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Aglomeração individual ou quando a solidão solidifica neuroses habitantes de nós

Aglomeração individual ou quando a solidão solidifica neuroses habitantes de nós
Jonas Andrade
mai. 12 - 38 min de leitura
010


Dentro de um supermercado um homem é acompanhado por uma funcionária. A passos rápidos o sujeito lidera o caminho, mas incerto do percurso, olha por sobre seu ombro para conferir qualquer mudança de direção que a funcionária pudesse sugerir. Ele caminha com pressa o suficiente para dar a impressão de que havia algo errado, mas não o suficiente para transparecer o desespero que o afligia. 
Enquanto atravessava o estabelecimento, o homem fitava os diversos produtos nos inúmeros corredores que lhe passavam de soslaio. Incomodava-o o fato de que estivesse caminhando reto há tanto tempo, queria virar uma esquerda ou à direita, não importava, só queria ter a sensação de que estivesse se aproximando de seu destino. Uma vez diante da ala dos produtos de limpeza, o homem para de caminhar, estanca o passo e encara as diversas substâncias e fórmulas usadas para a limpeza de uma casa. 
- Será que aquele álcool gel é 70%? Tem que ser 70%!
- Quanto de água sanitária ainda tenho em casa?
- Talvez eu devesse comprar mais sabão. 
Dizia o homem para si mesmo em um intenso monólogo interno. Hipnotizado, estende a mão para alcançar uma garrafa de álcool em gel e quando estava prestes a pegá-la, uma voz feminina irrompe e corta seu fluxo de consciência. 
- Senhor, são apenas mais alguns metros. – dizia a mulher que o acompanhava mantendo-se a dois metros de distância. 
Ele recolhe sua mão, ainda estendida, em direção a seu corpo e concorda com a cabeça, deixando que a mulher tome a frente do caminho. Nos metros que ainda faltavam a aflição do homem aumentou e ele passou a observar as pessoas no seu entorno.
- Como estão próximos, como podem não estar usando máscaras, como se permitem? Eles vão adoecer! Eu vou adoecer! Eu vou adoecer! Eu vou adoecer! - gritava o homem no interno de sua cabeça, não mais um monólogo, um sermão interno. O homem começou a hiperventilar, suar frio a ficar pálido. Ele desejava muito tocar em seu rosto. Mas ainda não podia. Faltavam apenas alguns metros, só mais alguns metros. 
- Aqui está, senhor, o banheiro é aquela porta ali.- dizia a funcionária mantendo a distância ideal. 
O homem se apressa ao banheiro e fecha a porta de alumínio com seu cotovelo. Uma vez dentro do cubículo que era aquele sanitário, sua respiração fica cada vez mais descompassada. Ele abre a torneira da pia e passa sabão em suas mãos, as esfrega bem, enxágua-as e as passa úmidas em seu rosto removendo a máscara N95. Nesse momento um calafrio lhe sobe a espinha. É um banheiro comunitário. Não há como saber quem tocou na pia ou mesmo no sabão. Ele estava tão desesperado que havia se esquecido de que não era o banheiro de sua casa. E que todo banheiro por mais que estivesse limpo, ainda estava sujo. Seu coração palpita, ele não sabe o que fazer, olha de um lado para o outro dentro daquele minúsculo sanitário. A luz fraca refletia nos azulejos e empalidecia sua pele já extremamente branca. O homem se olha no espelho e vê um cadáver ambulante. Horrorizado com sua imagem refletida, vomita.  E de supetão mais uma vez toca na pia. Desesperado o homem enfia a mão em seu bolso e tira um frasco de álcool em gel. 
- Burro! Burro! Burro!- dizia o homem a si mesmo com a certeza de que tudo poderia ter sido evitado se não tivesse esquecido que em seu bolso havia álcool em gel 70%. Tinha que ser 70%. 
Ele esguicha uma quantidade exagerada da substância em suas mãos e as esfrega tão intensamente que suas unhas arranham-lhe a pele, criando pequenos cortes que ao entrar em contato com o álcool ardem intensamente. Para o homem era uma sensação de alívio, pois em sua cabeça a ardência era um indício de que as bactérias e os vírus em suas mãos dispostos estivessem morrendo. Uma vez higienizadas, o homem torna a aspergir uma enorme quantidade de álcool na palma de suas mãos, e começa a esfregá-las em seu rosto. A vermelhidão já cobria toda sua face e suas mãos. Mas ainda não era o suficiente, por algum motivo ele ainda não se sentia “limpo”. Ele olha para o frasco, faltava apenas um quarto para que este se esgotasse. E sem pestanejar o homem esguicha o restante da substância em sua boca, bochecha-a e engole todo aquele gel. O homem abre a porta do banheiro com o cotovelo e de lá sai, deixando o frasco posicionado sobre a pia. 
