Nas reuniões familiares ela incomodava a harmonia de sangue e aquela estabelecida socialmente. A idosa, em seus mais de setenta anos, era tudo que eu recriminava moralmente. Era uma pessoa mesquinha, ávida por dinheiro ao ponto de extrair de seus filhos o máximo de quantias financeiras. Possuidora de muitos bens, valores que a própria família não tinha conhecimento, pedia carona mesmo possuindo um carro, solicitava dinheiro mesmo sendo uma típica senhora de classe média alta.
O pior de tudo em seu comportamento eram as fofocas em relação aos meus entes queridos. Sua língua ferina, a qual não poupava dores a quem ouvisse, era um manual de ofensas completo contra seus filhos e netos. Ofendia a todos em sua casa fria de valores sem dar possibilidade de defesa ao acusado em sua reprovável lábia. Não era minha parente, apenas uma agregada familiar. Em função de sua avançada idade eu a respeitava, mas não gostava do convívio com ela. Sempre mantinha distância nos almoços para evitar me indispor com essa anciã.
Há alguns dias soube que ela faleceu por causa de um câncer. Eu poderia me ater ao embrutecido neofascismo vigente em manifestações e redes sociais para denegrir a imagem da falecida. Assim como a nação foi seduzida pelo expurgo do “inimigo“, instante em que se comemoram o câncer de oponentes políticos e o extermínio de minorias, poderia não me importar com o seu sofrimento ou até comemorar sua partida final para os húmus. Mas me esvazio do cálice transbordado de indiferença e me coloco em seu lugar ou até mesmo na pele de seus filhos.
É indiscutível a necessidade de ser tocado por uma dor que não é sua – uma medida terapêutica para a psique alargar o seu conhecimento sobre o mundo e suas mazelas. Eu sinto que permitir o crânio ser invadido por uma realidade alienígena me torna mais humano - capaz de agir em prol da melhora do outro. Em uma sociedade em que o narcisismo e egoísmo são couraças hegemônicas valorativas é urgente a necessidade de se comover com o sofrimento alheio.
Como ser indiferente a fome dos moradores de rua? Como não se indignar com a pobreza extrema no continente africano e em nosso país? Como não se posicionar contra as discriminações raciais? Todo esse quadro horripilante só pode ser alterado por quem tem empatia, por aquele que entende a dor do outro (o que move mudanças). Por isso, mesmo sem santificar a dita cuja e com críticas feitas, vou ao enterro da anciã.
01.07.2019