apenas confirmam as regras que podemos encontrar resistências, perseveranças e novas/outras possibilidades para renovar e reinventar sonhos. Então, se em 2020 nossos horrores vieram à tona de forma mais contundente, causando e aglutinando tantas dores e desencantos, as brechas também estão aí teimando, mais uma vez e mais, e mais, nos dizendo: “Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”.

Se o planejamento continua sendo o de mortes totais, sejam simbólicas e/ou concretas, ele continua dando errado. Como bem disse Conceição Evaristo: “eles combinaram de nos matar e nós combinamos de não morrer”. Na política institucional, os resultados das eleições municipais desse ano trouxeram novos ventos. Erika Hilton, mulher trans e negra, foi a vereadora mais votada em São Paulo, chapas coletivas de mulheres negras foram eleitas, como por exemplo as “Pretas por Salvador”, além de indígenas eleitos/as vereadores/as e prefeitos/as de cidades como Pesqueira/PE, que se localiza em uma região marcada por conflitos. Eleições com um número recorde de candidaturas de quilombolas e indígenas (JARDIM, 2020; REINHOLZ; FERREIRA, 2020).

Alguns espaços críticos, os das brechas, ofertaram diferentes cursos e lives gratuitamente com temas relacionados aes que, em geral, não são es preferides: pensadoras/es negras/os e indígenas, feminismos negros, decolonias, queer, saberes ancestrais etc. Organizados em diferentes formatos que trouxeram as artes, literaturas e ancestralidades mesmo com as limitações dos ambientes virtuais. Ações realizadas por diferentes movimentos sociais, geralmente descritos pelos tais críticos/as narcisistas de forma pejorativa como apenas identitários, também estão garantindo a vida das pessoas nas periferias, reivindicando justiça pela morte de Miguel, asseguraram o aborto legal da menina de 10 anos estuprada pelo tio, lançaram diferentes manifestos como, por exemplo, Enquanto houver RACISMO, não haverá DEMOCRACIA**** e a Carta de Mulheres Brasileiras Feministas Antirracistas e Antifascistas em Defesa da Democracia, dentre outras ações.

São tantas potências e possibilidades que estão aí rexistindo, persistindo e teimando há tanto tempo que se torna quase incompreensível de entender como os autodeclarados espaços críticos não disputam também, permanentemente, essa hegemonia do cotidiano que pode produzir efeitos de curto, médio e longo prazo (potências para modificar algumas estruturas). Não adianta apenas participar de campanhas nas redes sociais como por exemplo, #FicaMCTI e Ninguém Solta a Mão de Ninguém, se declarar como antirracista, contrárie aos machismos e a todas as formas de opressões, ficar escandalizade com os números de feminicídios, de genocídios das populações negras e indígenas etc e no dia a dia reproduzir, de diferentes maneiras, o que tanto critica e escandaliza seja por ação ou omissão. Não adianta analisar os patrimonialismo, nepotismo e clientelismo se quando se tem a oportunidade se faz o mesmo, como por exemplo, nas seleções, privilegiando familiares e chegades. Não adianta tanta coisa e ao final apenas afirmar que são as tais contradições humanas dessa vida tão complexa.

Sim, as contradições e as complexidades da vida fazem parte da nossa condição existencial, mas não deveriam ser evocadas para sempre justificar o que não se quer encarar e realmente mudar, com a elaboração de ações mais efetivas. Podemos construir compromissos ético-políticos, sempre renováveis, mas com linhas que não devem ser ultrapassadas. Assim, o que deveria causar estranhamentos não são os movimentos de pessoas que andam desafinando o coro dos contentes, e sim os daquelas que de uma forma ou de outra preferem ainda continuar “paradas”, reproduzindo as mesmas estruturas adoecidas e adoecedoras. Diante de tudo disso e do vivido posso me considerar uma sujeita de sorte...