Duas semanas antes. De um supermercado um homem saía sozinho. De suas mãos pendiam sacolas plásticas estufadas de produtos. Tão pesadas eram que arroxeavam as mãos do sujeito, marcando-lhe as falanges já por demais espremidas pelas alças de plástico.  Ele caminhava com pressa o suficiente para dar a impressão de que havia algo errado, mas não o suficiente para transparecer o desespero que o afligia. Era ainda cedo pela manhã, os raios de sol mal trespassavam as densas nuvens que pairavam no céu, e aqueles que com muito esforço passavam, reluziam sobre ruas vazias. 
O homem em ritmo constante caminha duzentos metros e toma a primeira à esquerda. Quando conclui a mudança de sentido nota um obstáculo à frente.  Um senhor está pintando seu portão. Então, o homem usa o peso das sacolas em suas mãos e lança seu corpo comedidamente ao outro lado da calçada. Com o corpo ainda inclinado para a esquerda, o senhor que pintava o portão nota sua presença. Eles se entreolham, e oferecem, apenas, o vislumbre de seus olhos, pois ambos os rostos estavam cobertos por máscaras. Por fim coube às sobrancelhas significar todo o diálogo. Tão arqueadas estavam que a troca de olhares não durou mais que alguns segundos, dados os olhares. O estranhamento foi tal, que por mais que estivessem em uma metrópole no século 21, a cena acabou por remontar o encontro de duas espécies predatórias distintas.  A interação humana não era certa, nem um “bom dia” ou mesmo dar-se à irrelevância da presença de um no confronto com o outro como acontece nas grandes cidades. Eles se notaram, se estranharam e as sobrancelhas rugiram.  A interação dos supercílios foi tão intensa, que de uma maneira animalesca supunha-se que, ou se ignorariam, ou atacariam um ao outro. Com as sacolas mais uma vez equilibradas, o homem endireita seu andar e volta a caminhar em linha reta. O senhor torna a borrifar tinta azul nas hastes de metal de sua garagem.  
Mais uma vez focado no percurso, tudo o que se podia fazer era caminhar. Mais alguns passos à frente, o protagonista não pode deixar de notar o tipo de máscara que usava aquele senhor. 
- Será que era uma PFF1? De fato é uma bela máscara. Eu deveria encomendar uma. - dizia ele em voz baixa para si mesmo. Foi neste momento em que, sendo o peso excessivo para uma das alças de plástico, ela rasgou, quase fazendo o sujeito tropeçar. 
- Merda!- disse ele com voz estridente. 
O homem apóia suas sacolas no chão. Tira um frasco de álcool em gel 70% de seu bolso. Tinha que ser 70%!  Esguicha nas mãos um pouco da substância e as esfrega seguindo o protocolo devido.  Das palmas até as falanges, assim dedos, unhas e pulsos.
Uma vez completa a liturgia o homem ajeita sua máscara N95 em seu rosto, tocando-a apenas em suas alças. Sentindo-se protegido o homem põe-se a ajeitar suas compras. Ele não se ajoelha, apenas contorce seu corpo como se estivesse querendo tocar seus pés com as mãos. Apesar de todo desconforto causado pela falta de flexibilidade, ele sentia que estaria melhor se não apoiasse seu joelho no chão sujo. E como estava sujo!
 Ele começa a amarrar a alça de plástico rasgada, mas enquanto finaliza o nó, sua máscara escorrega de sua face, expondo seu nariz. Ele se assusta, deixa o nó de lado e leva as mãos ao rosto. No momento que toca seu nariz, sente um profundo arrependimento. Como pode? Ele pulou uma das etapas! É sabido que para tocar no rosto, as mãos têm de estar higienizadas. Ele sente um arrepio na espinha. Endireita-se de sua posição comicamente circense e tira o álcool em gel 70% de seu bolso. Tinha que ser 70%! Com a expressão petrificada e movimentando-se cautelosamente, o homem despeja uma grande quantidade da substância viscosa em suas mãos e as esfrega intensamente. Tanto que a pele se irrita e a vermelhidão passa a englobá-las. Só aí ele leva as mãos às alças de sua máscara N95 e tirando-a do contorno de seu rosto, posiciona-a sobre seu queixo. Torna a esguichar o líquido em suas mãos e com os dedos começa a esfregar em círculos o ponto exato em que tinha tocado, na parte esquerda de seu nariz. Mas toda a vez que ele tirava os dedos de seu rosto, tinha a sensação de que havia se esquecido de limpar um local adjacente àquela tragédia palpável. Então tornava a esguichar álcool em suas mãos e repetir o movimento circular, isso até que seu rosto inteiro estivesse coberto de álcool em gel 70%. Tinha que ser 70%. E seu frasco praticamente vazio. Uma vez consciente do loop que o subjugava, nota sua falha, veste sua máscara e percebe que teria de ser muito cauteloso e veloz se quisesse chegar até sua casa sem passar por nenhuma situação de contágio eminente. 
- Agora você vai tocar na alça de plástico! Nada de tocar no rosto! E se for tocar, primeiro a alça da máscara!- dizia o homem a si mesmo retornando à sua posição de contorcionista. 
Ele amarra a alça. Endireita sua posição, pega seu celular e abre a câmera frontal. Sim! A alça estava bem encaixada. Tranquilamente reposiciona o celular no bolso e depois de inspirar por vinte e três segundos, o homem torna a suspender suas compras.  
Mais uma vez com as pesadas sacolas em mãos, ele parte em seu percurso. Desta vez caminha com pressa o suficiente para transparecer que havia algo muito errado. E toda aquela sensação de desespero se resumia no som das sacolas que lhe raspavam os jeans. 
SCHACK... SCHACK... SCHACK, SCHAK, SCHACKSCHACKSCHACKSCHACK.
- Falta pouco! Falta pouco! - dizia o homem em voz alta ao som ensurdecedor do chiado. 
Desviando de qualquer possível contato com algum resquício de seres humanos, ele toma à direita.  E tem uma visão familiar, reconfortante. O vislumbre da avenida perpendicular à sua casa. Latas de lixo em sequência que levavam a um ponto de ônibus, e enfim, a rua à esquerda que o levaria ao portão de seu prédio. Ele atravessa a rua evitando a faixa de pedestre e as poucas pessoas que passavam por lá. Uma vez do outro lado da rua e com a visão limpa da esquina de sua casa, o homem cessa a intensa caminhada. O baixo volume do chiado atenua sua respiração. Ou seria o contrário?
Quando estava prestes a virar à esquerda, repara na publicidade no ponto de ônibus do outro lado da rua. “Já pensou em fazer dinheiro na comodidade de sua casa? Trabalhe remotamente pelo computador ou smartphone! Consulte as condições em nosso site!” 
Ele estava certo que logo esse formato de ofício seria quase indispensável.  As pessoas, enfim, passariam a se deslocar menos. O que era ótimo! Menos pessoas, menos chances de contágio. Já há muito o protagonista trabalhava de sua casa. Era um editor de vídeos, fotos e administrador de alguns sites de empresas que o contratavam. Divulgava seu trabalho pelas redes sociais e categoricamente se graduou em plataforma digital em um curso de marketing e publicidade, o que lhe garantia o privilégio de ter de sair de casa apenas uma vez a cada duas semanas, justamente para comprar mantimentos e produtos de higiene. E se orgulhava tanto de ser consciente do fato de saber que em um país como o Brasil, estocar é um questionamento moral efetivo, pois não se sabe do dia de amanhã, a economia pode colapsar, os meios de produção podem entrar em cheque e o brasileiro pode tornar-se refém do que restará nos comércios locais.  Sem falar que esticar as pernas uma vez a cada duas semanas é o limite que o sedentarismo do século 21 poderia permitir. Passado isso já estaremos falando de depressão ou ágorafobia ou qualquer outro distúrbio. Ou não?