AmarElo 

Emicida

Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte Porque apesar de muito moço me sinto são e salvo e forte E tenho comigo pensado, Deus é brasileiro e anda do meu lado E assim já não posso sofrer no ano passado Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro (REFRÃO)

Eu sonho mais alto que drones Combustível do meu tipo? A fome Pra arregaçar como um ciclone (entendeu?) Pra que amanhã não seja só um ontem Com um novo nome O abutre ronda, ansioso pela queda (sem sorte) Findo mágoa, mano, sou mais que essa merda (bem mais) Corpo, mente, alma, um, tipo Ayurveda Estilo água, eu corro no meio das pedra Na trama, tudo os drama turvo, eu sou um dramaturgo Conclama a se afastar da lama, enquanto inflama o mundo Sem melodrama, busco grana, isso é hosana em curso Capulanas, catanas, buscar nirvana é o recurso É um mundo cão pra nóiz, perder não é opção, certo? De onde o vento faz a curva, brota o papo reto Num deixo quieto, num tem como deixar quieto A meta é deixar sem chão, quem riu de nóiz sem teto (REFRÃO)

Figurinha premiada, brilho no escuro, desde a quebrada avulso De gorro, alto do morro e os camarada tudo De peça no forro e os piores impulsos Só eu e Deus sabe o que é não ter nada, ser expulso Ponho linhas no mundo, mas já quis pôr no pulso Sem o torro, nossa vida não vale a de um cachorro, triste Hoje cedo não era um hit, era um pedido de socorro Mano, rancor é igual tumor envenena raiz Onde a plateia só deseja ser feliz (ser feliz) Com uma presença aérea Onde a última tendência é depressão com aparência de férias Vovó diz, Odiar o diabo é mó boi, difícil é viver no inferno E vem à tona Que o mesmo império canalha, que não te leva a sério Interfere pra te levar a lona Revide (REFRÃO)

Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes Elas são coadjuvantes, não, melhor, figurantes, que nem devia tá aqui Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes Tanta dor rouba nossa voz, sabe o que resta de nóiz? Alvos passeando por aíPermita que eu fale, não as minhas cicatrizes Se isso é sobre vivência, me resumir a sobrevivência É roubar o pouco de bom que vivi Por fim, permita que eu fale, não as minhas cicatrizes Achar que essas mazelas me definem, é o pior dos crimes É dar o troféu pro nosso algoz e fazer nóiz sumir (REFRÃO)

Referências:

GOMES, Karol. Brasil é nação construída em estupro de mulheres negras e indígenas por brancos europeus, aponta estudo. 2020. Disponível em: https://www.geledes.org.br/brasil-e-nacao-construida-em-estupro-demulheresnegras-e-indigenas-por-brancos-europeus-aponta-estudo/ Acesso em: 05 nov 2020.

JARDIM, Lauro. Quilombolas elegeram 56 representantes na eleição de ontem em dez estados — um recorde. Disponível em: https://www.geledes.org.br/quilombolas-elegeram-56-representantes-na-eleicao-deontem-em-dez-estados-um-recorde/ Acesso em: 03 dez 2020.

REINHOLZ, Fabiana; FERREIRA, Marcelo. Brasil tem recorde de candidaturas indígenas nas eleições de 2020. 2020. Disponível em: https://www.brasildefators.com.br/2020/11/12/brasil-tem-recorde-de-candidaturasindigenas-nas-eleicoes-de-2020 Acesso em: 03 dez 2020.

*Trecho da música Sujeito e Sorte de Belchior, sampleada por Emicida na música AmarElo (o refrão). 

**Termo utilizada pela jornalista Eliane Brum.

*** 

**** Conheçam e assinem também o manifesto: Enquanto houver RACISMO, não haverá DEMOCRACIA: https://comracismonaohademocracia.org.br/ 

Texto publicado originalmente na seção Debates e Pensamentos do Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS): 

http://www.analisepoliticaemsaude.org/oaps/documentos/pensamentos/ldquo-ano-passado-eu-morri-mas-esse-ano-eu-nao-morro-rdquo/

 


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