O homem toma a esperada esquerda. Apenas duzentos metros até a portaria do edifício.  Ufa! O chiado ensurdecedor das sacolas não passava de uma memória de duas esquinas atrás. A projeção do futuro na rua de sua casa mostrava uma solidão acolhedora e higiênica. Defronte da entrada de seu lar, uma placa colada às portas de vidro. “Higienize as mãos antes de entrar” e uma seta indicando uma saboneteira com reservatório para 1000 ml que provavelmente conteria álcool em gel. Mas será que era 70%? Tinha que ser 70%! Preferindo não arriscar o homem ignora o aviso, supondo que estaria mais higienizado do que a saboneteira em si. Deixa uma das sacolas no chão e tira de seu bolso um molho de chaves. Seleciona uma entre as quatro que havia e a gira dentro da fechadura. Uma vez destrancada, ele apenas empurra a chave contra a porta, abrindo-a, evitando tocar na maçaneta. Infelizmente a porta se fechava através de um sistema de molas, o que significava que o movimento a ser feito não era tão simples. Ele teria de travar a porta aberta com seu pé, sob pena de que se não o fizesse ela se fecharia de novo. Para evitar esfregar as roupas nas portas de vidro ele se dispôs a fazer uma abertura, desafiando mais uma vez sua flexibilidade. Esticando-se como uma bailarina, a porta abre o suficiente para que ele entre sem problemas. Mas a sacola com suas compras ainda estavam no chão. Ele se esgueira para agarrar as alças de plástico, mas quando estava quase lá, sente a musculatura da parte interna de sua coxa enrijecer. Uma cãibra!  Ele toma rapidamente a sacola em mãos e, de supetão, entra no prédio. Com uma expressão de dor ele sente o músculo distensionar e percebe que está dentro da portaria. Aliviado, ele segue em direção ao elevador centralizado no fim do corredor. Diante do elevador ele usa o cotovelo para apertar o botão que abriria as pesadas portas de metal.  Concomitantemente ao som do deslizar das portas do elevador o homem escuta o borrifar da saboneteira. Ao olhar para trás vê o doutor Guilherme, seu vizinho de porta, que além de borrifar o suposto álcool em gel em suas mãos, usa as mesmas para abrir a porta.  Ele já dentro do elevador, quando Guilherme nota sua presença. 
- Segura a porta, Sílvio! - disse o vizinho enquanto caminhava em sua direção. Então assim se chama o protagonista. Sílvio não tinha intenção alguma de manter a porta aberta e muito menos dividir aquele pequeno espaço não arejado com alguém que ele desconhecia a procedência. Só o fato de ter usado as mãos para abrir a porta era motivo suficiente para abandoná-lo. 
- É claro! - disse o protagonista, calmamente levando o cotovelo ao painel de comandos. Doutor Guilherme se aproxima rapidamente e Sílvio finge estar apertando o botão que mantêm o elevador aberto. As portas se fecham a dois metros do apressado vizinho. De dentro do elevador, Sílvio grita:
- Algo deu errado! Acho que o botão está com defeito! 
 Ele não se sentia mal pelo ocorrido, é de praxe fingir ser simpático e bem intencionado. Assim como a saboneteira da portaria. Talvez.
Na porta de seu apartamento Sílvio pode relaxar. Mas deveria ser rápido, pois o elevador desceria e voltaria com Guilherme e ele faria de tudo para driblar o contato. Sílvio larga as sacolas no chão e massageia as mãos por um instante. Como elas estavam doloridas, com baixa circulação e vermelhas! Ele pega as chaves rapidamente, destranca e abre a porta sem tocar na maçaneta, pega as sacolas em mãos e adentra o apartamento. O som do cerrar da fechadura é sobreposto pelo som da abertura das portas do elevador. Não havia mais perigo. 
Com a cabeça ainda apoiada na porta, o protagonista tira seus sapatos e os posiciona junto aos demais que estavam por sobre um pano encharcado de uma solução com água sanitária. É sabido que não se deve entrar com os calçados usados na rua em casa. De meias ele entra na cozinha, a qual se anexava a área de serviço, onde Sílvio realizaria a mais essencial das liturgias.  
Apoiadas as sacolas numa área delimitada ao entorno do tanque, Sílvio começa a desensacar os produtos. Enfileirando-os por sobre uma bancada, a mesma em que passa suas roupas, ele não consegue evitar posicioná-los de maneira equidistante. Uma de suas tantas automações, as que ele sempre julgou necessárias para uma existência sã. Feitas três fileiras de produtos que iam desde sabonete a um maço de folhas de papel A4, o homem toma em suas mãos um borrifador, até então repleto de perfume. “Brisa litorânea” era o que dizia o rótulo. Mas a atualidade clama a higiene, não o bom odor. Portanto o frasco, uma vez aclamado por uma sinestesia de bom gosto, agora continha nada mais do que uma solução com água sanitária. Mas como equiparar o prazer do olfato ao de estar higienizado? 
TSSS,TSSS,TSSS.
Três borrifadas por produto, vinte e sete produtos, oitenta e uma borrifadas. “O tédio de alguns é o entretenimento de outros”, pensava o narrador que vos escreve. Convenientemente a bancada farta de produtos banhados por solução desinfetante estava voltada para a janela que em alguns momentos permitiria a passagem do sol das dez horas até o do meio dia. Ponto positivo do imóvel que Sílvio chamava de casa. A angulação dos raios de sol permitiria que a água sanitária evaporasse e levasse com ela qualquer corpo estranho que pudesse estar ali. 
- Deviam anunciar coisas do gênero na publicidade dos imóveis a serem vendidos. Horário de incidência do sol nas diversas janelas. - pensava o protagonista. 
Agora que todos os artigos que tinha adquirido estavam limpos, Sílvio pode prosseguir seu ritual. Então tira de seus bolsos sua carteira, celular, molho de chaves e um pequeno frasco de álcool em gel 70%. Tinha que ser 70%. Posiciona-os por sobre o tanque. Cada qual leva as mesmas três borrifadas. Incluindo o artigo higienizante. Cômico não? Higienizar o higienizante! Sílvio leva a mão à torneira duas vezes, para se assegurar de que nenhuma gota de água viesse a cair por sobre os apetrechos que ali estavam. Certo de que seus pertences não se banhariam, o homem parte para a etapa final do processo. Sílvio se desnuda ali mesmo e joga sua roupa dentro da máquina de lavar. Nu em pelo, ele pega mais uma vez o spray com água sanitária e a esguicha na alça da tampa da máquina, assim como na torneira, garantindo que elas permanecessem limpas. Ele olha de um lado para o outro, correndo os olhos por sobre qualquer possível detalhe que se possa dele ter esquecido. Tudo parece estar em ordem. E num lapso de certeza, Sílvio esguicha água sanitária em suas mãos e corre em direção ao banheiro de seu apartamento. Esfregando a solução em suas mãos, o homem adentra o sanitário e quando estava prestes a entrar no chuveiro, nota seu reflexo e percebe que ainda estava usando a máscara. Calmamente ele a retira tocando-a pelas alças e a deixa por sobre a pia. Já debaixo da ducha, Sílvio percebe como respirava melhor sem a máscara. Todos os centímetros cúbicos de oxigênio que a máscara filtrava, agora, fluíam-lhe sem restrição pelas vias respiratórias. Que prazer era respirar sem obstáculos! Ocorreu-lhe que, talvez, o uso da máscara o fizesse se acostumar com uma qualidade e quantidade menor de oxigênio. E talvez, só talvez, essa circunstância fosse complementar a sua ansiedade, deixando-o infindavelmente mais suscetível à angústia da rotina endêmica. Ao se ensaboar e com a cabeça sob o fluxo de água, Sílvio teve dificuldade de respirar. Seu reflexo fez com que passasse suas mãos por detrás das orelhas, mais uma vez buscando retirar a máscara. Já não havia máscara, não havia alças presas às orelhas. Ele imaginou se as alças da máscara feriram suas orelhas assim como as alças das sacolas feriram suas mãos. Alças tão finas suportando pesos extremos. Produtos envoltos, germes envoltos, estabilizados por uma tira de pano ou plástico. Uma fragilidade? Uma comodidade? Praticidade? Então Sílvio alça o olhar. O banho devia acabar. Não há reflexão que justifique o desperdício de água. Completamente limpo, o homem ensaboa o registros do chuveiro com a mesma intensidade que havia se ensaboado e enxágua-os. Tudo limpo. O fim da liturgia.
Seco e de pijama, apesar de ser ainda dia, Sílvio organiza os produtos desinfetados na despensa, armários e prateleiras de seu apartamento. Uma vez que completou a tarefa pensou em ir trabalhar em seu escritório, ou seja, seu quarto. Mas ainda impressionado pelo “peso” das alças, decidiu abrandar-se diante da televisão. Nada como uma boa programação familiar descontraída para se desfocar do fatalismo da existência. Em seu sofá, ele liga a televisão que em um primeiro momento estava sintonizada em um canal de notícias. “Amazonas concentrou 10% do desmatamento total no Brasil em 2019”, aponta a fonte. “Vegetação nativa perdida no Amazonas totaliza 1,26 mil km² e equivale, por exemplo, à área da cidade do Rio de Janeiro.” Quando estavam prestes a discutir as consequências do efeito estufa, nosso protagonista muda de canal, e põe-se a assistir um reality show sobre casais. Uma casa enorme, repleta de jovens sensuais que desfrutavam de mimos e excessos. E no episódio em questão brigavam por uma tolice qualquer, e ao som de gritos, lançavam copos de bebidas caras e pratos de comidas chiques uns nos outros. Focado no burburinho, Sílvio adormenta.
Em plano onírico, o protagonista caminhava no escuro infinito. Tão escuro era que parecia não haver nenhuma tridimensionalidade em seu campo de visão. E assim ele vagava bidimensionalmente na escuridão profunda. De repente, naquela imensidão lhe surge a imagem de uma esfera azul celeste. Em discordância com a calma tonalidade que o azul induzia, Sílvio se sentiu tenso, com medo e preocupado. Após encará-la por alguns instantes o homem dirige a palavra à esfera azul: 
- Quem é você? O que está acontecendo?
- Eu preciso de um favor. – disse a esfera calmamente. 
- Diga! Como posso ajudar?- responde Sílvio.
- Eu preciso que você coloque sua máscara. – comunica a esfera. 
- Não tenho uma máscara aqui comigo. – retruca o homem. 
- Confira suas mãos. – responde a esfera. 
Sílvio olha para baixo e nota que está segurando uma sacola de plástico.
- Isto não é uma máscara, é uma sacola! - exclama o protagonista. 
- Confie em mim. Eu preciso disso, me ajude! – suplica a esfera. 
Sem questionar, Sílvio ajeita as alças da sacola em suas orelhas. Nesse momento a esfera começa a inspirar e expirar profundamente, distorcendo sua forma à medida que se enchia e se esvaziava de ar. Sílvio observa a cena desconcertado. E hipnotizado pela constante respiração da esfera, ele se apercebe de que a sacola de plástico havia se estreitado em seu rosto, dificultando sua respiração. Ele tenta retirar a sacola do contorno de seu rosto, mas é inútil. As alças haviam se fundido às suas orelhas. Ele se desespera. 
- Socorro! Eu não consigo respirar! – bradava o homem. Mas a esfera continuava ali, pairando, respirando constantemente. Seu desespero aumenta, ele tenta rasgar a sacola e falha. Ela havia se tornado seu rosto, como uma nova camada de pele. Ele cai por terra, sem ar e se debate loucamente no chão buscando pelo oxigênio. E a esfera continuava ali, bombeando constantemente. Com o pouco ar que lhe restava ele decide fazer uma súplica final: 
- Socorro! Socorro! Ajude-me, eu não consigo respirar.  
- Eu sei como é. Mas preciso que você permaneça assim por mais alguns instantes. - tranquilamente responde a esfera. 
O homem então cede à falta de ar e abraça sua asfixia. Sua visão fica turva, suas pálpebras pouco a pouco se fecham e a esfera some de sua frente. Então ele acorda desesperado, seu coração palpita, ele tem dificuldade para fazer o ar chegar aos pulmões. Demora alguns instantes para tomar conta do que havia ocorrido. Ele havia acordado do sonho ou sonhado acordar? Enquanto isso, jovens descolados brindavam em uma bela casa e faziam festa. Sílvio desliga a televisão.
Duas semanas depois. Seus mantimentos haviam acabado e era o momento de voltar ao ambiente hostil, voltar à rua. Praticamente pronto para deixar o apartamento, Sílvio bate no bolso de seus jeans se assegurando de que todos os seus pertences estavam ali. Chaves, carteira, celular e frasco de álcool gel 70%. Tinha que ser 70%. E sua máscara N95. Mas desta vez havia uma nova providência. Durante uma de suas faxinas de rotina o protagonista encontrara ecobags. Adotou o achado como um presságio, uma premonição. E decidiu que sempre as usaria para fazer suas compras. Além do que, as alças da ecobag eram muito espessas, ou seja, distribuiriam melhor o peso em suas mãos.
Sílvio sai de casa e evita todo e qualquer contato com pessoas ou coisas, as coisas poderiam ter sido tocadas por pessoas que poderiam ter-se feito tocar por coisas. Todo o contato é perigo. Ele chega ao supermercado, higieniza as mãos e com um lenço de papel, higieniza a barra do carrinho de compras que ele havia selecionado. Sílvio não precisava de uma lista para suas despesas. Ele estava certo de tudo o que necessitava.
Estar recluso o permitiu desenvolver a habilidade se saber exatamente do que precisava para continuar na agradável constância de sua rotina. Rotina tão bem estabelecida que se refletia na ordem em que ele adquiria os produtos. Limpeza, material para escritório e comida. Sempre nessa ordem. Pensar uma ida ao mercado onde não se seguia o protocolo o afligiria imensamente. E finalmente chegamos ao ponto de partida de nosso conto. 
Lá estava Sílvio no corredor dos alimentos, ou seja, quase completando sua compra. Agachado, mas sem tocar no chão, ele selecionava um pacote de feijão. Estava tão concentrado em sua escolha que não percebeu que um senhor se aproximava. Senhor este que parado ao seu lado tossiu em sua direção. 
O ar quente da tosse foi ao encontro da testa de nosso protagonista. Ao perceber o que havia acontecido, Sílvio não quis crer. Ele se levanta apavorado e olha para o senhor e o mesmo calmamente se desculpa. Com ímpeto de atacá-lo em um surto de raiva, todo aquele sentimento é invalidado por um arrepio na espinha e uma coceira na garganta. Seria já o efeito do vírus? Sílvio estaria contagiado? Assim, o protagonista abandona suas compras e ecobags e corre desesperadamente em busca de um banheiro. Enquanto corria, ele cruza com uma funcionária. “Artemísia” era o nome escrito em seu crachá. Sílvio então para diante da mulher e diz com uma voz trêmula:
- Por favor, onde encontro o banheiro? 
Artemísia vê um homem de máscara, desesperado, trêmulo e pálido diante de si. E com toda a gentileza do mundo diz:
- Por aqui senhor, eu vou acompanhá-lo. 
Ela aponta o caminho e o homem parte na mesma direção liderando o percurso. Caminhando com pressa o suficiente para dar a impressão de que havia algo errado, mas não o suficiente para transparecer o desespero que o afligia. O homem olhava por sobre seu ombro e encarava a mulher a cada três novos passos dados. Ela sabia que algo não ia bem com aquela figura assustada. Improvisamente ele para de andar e fica petrificado diante do corredor dos produtos de limpeza. Artemísia não entende. Se ele estava tão desesperado, por que parou aqui? Então ele estica a mão para alcançar o nada, como se um espírito o estivesse chamando, ou como se ele quisesse alcançar a luz. Com os olhos arregalados e muito confusa a mulher fala:
- Senhor, são apenas mais alguns metros. 
O homem recolhe as mãos e torna a caminhar intensamente. Ele olhava de um lado para o outro murmurando e fazendo sons guturais. Artemísia estava muito aflita com aquilo.
- Esse cara é louco!- pensava consigo. 
A porta do banheiro se aproximava e os cartazes indicativos estavam evidentes à essa altura. Ela pensou em abandoná-lo, pois ademais, estava claro onde o banheiro se localizava. Mas ele não reduzia o passo. Parecia que continuaria caminhando eternamente naquele sentido se alguém não o parasse. Neste instante, Artemísia exclama:
- Aqui está, senhor, o banheiro é aquela porta ali! 
Sem dizer nada, o homem muda de direção e entra no banheiro de maneira desesperada fechando a porta de alumínio com os cotovelos. Curiosa e angustiada, Artemísia continuou ali acompanhando o que ocorria, preocupada com o homem, pois, talvez ele realmente precisasse de ajuda. Ela escutava murmúrios agressivos, sons de estalos, vômito e inspirações e expirações pesadas. Parecia que ele estava infartando. Quando ela pensou em bater na porta oferecendo ajuda, o homem saiu de lá correndo. Passou por ela como um foguete e evadiu-se do mercado. 
Confusa ela entra no banheiro e encontra um frasco de álcool em gel centralizado na pia. Ela pega o frasco e o joga no lixo. Desconcertada a mulher caminha em direção à caixa registradora, seu local de trabalho, e se assenta em seu banco. O mercado ainda estava relativamente vazio quando aproveitou para contar o ocorrido para sua colega:
- Você viu o maluco que saiu disparado pela porta?- perguntou Artemísia. 
- Sim, já aconteceu antes. Ele é figurinha repetida por aqui. – afirmou a colega. O gerente disse que esse cara é hipocondríaco, compulsivo e entra em desespero quando se vê entre muitas pessoas.- continuou. Disseram que uma vez ele teve um ataque de pânico por que duas pessoas conversavam diante da estante de pães. – finalizou a amiga. 
- Credo, tem louco para tudo não é mesmo?- disse Artemísia chocada com o relato. 
É nesse momento então que ela tira de sua bolsa um jornal dobrado. Ela o havia comprado na banca antes de chegar ao trabalho. Resolveu lê-lo enquanto esperava o próximo cliente. Ao desdobrar a folha a manchete lhe chama a atenção, a data, trinta de janeiro de dois mil e vinte com a reportagem:
“Na China, já são 170 mortes pelo novo corona vírus, que já infectou 7,7 mil pessoas e, agora, tem vítimas em todas as regiões. Hoje, a Organização Mundial de Saúde (OMS) terá uma segunda reunião de emergência sobre a disseminação da doença.”
Enfim, concluímos o conto que tenho contado. Contados tantos dias eu conto quantos mais estarão por vir. Nos cantos de minha casa não há mais ornamento ou acanto que, outrora, já cantou minhas histórias de sanidade e gentileza. Resta então a funcionalidade seca do conto, a dialética viral que nos coroa. Portanto, peço desculpas ao devolver a palavra a si, expectador. Espero não tê-lo decepcionado ao quebrar esta “quarta barreira”. De fato não é um movimento narrativo comum em contos. Ainda mais se o assunto já não é a história em si, mas a interpretação que pode vir a ser feita. 
Covid-19. Dezenove convites já enviados. Nenhum bem lido. 
É de transparência opaca a densidade macroscópica do dano biológico que o organismo vivo faz com a vida. Vivos estamos e para estarmos vivos tiramos vida. Corona vírus e primatemaia disseminada se encontram e empatam a luta, ardendo como se em cachorros de palha e destes o mesmo ganido discursivo, mas que apenas ouvidos sensíveis podem captar. A interação vírus/homem tem efeito colateral. O homem é o vírus que ataca o ente biológico, a terra, que providencia o vírus que ataca o homem. Só quando cessarmos o ataque à Gaia ela deixará, agora, de nos atacar. Porém, o estudo de relações intra e interespecíficas já nos provou que a troca harmônica do homem para com o ecossistema é quase utópica. Sabemos que o ideal capitalista justifica a lógica parasitária de exploração ambiental. A mesma que nos pune hoje. 
Este conto é um exemplo do caos psicológico que coletivamente afeta nossa sociedade, singularmente, dado o enquadramento do desafio que tematizou o enredo da história. Pensamos a todo momento que Sílvio fosse apenas um outro cidadão se adequando à pandemia, quando na verdade ele estava aflito por uma das tantas patologias mentais que moldam a percepção subjetiva do real. 
Mas quando o real justifica a patologia coletiva, vemos que a naturalização do caos e angústia é algo quase intrínseco à adaptabilidade do ser humano às diversas situações de dificuldade postas ao longo da história. Guerra, fome e doença. 
Mas ainda sim nos entretém a síndrome de Decamerão, onde todos nós gostaríamos de escapar para algum lugar distante de todo o mal que impingimos e que, reciprocamente, volta a nos afligir. Queremos ir para onde passivamente esperaríamos o fim de tudo, enquanto nos distrairíamos de maneira lúdica e imediata, permitindo a ciclicidade do problema sem responsabilização. Mas, ao nos ausentarmos estamos ativamente empunhando a faca que nos acaricia as costas. O vetor de nossa morte é o intento de escapar dela e ignorá-la. Postergar o fim está para o homem na terra assim como o botox está para a senhora vaidosa, o fatalismo aparente mascarado por uma comodidade estética.  
O conto foi intitulado “aglomeração individual” seja a solidão que solidifica as múltiplas neuroses preexistentes que afligem o indivíduo, habitantes dele, coletivizando-se definitivamente ali e lhe suplantando a singularidade. No olhar do outro encontramos nossa salvação ou perdição. Mas quando não há o outro que nos olhe, salvação e ou perdição se encontram numa dicotomia morna. Externamos o olhar com o qual queremo-nos enxergar e, na verdade, percebemos tudo, exceto a nós mesmos. O placebo é a bad trip sem desculpa substancial. Podemos não sonhar com nada, ou sonhar com não sonhar com nada e ali encontraremos o nosso tudo.                
   Então para concluir, deixo as palavras do ser que olhou a caverna de Platão e cuspiu na certeza da sombra:

“Tive uma revelação ao comparar a sua espécie e percebi que o ser humano não é um mamífero. Todos os mamíferos do planeta instintivamente entram em equilíbrio com o meio ambiente, mas os humanos não. Os humanos vão para uma área e se multiplicam até que todos os recursos naturais se acabem, e sua única maneira de sobreviver é indo para outra área. Há outro organismo que se comporta exatamente assim: um vírus” (Agente Smith, Matrix).

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